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Brizola e os avanços que o Brasil jogou fora

Documentário revive a trajetória, as obras, as ideias e a inesquecível oratória do líder trabalhista perseguido pela ditadura militar desde o primeiro dia

ODS 10ODS 16 • Publicada em 5 de abril de 2024 - 00:14 • Atualizada em 5 de abril de 2024 - 11:04

A efeméride das seis décadas do golpe que impôs a ditadura militar ao Brasil, em 1964, atesta o apagamento histórico de vários personagens essenciais para entender – e lamentar – caminhos e escolhas da nossa sociedade. O maior deles, Leonel Brizola. As ideias do trabalhista gaúcho, governador de Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, seguem, 20 anos depois de sua morte, contemporâneas, inovadoras – revolucionárias. E tragicamente abandonadas.

Jamais por acaso, ele se cristalizou como inimigo público número 1 dos conservadores, os militares abrindo a fila. Corajoso na defesa de suas convicções, nunca cedeu a unanimidades nem a consensos artificiais. Pioneiro da polarização, cevou apaixonados que, hoje de cabelos brancos, suspiram de saudade do caudilho.

A paixão dos progressistas foi diretamente proporcional ao ódio dos conservadores – e Brizola pagou caro por ele, a começar pelos exatos 5.489 dias de exílio, o maior entre os políticos banidos pelo arbítrio de 1964. Consequência de ser bem menos pragmático do que manda a bula do “nem eu nem você” da política no país do conchavo.

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“Brizola” também é o nome de documentário dirigido por Marco Abujamra e produzido por Mariana Marinho, incluído no 29º Festival É Tudo Verdade. Vai passar dias 7 e 9, no Rio, e 12 e 13, em São Paulo. Oportunidade preciosa, para brasileiros de todas as idades – os mais jovens conhecerão político único, de características extintas na terra arrasada de hoje; os menos jovens relembrarão a trajetória emocionante.

No exílio, numa fazenda no Uruguai: vida de trabalhador rural. Foto divulgação
No exílio, numa fazenda no Uruguai: vida de trabalhador rural. Foto divulgação

Quando governador, assinou atos únicos na história da gestão pública no Brasil, decretando estatizações de concessionárias privadas – primeiro, a Companhia Elétrica de Pelotas e a Companhia Nacional do Telefone, subsidiárias de multinacionais que bloqueavam a democratização da infraestrutura no Rio Grande do Sul; depois, as empresas de ônibus cariocas, referência de eterno serviço aviltante. Passaram-se os anos – hoje, São Paulo e outras cidades brasileiras comem (no escuro, no calor) o pão que Asmodeu amassou na surrealista incompetência da Enel para fornecer eletricidade.

Favorito na eleição presidencial de 1965, que não aconteceu pela ação de generais golpistas, Brizola desde sempre lutou a batalha da educação de qualidade. Após voltar do exílio com a anistia de 1979, elegeu-se governador do Rio em 1982, na primeira votação direta para o cargo pós-1964. Sua gestão teve como assinatura os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), ideia tão revolucionária como elementar: manter crianças na escola o dia inteiro, alimentadas e submetidas a currículo multidisciplinar.

Não à toa o povo rebatizou as novas escolas de “brizolões”. Além da comida de qualidade, estruturas com piscinas, espaços de arte e quadras poliesportivas, havia respeito por traços sociais eternamente criminalizados no racismo nosso de cada dia. Nas recreações, muitas vezes lideradas por trabalhadores recrutados em comunidades populares, eram encenadas brincadeiras com orixás e cânticos afro-brasileiros. A educação formal ganhava o tempero da cultura mais diversa.

Passados 40 anos da implantação, várias gerações de brasileirinhos poderiam ter vida radicalmente diferente da imposta por nossa inquebrável desigualdade. Mas os Cieps não duraram: foram bombardeados impiedosamente pelos conservadores, com voluntarioso auxílio da mídia.

Na eleição seguinte, em 1986, seu candidato, Darcy Ribeiro, perde para Moreira Franco, em meio a críticas de “excesso de recursos para a educação”. Brizola chegou a destinar 36% do orçamento para o setor e apanhou, porque empenhava pouco dinheiro na segurança. Era criticado também por – nas palavras dos intolerantes – “chamar bandido de cidadão e proibir a polícia de chutar porta de barraco em favela”. O vencedor no pleito ganhou as manchetes ao prometer acabar com a violência do Rio em seis meses. Jornais e TVs acreditaram, extasiados.

Ainda sobre educação, o documentário oferece cena emblemática: num debate, o futuro presidente Fernando Henrique Cardoso elogia timidamente o Cieps, mas critica o preço das escolas, “entre 1 e 2 milhões de dólares e para poucos alunos”. Brizola não deixa barato e esculacha o tucano: “Cara é a ignorância”.

(Em outra obra emblemática, o governador sanou problema até então incurável no Rio, ao construir a Passarela do Samba. Ideia de Darcy Ribeiro projetada por Oscar Niemeyer, deu endereço definitivo ao desfile das escolas de samba, encerrando o monta-desmonta das estruturas para a festa. No bojo, viabilizou o crescimento do espetáculo, hoje evento de repercussão planetária.)

A valorização dos sambistas, da cultura e da religiosidade herdada dos africanos escravizados revela outra faceta supermoderna do brizolismo: era antirracista quando tudo isso aqui era mato. O líder gaúcho tinha entre seus conselheiros o ícone Abdias do Nascimento e o advogado e jornalista Carlos Alberto de Oliveira, o Caó, autor, como deputado, da lei fundamental contra a discriminação. Seu partido, o PDT, ainda abrigou o primeiro deputado federal indígena do país, o cacique Mario Juruna, em 1982.

Com Tancredo e Franco Montoro num comício da campanha por eleições diretas: defesa da democracia. Foto divulgação

Na terra de elite tão patologicamente atrasada, defender todas essas obviedades cobra preço alto. Brizola ganhou dos conservadores o rótulo de comunista, apesar de sempre jogar no campo do capitalismo. Herdeiro político de Getúlio Vargas, lutou apenas por dignidade para os trabalhadores, algo inaceitável na mesquinharia eterna destes trópicos melancólicos. Em verdade, a ditadura, em sua sanha destruidora, sabia quem estava perseguindo, dentro do projeto de manter o país no atraso.

Revisitar a trajetória, as obras e as ideias do caudilho de lenço vermelho no pescoço e oratória brilhante leva à constatação de que o Brasil jogou fora um punhado de oportunidades. Uma catastrófica especialidade da casa.

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