As ruas do Rio perderam a fantasia

Destile da Unidos de Vila Isabel, na Presidente Vargas, toda enfeitada, em 1973. Foto: Rubens Seixas / Agência O Globo

O fim melancólico da alegre e centenária tradição de enfeitar a cidade para o Carnaval

Por Felipe Ferreira | ODS 11ODS 9 • Publicada em 9 de fevereiro de 2018 - 10:04 • Atualizada em 12 de fevereiro de 2018 - 14:08

Destile da Unidos de Vila Isabel, na Presidente Vargas, toda enfeitada, em 1973. Foto: Rubens Seixas / Agência O Globo
Destile da Unidos de Vila Isabel, na Presidente Vargas, toda enfeitada, em 1973. Foto: Rubens Seixas / Agência O Globo
Destile da Unidos de Vila Isabel, na Presidente Vargas, toda enfeitada para receber os foliões, em 1973. Foto: Rubens Seixas / Agência O Globo

Um ano qualquer na década de 70, poucos dias antes do carnaval. Grupos de amigos, famílias, turistas e curiosos em geral se dirigem ao centro do Rio de Janeiro para um evento que já havia se tornado uma tradição da cidade: o acender das luzes das decorações que enchiam de vidas as principais ruas da cidade. Jornais noticiavam o acontecimento, revistas semanais dedicavam capas e reportagens destacando a beleza e originalidade das criações, mais impressionantes a cada ano, orgulho dos cariocas, demonstração incontestável da importância da nossa grande festa e da criatividade de nossos artistas. Apesar de tudo isso, as decorações carnavalescas do Rio acabaram desparecendo e se tornando a triste caricatura que vemos hoje, transformando-se em esquálidos painéis para divulgar as logomarcas dos eventuais patrocinadores da folia.

Toda essa história começou há muito tempo, em meados do século XIX, quando os primeiros grupos organizados de foliões passaram a ocupar as ruas do Rio de Janeiro durante os dias de folia. Buscando repetir por aqui o sucesso das promenades parisienses, as sociedades carnavalescas organizavam passeios com turmas fantasiadas sobre carruagens enfeitadas, que se deslocavam pelo centro da cidade na tentativa de civilizar o carnaval brasileiro. Este era conhecido, até então, pelo costume da população de lançar, entre si, líquidos ou pós de diferentes procedências, chamado genericamente de entrudo. O primeiro passeio organizado de uma sociedade carnavalesca de que se tem notícia foi realizado por um grupo intitulado Congresso das Summidades Carnavalescas, em 1855, servindo de modelo para muitas organizações similares que proliferaram pela cidade a partir de então.

Decoração de palhaço na Avenida Rio Branco, em 1986. Foto Otavio Magalhães / Agência O Globo
Decoração de palhaço na Avenida Rio Branco, em 1986. Foto Otavio Magalhães / Agência O Globo

A esses grupos, ligados à burguesia carioca, juntaram-se outros, de origem mais popular, como os blocos de sujos conhecidos como zé pereiras e os cucumbis carnavalescos, formados, basicamente, por negros ligados às tradições das congadas. Obrigados a compartilhar o exíguo espaço das ruas do centro do Rio, esses diferentes grupos acabaram influenciando uns aos outros, fazendo surgir uma enorme variedade de brincadeiras.

Vale notar que cada sociedade, clube, cucumbi ou zé pereira tinha liberdade para organizar seus deslocamentos durante o carnaval, da forma que desejasse, sem nenhum controle oficial de horário ou percurso. Com o objetivo de atrair para a porta de suas casas ou de suas lojas o maior número possível de grupos, e de público, os  moradores do Centro do Rio começaram a enfeitar suas ruas com bandeiras, fitas, cartazes, bandeirolas, arcos floridos e tudo mais que a criatividade popular inventasse.

Grandes artistas, como Fernando Pamplona, Adir Botelho, Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, criaram verdadeiras obras de arte urbana, que envolveriam a cidade numa ambientação mais surpreendente a cada ano

A primeira de que se tem notícia foi a Rua das Violas (atual Teófilo Otoni), que se engalanou para receber com pompa e circunstância o hoje histórico primeiro desfile das Summidades, como o grupo ficou conhecido popularmente. A rua, hoje meio esquecida por trás dos grandes prédios da Avenida Presidente Vargas, parece ter inspirado, então, outras vias a fazer o mesmo nos anos seguintes, dando início a um costume que se espalharia por toda a área central da cidade.

Durante mais de 70 anos, a própria população carioca se encarregaria de continuar enfeitando seus trechos de rua para acolher o carnaval da cidade. Até que, em 1928, a Prefeitura decide, finalmente, trazer para si a responsabilidade de organizar a festa carnavalesca, determinando horários, percursos e trajetos para as manifestações da folia. Entre outras atitudes estava incluída a organização da primeira decoração oficial da cidade, para a qual foi convocado o artista Luiz Peixoto.

Os grandes arcos com o rosto de um Rei Momo bonachão e sorridente que atravessavam a Avenida Rio Branco marcavam o início de uma nova era, em que a festa carnavalesca passava a ser reconhecida como um evento oficial do Rio de Janeiro. A partir daí, a decoração foi tomando vulto, servindo não somente como atração turística, mas, principalmente, como uma forma de identificar lugares importantes para a reunião de foliões. Além dos coretos presentes em diversos bairros da cidade, a Avenida Rio Branco e a Praça Onze se destacavam por suas decorações.

Com o crescimento das escolas de samba e seu sucesso cada vez mais retumbante, e com o deslocamento dos desfiles para a Avenida Presidente Vargas, em 1963, as decorações iriam adquirir um caráter monumental e espetacular, tornando-se, por si só, uma atração carnavalesca da cidade. Grandes artistas, como Fernando Pamplona, Adir Botelho, Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, criaram verdadeiras obras de arte urbana, que envolveriam a cidade numa ambientação mais surpreendente a cada ano. Um importante elemento de atração para visitantes do mundo inteiro e motivo de orgulho para todos os cariocas, que iria perdurar até a construção do Sambódromo, em 1984.

A pá de cal aconteceria durante a gestão do Prefeito Eduardo Paes, que, a partir de 2009, transformaria os antigos elementos decorativos em simples banners pendurados em postes pela cidade, destinados a expor as marcas das empresas patrocinadoras do carnaval. O costume, infelizmente, prossegue na atual gestão

A tão sonhada Passarela do Samba estabeleceria novos paradigmas para as escolas e para todo o carnaval carioca. Obra de Oscar Niemeyer, com linhas decididamente modernistas, o Sambódromo se mostraria avesso a decorações. Segundo seu idealizador, Darcy Ribeiro, e seu arquiteto, a arquitetura “pura” e “limpa” do espaço de desfile não deveria ser “enfeitada” com qualquer tipo de decoração. A importância da Passarela como palco dos desfiles das escolas de samba, que dominavam quase que totalmente o cenário carnavalesco da época, acabou influenciando todo o carnaval da cidade. A partir de então, as decorações das ruas começaram a deixar de interessar às autoridades que, ano após ano, investiam menos em sua execução.

A Presidente Vargas. no Carnaval, em 1976: fim da tradição de colorir as ruas da cidade. Foto Arquivo / Agência O Globo
A Presidente Vargas no Carnaval de 1976. Foto Arquivo / Agência O Globo

A pá de cal aconteceria durante a gestão do Prefeito Eduardo Paes, que, a partir de 2009, transformaria os antigos elementos decorativos em simples banners pendurados em postes pela cidade, destinados a expor as marcas das empresas patrocinadoras do carnaval. O costume, infelizmente, prossegue na atual gestão. A cidade vê terminar, desse modo, de maneira melancólica, uma história de mais de um século e meio.

Criar uma ambientação não só no Sambódromo como em todo seu entorno, e em outros pontos importantes da cidade, como a nova orla Conde, a região do Valongo ou a Avenida Atlântica, por exemplo, é uma lição que o mundo do samba e do carnaval precisa aprender com os grandes eventos da atualidade

A importância das decorações para o carnaval carioca merece, entretanto, uma revisão dessa decisão. No que se refere às ruas, investir na fantasia da cidade não é só uma forma de ampliar os visitantes da nossa maior festa, mas também de atrair, naturalmente, blocos e foliões para espaços destinados à folia, sem necessidade de
imposições ou limitações, e de criar um ambiente festivo, “vestindo” a cidade para acolher a festa.

Quanto ao Sambódromo, vale lembrar que o próprio Niemeyer já havia aventado a possibilidade de decoração, após alguns anos de sua construção. Mas, além disso, se formos observar com atenção, a Passarela do Samba já é “decorada” anualmente por anúncios e outdoors, pouco restando da “pureza” original para ser observada durante o carnaval. Organizar essa cacofonia e criar uma ambientação não só no Sambódromo como em todo seu entorno, e em outros pontos importantes da cidade, como a nova orla Conde, a região do Valongo ou a Avenida Atlântica, por exemplo, é uma lição que o mundo do samba e do carnaval precisa aprender com os grandes eventos da atualidade.

Grandes festivais de rock do mundo inteiro investem pesadamente em produções capazes de criar ambientes encantadores e atrativos. A cidade só teria a lucrar vendo seus logradouros cotidianos transformados em espaços lúdicos dedicados ao carnaval. É essa simbiose entre a modernidade das novas tecnologias e as antigas tradições que faz nosso carnaval ser o que é.

Felipe Ferreira

Professor do Instituto de Artes da UERJ, coordenador do Centro de Referência do Carnaval, membro do corpo de jurados do Estandarte de Ouro e autor de diversos livros sobre o carnaval

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