Anyky: ‘Quando você passa dos 40, começa a ser chamada de maricona’

Expulsa de casa aos 12 anos, a mulher trans encarou a prostituição até os 50 e enfrentou a violência da ditadura, mas, hoje, tem medo da noite: 'Se você não tiver, não sobrevive'

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 17 de outubro de 2018 - 22:20 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 18:20

Durante entrevista, Anyky relembra Ditadura: ‘Se você não tinha um documento assinado você era presa à toa. Só pelo prazer de ser presa para lavar banheiro, para apanhar, sabe?’. Foto: Leandro Borboleta

Durante entrevista, Anyky relembra Ditadura: ‘Se você não tinha um documento assinado você era presa à toa. Só pelo prazer de ser presa para lavar banheiro, para apanhar, sabe?’. Foto: Leandro Borboleta

Expulsa de casa aos 12 anos, a mulher trans encarou a prostituição até os 50 e enfrentou a violência da ditadura, mas, hoje, tem medo da noite: 'Se você não tiver, não sobrevive'

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 5 • Publicada em 17 de outubro de 2018 - 22:20 • Atualizada em 31 de outubro de 2023 - 18:20

A história da nossa terceira entrevistada da série “LGBT+60: Corpos que Resistem” assemelha-se com a de outras inúmeras travestis e trans Brasil afora. No entanto, hoje aos 63 anos, Anyky Lima se considera uma privilegiada. Sua idade representa quase o dobro da expectativa de vida de transexuais no Brasil, que é de apenas 35 anos.

Carioca vivendo atualmente em Belo Horizonte, Minas Gerais, ela divide sua pequena casa com outras trans que não têm para onde ir. Mulheres, que assim como ela, foram expulsas ou fugiram por causa do preconceito.

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Ela nos recebe em sua pequena sala que logo chama a atenção pela grande quantidade de objetos religiosos das mais variadas crenças. “Eu gosto de tudo que fala sobre Deus”, explica. O dia está quente, e Anyky tem como principal aliado um leque que iria acompanhá-la durante toda a entrevista.

Durante entrevista, Anyky relembra ditadura: ‘Se você não tinha um documento assinado você era presa à toa. Só pelo prazer de ser presa para lavar banheiro, para apanhar, sabe?’. Foto: Leandro Borboleta

Pergunto sobre a infância. Tinha 12 anos quando foi obrigada a deixar o conforto de sua casa para encarar a realidade das ruas. Desde nova, gritava por todos os cantos que não era um menino, e sim, uma menina. Usava batom, brincos e deixava o cabelo crescer. Para os pais, nascidos no interior de Pernambuco, o comportamento de Anyky era inaceitável.

A trans e a travesti são militantes desde quando se assumem. Elas militam quando vão à padaria, ao botequim. Quando elas mostram a cara e ocupam esses espaços, elas estão militando

Anyky Gonçalves de Lima

Expulsa de casa, dormiu cerca de três dias nas calçadas do Rio. Conseguiu viajar para Vitória, no Espírito Santo – onde ficou por oito anos – e lá começou a vida como garota de programa. Profissão que iria ter até os 50. Assim como Martinha, do segundo episódio da série, Anyky lutou e resistiu contra a ditadura. Presa dezenas de vezes disse que só não apanhou mais porque era branca. “Policiais me tiravam da cela de madrugada para ter relação sexual comigo, enquanto batiam em uma travesti negra só pelo prazer”, relembra.

Com dificuldades para dormir por causa das dores do corpo – resultado de anos aplicando hormônios em excesso – Anyky quase não sai de casa. Hoje, tem trauma da noite: “Se você não tiver medo, você não sobrevive”. Diz não sofrer de depressão por conta do forte apego que tem aos seus animais de estimação e gosta de passar o tempo costurando.

Sobre envelhecer sendo trans, ela lamenta a falta de respeito. “Quando você passa dos 40, você começa a ser chamada de maricona. A gente vive da beleza”.  Mas engana-se quem acha que Anyky está cansada: “Enquanto eu respirar, vou continuar na luta”.

Anyky Lima é a terceira entrevistada da série ‘LGBT+60: Corpos que Resistem’. (Foto: Leandro Borboleta)

Nos documentos, Anyky Gonçalves de Lima passou a existir somente aos 60 anos, quando conseguiu retificar o nome de nascimento no RG após meses de burocracia. “A trans e a travesti são militantes desde quando se assumem. Elas militam quando vão à padaria, ao botequim. Quando elas mostram a cara e ocupam esses espaços, elas estão militando”.

Lamento pelo fim da entrevista. Anyky é daquele tipo de pessoa que você quer ficar conversando por horas e horas. A voz calma e serena nem parece que vem de uma mulher que passou por tantos perigos durante a vida. Despeço-me com aquela vontade de voltar logo.

Anyky é uma resistente.

LGBT+60: CORPOS QUE RESISTEM

 

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Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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