Caso Champinha: crime perverso pôs fim a aventura de adolescentes apaixonados

Caso Champinha: crime perverso pôs fim a aventura de adolescentes apaixonados

Felipe Caffé e Liana Friedenbach, semanas antes do crime bárbaro: casal de adolescentes foi sequestrado, torturado e assassinado (Foto: Reprodução)

Liana e Felipe foram acampar sem avisar os pais: ela foi morta com 15 facadas e uma pancada na cabeça após cinco dias de estupros e torturas; ele levou um tiro na nuca

Por Luiza Souto | ODS 16 • Publicada em 16 de outubro de 2023 - 23:24 • Atualizada em 14 de março de 2024 - 11:46

Em novembro, fará 20 anos que o Brasil se chocou com um dos crimes mais perversos de sua história: um menor de idade, Roberto Aparecido Alves Cardoso, 16 anos, conhecido como Champinha, foi o mentor do sequestro, tortura e assassinato do casal de namorados Liana Friedenbach, 16, e Felipe Caffé, 19, em São Paulo. A adolescente ainda foi estuprada repetidas vezes por outros homens durante cinco dias. Foi o fim trágico do que começou como uma aventura de um casal apaixonado que o #Colabora relembra aqui.

Era agosto de 2003 quando a adolescente Liana Friedenbach, 16, passou a estudar no turno da noite no Colégio São Luís, zona sul de São Paulo, e logo se encantou com Felipe Caffé, 19. O namoro começou um mês depois – e era consentido por ambas as famílias. Mas o casal quis se aventurar e ter um fim de semana só para os dois, sem ninguém saber. E combinaram de acampar num local longe do centro de São Paulo, onde Felipe já havia estado por diversas vezes.

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Aos pais, Liana contou que viajaria à Ilhabela com um grupo de amigos da Congregação Israelita Paulista, e saiu de casa na noite de sexta, dia 31 de outubro. Seu irmão, Ilan, então com 10 anos, sabia da aventura. E uma amiga da escola também. Ela chegou a ficar 40 minutos no telefone com Liana tentando convencê-la a não ir.

Mas Liana estava determinada e, junto ao namorado, passou aquela noite no vão livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo), na Avenida Paulista, para pegar a primeira condução rumo a Embu-Guaçu, nas primeiras horas da manhã seguinte. Sempre em contato com a filha, o advogado Ari Friedenbach ligou para a adolescente às 8h de sábado, e ouviu da jovem que estava no ônibus. Ari estranhou o silêncio, já que estaria junto às amigas, mas Liana disse que todos dormiam. Foi a última vez que o pai ouviu a voz da filha. 

Sítio do Lê, em Embu-Guaçu, onde Liana e Felipe foram sequestrados: "isso é coisa de Champinha", disse um morador (Reprodução / TV Record)
Sítio do Lê, em Embu-Guaçu, onde Liana e Felipe foram sequestrados: “isso é coisa de Champinha”, disse um morador (Reprodução / TV Record)

Sequestro e noite de horror

O casal chegou em Embu-Guaçu – município da Região Metropolitana de São Paulo, a oeste da capital – por volta das 12h, pegou, em seguida, uma van do centro até uma estrada de terra, e montou barraca no chamado Sítio do Lê, uma área abandonada, com matas e rios. 

Paulo César da Silva Marques, então com 32 anos, conhecido como Pernambuco, e Champinha, que completava 17 anos em dezembro, estavam indo caçar tatu na região quando viram o casal. Foi o então menor de idade que teve a ideia de roubar os estudantes.

Naquela noite de 1º de novembro, Liana e Felipe foram surpreendidos pelos dois, armados com facão e espingarda. Numa tentativa de se defender, Liana disse que sua família tinha dinheiro e que poderia pagar por um resgate. Com as cabeças cobertas por toalhas, o casal então foi levado por cerca de dois quilômetros até o casebre de Antônio Caitano Silva, então com 50 anos.

Felipe foi levado para um cubículo e amordaçado por Pernambuco. Em depoimento, Silva contou que chegou a falar para Felipe: “rapaz, mas logo aqui, rapaz” – surpreendido por dois jovens terem escolhido aquele local abandonado para acampar. Champinha levou Liana para um quarto ao lado e a estuprou. A adolescente avisou que era virgem, mas, somente naquela noite, foi violentada seis vezes enquanto Felipe ouvia seus gritos.

“Isso é coisa de Champinha”

Na manhã de domingo, 2 de novembro, ao saberem que Felipe era pobre e tinha um irmão policial, Pernambuco e Champinha decidiram matá-lo. Os dois levaram o casal até uma trilha dentro da mata, e, enquanto o sequestrador adolescente segurava Liana, com olhos vendados, seu cúmplice dava um disparo com a espingarda calibre 28 na nuca de Felipe. O corpo foi atirado de uma ribanceira. 

Após a execução, Pernambuco fugiu, enquanto Champinha levou Liana de volta para a mesma casa de onde haviam saído horas antes. Até que Silva, o dono do lugar, e Agnaldo Pires (47 anos em 2003), chegaram e deram de cara com Liana nua na cama. Pires a violentou, enquanto Silva testemunhava.

Parecia que eles estavam na varanda da casa deles. Não se sensibilizaram em nenhum momento

Angela Saporito
Perita, em entrevista após a reconstituição do crime com Champinha e Pernambuco em 2003

Foi naquele mesmo domingo que Ari descobriu a mentira da filha. Sem notícias de Liana, ele foi até onde o ônibus de excursão da turma de Liana deveria chegar, mas não havia ninguém. Ele então ligou para a melhor amiga da filha, que lhe contou todo o plano. Foi para casa correndo contar para a então esposa, Márcia, até que o filho disse saber de tudo. 

O primeiro movimento de Ari foi ir até a casa de Felipe com um amigo. De lá, seguiram direto para Embu-Guaçu. Ainda de madrugada, a dupla rodou pela região, enquanto os amigos acionaram a polícia. Ari fez um boletim de ocorrência do desaparecimento antes de voltar para casa. Na segunda-feira, nova ida ao local, com outro amigo, e uma investigação paralela à da polícia: Ari saiu mostrando fotos da filha para os moradores, e achou o motorista da van que tinha levado o casal do terminal da cidade até uma estradinha de terra próximo ao Sítio do Léo, onde eles foram sequestrados. 

Foi Ari quem se embrenhou na mata – encontrou a barraca onde Felipe e Liana estavam, e o chinelo colorido da filha. Quando a polícia foi chamada por ele ao local, um dos agentes, conhecido como Fidel, disse a Ari: “isso foi coisa de Champinha”. Era a primeira vez que o advogado ouvia falar no apelido de Roberto. O adolescente já estava na mira da polícia, suspeito de envolvimento no assassinato de duas pessoas. Fora assaltos que teria cometido na região. Com o caso já repercutindo na imprensa, um empresário cedeu um helicóptero para sobrevoar o local e ajudar nas buscas. 

“Matei porque senti vontade”

Era manhã de terça-feira, 4 de novembro, quando Silva, Pires e Champinha levaram Liana à outra casa – de Antônio Matias de Barros, 48 anos – perto de um lago e a quatro quilômetros do cativeiro. Ao chegar, o sequestrador adolescente apresentou a menina como “prima” e “namorada”. E sentou-se para pescar. Liana nada conseguia dizer.

Gilberto, um dos irmãos de Champinha, passou pelo local e avisou que a polícia de Embu-Guaçu estava ouvindo os moradores da região sobre o desaparecimento de um casal. Liana permanecia imóvel enquanto o menor repetia que a garota era sua namorada. Àquela altura, os criminosos já tinham notado a repercussão do caso. Gilberto foi embora sem confrontar o irmão, de quem teria medo.

Na madrugada daquele dia 5, Champinha e Pires voltaram para o cativeiro com Liana quando o adolescente avisou que a libertaria num ponto de ônibus. Ele andou com a vítima por três quilômetros pela “Estrada do Pai” – no meio do caminho, desferiu 15 facadas em Liana. Enquanto ela agonizava, o assassino lhe deu uma pancada com o cabo do facão, provocando traumatismo craniano na adolescente. Depois, Champinha foi para casa, tomou um banho e assistiu televisão.

Somente cinco dias depois, em 10 de novembro, interrogado pela polícia, ele confessou que participara da morte de Felipe e apontou o lugar onde estava o corpo. Mas, num primeiro momento, disse que Liana estava em cativeiro, viva. Os policiais não acreditaram, e, mais tarde, ele também apontou o corpo de Liana. Na época, agentes afirmaram que, durante o depoimento, Champinha disse que matou Liana pelo cerco policial na região. “Matei porque senti vontade de matar”, teria dito.

Pernambuco (de camisa branca) e os outros cúmplices de Champinha apresentados pela polícia: penas pesadas após condenação do júri (Reprodução: TV Record)
Pernambuco (de camisa branca) e os outros cúmplices de Champinha apresentados pela polícia: penas pesadas após condenação do júri (Reprodução: TV Record)

“Liana tá morta. Acabou”

Ari Friedenbach estava na sala do delegado quando um amigo chegou com a trágica notícia. “Liana tá morta. Acabou”, disse o advogado ao telefonar para Márcia. A mãe de Liana até hoje não fala sobre a tragédia.

Quem também estava na delegacia era a mãe de Roberto, Maria das Graças, que repetia “meu filho não fez isso, meu filho não faz uma coisa dessa. Numa entrevista ao UOL, em setembro de 2004, Maria disse que o filho era “um doce em casa” e “que se arrependeu do que fez”. 

Com o depoimento de Champinha, a polícia chegou aos seus cúmplices. Duas semanas depois do crime, a polícia fez a reconstituição do crime com a participação de Champinha e Pernambuco. Foram mais de seis horas de trabalho que começou no Sítio do Lê, onde o casal foi abordado, passou pela  cabana, que serviu de cativeiro aos estudantes, e terminou com a representação dos homicídios. “Parecia que eles estavam na varanda da casa deles. Não se sensibilizaram em nenhum momento”, disse aos jornalistas a perita-chefe do Instituto de Criminalística de Taboão da Serra (Grande SP), Angela Saporito.

O julgamento de três dos quatro adultos – Antonio Caitano Silva, Agnaldo Pires e Antônio Matias  – aconteceu em julho de 2006. Pernambuco foi julgado em separado, no ano seguinte. Nos dois casos, os sete jurados, por unanimidade. declararam os réus culpados.

Antônio Matias de Barros foi sentenciado a seis anos por sequestro, porte de arma e favorecimento pessoal (ao auxiliar a fuga) – já cumpriu a pena.  Antônio Caitano da Silva foi condenado a 26 anos de reclusão por estupro, sequestro qualificado, favorecimento pessoal e porte ilegal de arma, e está em regime aberto desde 2020.  Agnaldo Pires pegou 47 anos pelos múltiplos estupros – teve a pena reduzida e já está em liberdade.  Paulo César, o Pernambuco, cumpre pena de 110 anos em regime fechado por cárcere privado, sequestro, homicídio qualificado e estupro. Por ter cometido crime hediondo, só terá direito a progressão de regime ao completar 40% da pena – 44 anos de reclusão -, em 2051.

Champinha, com 16 anos à época do crime, foi para a antiga Febem, depois Fundação Casa. Sua medida socioeducativa terminou em novembro de 2006, mas, aos 20 anos, em 2007, foi interditado pela Justiça após diagnóstico de TPAS (Transtorno de Personalidade Antissocial) e internado na UES. Perto de completar 37, em dezembro, ele segue no local, sem tratamento e à espera de seu destino.

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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