Cotistas: não basta ingressar, é preciso permanecer

Despesas com transporte, alimentação e moradia são alguns dos muitos obstáculos que dificultam a permanência dos estudantes nas universidades

Por Thais Marques | ODS 10ODS 4 • Publicada em 17 de janeiro de 2023 - 08:22 • Atualizada em 25 de janeiro de 2023 - 11:18

A jornalista Karina, que ingressou na UFOP por cotas, hoje é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da universidade. Foto: Ane Souz

A jornalista Karina, que ingressou na UFOP por cotas, hoje é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da universidade. Foto: Ane Souz

Despesas com transporte, alimentação e moradia são alguns dos muitos obstáculos que dificultam a permanência dos estudantes nas universidades

Por Thais Marques | ODS 10ODS 4 • Publicada em 17 de janeiro de 2023 - 08:22 • Atualizada em 25 de janeiro de 2023 - 11:18

Ao entrarem na faculdade, estudantes cotistas precisam se adaptar a uma nova realidade que impõe barreiras no seguimento da formação, como custos com transporte, alimentação e moradia. O acesso aos locais de ensino também é uma questão, uma vez que muitos dependem de meios de locomoção coletivos. Anna Julia, que mora em Sobradinho, cidade satélite de Brasília, diz que para chegar até o campus Darcy Ribeiro há poucos ônibus, que passam em horários inadequados para sua rotina.

Situação semelhante fez parte do cotidiano de Dayhane durante os dois primeiros anos de faculdade, quando morou em Nova Iguaçu, no bairro de Jardim Roma, com uma tia que a ensinou o trajeto até a Uerj, no Rio de Janeiro. A professora saía de casa às 5h para ter aula às 7h, após uma viagem de ônibus e trem. “Se desse algum problema, eu perdia os dois primeiros tempos de aula. Mas era a luta. Eu queria muito fazer a faculdade”, explicou Dayhane.

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No caminho, além dos objetos de estudo, muitas vezes a professora levou também sua refeição, como outros colegas de turma que se reuniam com ela para almoçar na Uerj, uma prática que estreitou laços. Todos do grupo eram cotistas. “Quando íamos comer ao meio-dia, precisávamos cheirar antes para ver se não estava azeda, porque não havia nenhuma geladeira para guardar a marmita”, contou Dayhane.

Se não fossem as políticas de permanência, eu não teria conseguido me graduar

Karina Peres
Jornalista formada pela UFOP

Na época, a universidade estadual ainda não possuía restaurante universitário, popularmente conhecido como “bandejão”, inaugurado em 2011 após muitas reivindicações. Outro avanço nas políticas de acolhimento e permanência na Uerj foi a garantia do apoio financeiro aos estudantes cotistas durante todo o curso universitário, medida instituída pela Lei 5.230, aprovada em 2008. No ano de 2020, em média, 6.093 alunos recebiam bolsa permanência na instituição.

Essa garantia a longo prazo poderia ter evitado a saída de colegas de Dayhane da faculdade. O auxílio oferecido a alunos de baixa renda naquele período era válido apenas para o primeiro semestre da graduação. Com o fim da assistência, muitos cotistas abandonaram o curso porque não possuíam condições financeiras de arcar com os gastos de transporte e alimentação.

Apesar dos avanços em determinadas instituições, a melhoria das condições para a permanência estudantil ainda é uma pauta defendida por estudantes e professores que observam os efeitos da falta de apoio no cotidiano de alunos de baixa renda. “As políticas de acolhimento dos estudantes cotistas são extremamente conservadoras. Mesmo nas universidades que implementaram o sistema de cotas já no começo dos anos 2000, a exemplo da universidade que eu dou aula, a UNEB, há políticas de permanência extremamente frágeis”, relatou Marcia Guena.

A importância de uma política de permanência eficaz se traduz também na trajetória de Karina Peres, de 26 anos, que estudou Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), entre 2015 e 2019. Durante toda a sua formação, a jornalista pôde contar com auxílios financeiros fornecidos pela instituição, além de ter residido em moradia estudantil. “Se não fossem as políticas de permanência, eu não teria conseguido me graduar”, destaca Karina. Antes de iniciar a faculdade, a jovem morava com os pais em uma casa alugada na cidade de Congonhas, em Minas Gerais. Filha de uma empregada doméstica e de um caminhoneiro, ela já sabia que seria difícil para a família pagar pela locação de mais uma habitação, uma vez que precisaria se mudar para o município de Mariana para estudar.

Neste semestre, como havia mais alunos que estavam envolvidos com essas discussões , houve mais produções que falassem disso de forma específica. Mas em outros semestres, não. As outras turmas são muito abraçadas por uma visão fechada de autores brancos e que não são brasileiros

Anna Julia Carvalho
Aluna de Artes Cênicas da UnB

A jornalista, que ingressou na UFOP por meio das cotas para estudantes egressos de escolas públicas, negros e de baixa renda, precisou morar, inicialmente, com sua tia, mas logo conseguiu uma vaga em um dos conjuntos habitacionais da universidade, onde viveu até o fim da graduação. Karina também recebeu bolsa alimentação – garantia de gratuidade no restaurante universitário – e auxílio permanência, uma ajuda financeira que era fornecida mensalmente.

Atualmente, Karina é repórter na TV UFOP e também trabalha em um jornal regional do estado de Minas Gerais. A conexão com a instituição que tão bem lhe acolheu foi estendida, ainda, na formação acadêmica. No início de 2022, ela ingressou no programa de mestrado em Comunicação da universidade. “Vivo por mim mesma e, às vezes, tenho acesso a coisas que eu não teria se não fosse a graduação também. Então, mudaram tudo na minha vida”, conta.

Representatividade combativa

Como muitos outros estudantes na universidade, Karina conta que o contato com textos de autores negros lhe trouxe uma melhor compreensão sobre o racismo e, consequentemente, de sua própria história. “Ajudou a me formar como sujeito mesmo, como uma mulher negra”, explica a mestranda, que atualmente estuda as novas formas de inserção de profissionais negras no jornalismo esportivo. O interesse pelas temáticas sobre raça e diversidade tem sido uma importante ferramenta no combate ao “epistemicídio”, palavra que vem ganhando maior destaque recentemente. Marcia Guena descreve o termo como “o assassinato das epistemologias não brancas”. “É você negar que existem outras formas de compreensão do mundo que não apenas a oriunda das culturas europeias e hegemônicas, as culturas que colonizaram as Américas e a África”, explica.

A jornalista destaca que o cenário atual nas universidades, quase que estritamente eurocêntricas, ainda é desafiador e muito difícil de ser rompido, mas também observa certa mudança nos últimos anos: “Começamos a ver referências de autores e autoras da África, da América Latina, a discussão decolonial. Os filósofos africanos despontando na bibliografia e se tornando lidos e divulgados”.

Para a professora, essa transformação no cenário acadêmico e social ocorre como consequência da Lei de Cotas, que mudou o perfil da universidade e os temas de interesse de pesquisa.  “Os estudantes negros têm trazido outras pautas”, explica ela.

Anna Julia apresenta a performance “Quizumba”, resultado de uma disciplina de Artes Cênicas na UnB. Foto: Humberto Araújo
Anna Julia apresenta a performance “Quizumba”, resultado de uma disciplina de Artes Cênicas na UnB. Foto: Humberto Araújo

Na UnB, Anna Julia Carvalho, aluna de Artes Cênicas, também observa que o engajamento de alunos com assuntos sobre diversidade e inclusão está contribuindo para, aos poucos, combater o “epistemicídio” na instituição: “Neste semestre, como havia mais alunos que estavam envolvidos com essas discussões , houve mais produções que falassem disso de forma específica. Mas em outros semestres, não. As outras turmas são muito abraçadas por uma visão fechada de autores brancos e que não são brasileiros, e essas coisas se reforçam na forma dos professores guiarem as aulas”.

Alunos negros passaram a representar maioria nas universidades públicas do Brasil (50,3%) pela primeira vez em 2018, de acordo com dados no IBGE. O marco contribuiu para reafirmar a importância das ações afirmativas e celebrar uma educação superior mais representativa da sociedade brasileira, uma vez que pessoas pretas e pardas constituem a maior parte da população do país – um total de 56,2%, segundo dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).

Além dos estudantes pretos e pardos, vale destacar que a Lei de Cotas também se destina a pessoas brancas, indígenas e com deficiência egressas de escolas públicas. Nesse sentido, Ana Paula da Silva, cientista social e doutora em Antropologia, defende que o aumento da diversidade nas universidades contribui para o aprofundamento de partilhas de conhecimento e das inovações científicas. Para a doutora, as ações afirmativas são benéficas não só para os diferentes perfis de estudantes que passam a vislumbrar o ensino superior como uma possibilidade em suas vidas, mas também para a economia e a ciência do Brasil. “Eu acho que se a gente quer um país que de fato pense em avanços tecnológicos, precisamos pensar na democratização do ensino”, afirma.

Thais Marques

Jornalista pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, mulher negra e natural do interior do estado do Rio de Janeiro. Atuou na equipe de conteúdo da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) e foi redatora do site Purebreak Brasil, além de possuir experiência em agências de marketing digital. Busca abordar temas sobre direitos humanos, racismo, diversidade, inclusão e meio ambiente.

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