Fraudes contra sistema de cotas desafiam instituições de ensino

Comissões de heteroidentificação para conferir a autodeclaração étnico-racial ajudam a reduzir casos e especialistas defendem ampliação do debate

Por Thais Marques | ODS 10ODS 4 • Publicada em 17 de janeiro de 2023 - 08:25 • Atualizada em 23 de janeiro de 2023 - 13:19

Formandos negros: caminho do ensino dificultado pelo racismo que contamina o ambiente escolar. Foto Assufba

Formandos negros: caminho do ensino dificultado pelo racismo que contamina o ambiente escolar. Foto Assufba

Comissões de heteroidentificação para conferir a autodeclaração étnico-racial ajudam a reduzir casos e especialistas defendem ampliação do debate

Por Thais Marques | ODS 10ODS 4 • Publicada em 17 de janeiro de 2023 - 08:25 • Atualizada em 23 de janeiro de 2023 - 13:19

“Eu tenho um amigo que faz Direito que teve sua chance podada por conta de uma fraude. Tanto é que foi aberta uma nova chamada depois, e ele conseguiu entrar”. O relato é de Anna Julia, estudante da UnB já citada na reportagem, mas não é difícil encontrar depoimentos e comentários sobre as fraudes quando o assunto é o sistema de cotas. Via Lei de Acesso à Informação, a reportagem entrou em contato com o Ministério Público Federal (MPF) para ter conhecimento do total de denúncias de fraudes no sistema de cotas das universidades do país. Foi informada a existência de 69 processos até o dia 18 de outubro de 2022.

Leu essas? Todas as reportagens da série Lei de Cotas: 10 anos

O número, no entanto, pode não demonstrar a dimensão do problema, como alertado pela assessoria da Procuradoria da República no Pará, uma vez que “o papel do Ministério Público é a defesa dos direitos coletivos e difusos, atuando quando quem está sendo vítima é toda a sociedade, e não especificamente uma pessoa”. Dessa forma, se um estudante sentir-se prejudicado por conta de uma fraude, a denúncia pode ser realizada a partir da Defensoria Pública ou da advocacia, responsáveis por defender os direitos individuais.

De fato, há pessoas que agem de má-fé, mas eu tenho visto que não é esse o caso principal. As pessoas não têm um letramento racial. Isso não é discutido nas escolas e na sociedade em geral. A questão da raça no Brasil ainda passa por um processo que coloca esse debate como secundário

Ana Paula da Silva
Cientista social e integrante da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da UFF

Para evitar que alunos ingressem nas universidades fazendo uso indevido das políticas afirmativas, o MPF recomenda a criação de comissões de heteroidentificação para conferir a autodeclaração étnico-racial dos candidatos aprovados na reserva de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI). Esse é o trabalho que a cientista social Ana Paula da Silva coordena na Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (AFiDE) da Universidade Federal Fluminense (UFF). A AFiDE foi criada para cooperar com a implantação e o desenvolvimento das políticas de ações afirmativas na instituição. Ligada à reitoria da UFF, a assessoria atua com a comissão de verificação da autodeclaração étnico-racial desde o primeiro semestre letivo de 2017.

Ana Paula começou a trabalhar na UFF em 2014 como professora no campus do município de Santo Antônio de Pádua. Antes de ser Assessora de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade, cargo assumido em janeiro de 2022, ela chegou a atuar como membro da comissão de heteroidentificação, que é composta por três pessoas: um técnico administrativo, um docente e um discente.

Hoje em dia, o processo de averiguação é feito de forma virtual. Os estudantes enviam um vídeo e preenchem um formulário online. Para serem aceitos, precisam da aprovação de pelo menos duas pessoas da comissão. “As bancas de heteroidentificação coibiram bastante as fraudes. O grande problema era quando havia a autodeclaração”, conta Ana Paula.

Embora as comissões sejam importantes para evitar as fraudes, o cenário atual observado pela assessora suscita a necessidade de um trabalho adicional: a promoção do debate racial. “De fato, há pessoas que agem de má-fé, mas eu tenho visto que não é esse o caso principal. As pessoas não têm um letramento racial. Isso não é discutido nas escolas e na sociedade em geral. A questão da raça no Brasil ainda passa por um processo que coloca esse debate como secundário”, alerta Ana Paula.

Cotas e questões de raça: um debate a ser ampliado

A criação da Lei 10.639 em 2003 tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileiras na educação básica em todo o país, mas quase 20 anos depois, a temática ainda não é abordada de maneira consistente e adequada na maioria das escolas. Ana Paula observa que muitos estudantes têm a oportunidade de debater esses assuntos apenas no ensino superior, quando entram em contato com movimentos sociais e coletivos. Essa é uma questão que Marcia Guena, professora universitária na cidade de Juazeiro, na Bahia, também nota no ambiente acadêmico atualmente: “Vemos que muito do que os estudantes sabem , eles só vão conhecer na graduação”.

A professora – do curso de Jornalismo da Uneb – acrescenta que o descumprimento da medida ocorre mesmo em escolas públicas onde a maioria dos alunos é negra, o que afasta essas crianças e esses adolescentes do entendimento de sua própria história. “As vivências são negligenciadas em troca de uma abordagem totalmente descontextualizada”, constata.

Para que, de fato, as ações afirmativas sejam institucionalizadas e continuem sendo uma política pública de sucesso, é necessário fazer com que a sociedade entenda o que elas são e sua importância

Ana Paula da Silva
Cientista social e integrante da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da UFF

Ao excluir a história da luta da população negra no Brasil – um dos temas indicados pela Lei 10.639 – das aulas do ensino básico, os professores, muitas vezes, deixam também de citar a Lei de Cotas, uma conquista que é resultado das articulações do movimento negro no país. Para Ana Paula, o ambiente escolar é um espaço que deve ser aproveitado para sanar possíveis dúvidas e trazer informações cruciais sobre o ingresso nas universidades. “Quem são as pessoas que podem se candidatar às ações afirmativas? Quais os tipos de ações afirmativas que existem? Quais as formas que pessoas pobres podem também acionar as ações afirmativas? Para tudo isso, precisa ter um preparo, um letramento”, explica.

Apesar do cenário desafiador, ainda há escolas e outras instituições que trabalham para garantir maior conscientização sobre os debates raciais e as ações afirmativas no ensino básico. Um exemplo é o Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões de Saberes: Acesso, Permanência e Pós-Permanência da UFRB, do qual a professora Rita Dias participou durante 12 anos. O programa foi criado quando Rita ainda era Pró-Reitora de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis da universidade. Atualmente, 11 alunos participam do projeto, que tem o intuito de desenvolver atividades de pesquisa e extensão para promover políticas de democratização do ensino superior, desde o ingresso até o período posterior à graduação.

Rita conta que uma das atividades do grupo consiste em visitar escolas da região do Recôncavo Baiano para a promoção do acesso às universidades, fornecendo informações sobre o ENEM e as etapas do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), além de auxiliar os estudantes com suas inscrições. “Fazemos também a divulgação das políticas afirmativas, porque muitos estudantes ainda desconhecem o que é o sistema de cotas, e divulgamos os cursos da UFRB em todos os seus campi”, contou.

Mesmo com desafios e pontos a serem aprimorados, para Ana Paula, o sistema de cotas é “uma das políticas públicas mais bem-sucedidas que aconteceram”. A cientista social, que ministra aulas no Instituto do Noroeste de Ensino Superior (INFES/UFF) em Santo Antônio de Pádua, conta que as trajetórias de alunos atendidos pela política demonstram a importância das ações afirmativas para democratizar oportunidades de qualificação superior: “A grande maioria dos meus alunos e das minhas alunas são pessoas da primeira geração que estão na universidade. E são pessoas oriundas das classes trabalhadoras. São filhas de empregadas domésticas, porteiros… É uma região ainda na transição do rural para o urbano, então há muitos filhos de agricultores. É um contingente majoritariamente preto e de origem muito pobre que está tendo oportunidade”, relatou Ana Paula.

A cientista social acredita que as ações afirmativas, não só as cotas raciais, mas de renda e para pessoas com deficiência, devem ser ampliadas, e reforça a necessidade de expandir o entendimento sobre uma política que, apesar de ser um direito, ainda é atacada: “Para que, de fato, as ações afirmativas sejam institucionalizadas e continuem sendo uma política pública de sucesso, é necessário fazer com que a sociedade entenda o que elas são e sua importância (…). Quanto mais diversidade nas universidades, mais o projeto do compartilhamento do conhecimento e das inovações científicas será aprofundado”, defende.

Thais Marques

Jornalista pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, mulher negra e natural do interior do estado do Rio de Janeiro. Atuou na equipe de conteúdo da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) e foi redatora do site Purebreak Brasil, além de possuir experiência em agências de marketing digital. Busca abordar temas sobre direitos humanos, racismo, diversidade, inclusão e meio ambiente.

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