#RioéRua: as ilhas da Guanabara e o mestre-sala das letras

Paquetá, uma das mais conhecidas entre as ilhas da Baía de Guanabara (Foto Oscar Valporto)

Um passeio pela baía levado pelo enredo dos contos de Nei Lopes

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 14 de maio de 2018 - 08:32 • Atualizada em 14 de maio de 2018 - 14:17

Paquetá, uma das mais conhecidas entre as ilhas da Baía de Guanabara (Foto Oscar Valporto)
Paquetá, uma das mais conhecidas entre as ilhas da Baía de Guanabara (Foto Oscar Valporto)
Paquetá, uma das mais conhecidas entre as ilhas da Baía de Guanabara (Foto Oscar Valporto)

Dias depois da morte do cineasta Nelson Pereira dos Santos, minha amiga Flávia Oliveira lançou as candidaturas de Nei Lopes. Martinho da Vila ou Conceição Evaristo para a Academia Brasileira de Letras já que falta preto na casa fundada por Machado de Assis, um neto de escravos alforriados. Com a discussão posterior nas redes sociais, de tons racistas alimentados por alguns cretinos ignorantes que desconheciam a obra dos candidatos, acabei lembrando que ainda não tinha lido o mais recente livro de Nei Lopes, “Nas águas desta Baía há muito tempo”, reunindo contos da Guanabara: histórias de pescadores, marinheiros, escravos, prostitutas, estivadores, índios.

Abri o livro, com direito a autógrafo do mestre (compositor, cantor, historiador, advogado, ensaísta, romancista, contista), e dei logo de cara, em Anunciação, conto inicial, com um passeio pela ilhas da Baía de Guanabara: Nei Lopes citou tantos nomes, que desconfiei até de invenção pois, nessas águas, o autor transforma a história – principalmente do começo do século passado – em cenário para sua ficção. Mas a pesquisa revela que a baía tem, pelo menos, umas 150 ilhas – de velhas conhecidas dos cariocas como a do Governador, a do Fundão e a de Paquetá a outras mais familiares aos nossos vizinhos de Niterói ou São Gonçalo. Muitas delas chegaram ao Século XXI conectadas ao continente por seguidos aterros. Até a Ilha da Conceição, hoje ligada por terra a Niterói, foi um dia cercada de água por todos os lados.

Ilha de Boa Viagem, próxima a Niterói: passeis do outro lado da ponte (Foto Oscar Valporto)
Ilha de Boa Viagem, próxima a Niterói: passeis do outro lado da ponte (Foto Oscar Valporto)

Já estava viajando pelas águas da baía guiado pelas histórias deste mestre-sala das letras quando minha Telma combinou um almoço, no feriado do Dia do Trabalhador, com a amiga Carla Rodrigues, que está morando em Icaraí. E cruzei o mar poluído da Guanabara já de olho nas ilhas de Nei Lopes. Será a Ilha da Laje, aquela na reta do Pão de Açúcar? Será que lá, antes da ponte, é a Ilha das Enxadas? Andarilho gosta de mapa para descobrir e desbravar ruas, mas, a caminho da Praça Arariboia, fico pensando que seria bom ter um mapa das águas da Guanabara para não precisar perguntar como chama a ilha de Niterói com a igrejinha no alto, perto do Museu de Arte Contemporânea. A resposta é Boa Viagem, ilhota hoje ligada ao continente por uma pontezinha para pedestres e que abriga a Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem, erguida por pescadores no século XVIII. A ilha está, há 70 anos, sob os cuidados dos escoteiros do Gavião do Mar, grupo ligado à Marinha do Brasil.

Ilha das Cobras, no céu de outono: arsenal de armas da Marinha (Foto Oscar Valporto)
Ilha das Cobras, no céu de outono: arsenal de armas da Marinha (Foto Oscar Valporto)

Depois de pacificada a disputa entre portugueses e franceses no primeiro século da Guanabara, os pescadores foram os grandes senhores dessas águas, o que durou até a Marinha, já no século XIX, ter um descanso das brigas no litoral brasileiro, começar a se organizar na capital do Império e ir ocupando as ilhas da baía. A Ilha das Cobras, hoje sede do Arsenal de Marinha, e a Ilha de Villegagnon, ocupada pela Escola Naval, são fortificações militares desde o século XVII. Mas a Ilha Fiscal, posto alfandegário por 40 anos, só passou a Marinha nos anos 1930; a Ilha das Enxadas foi comprada em 1869 para ser depósito de material da Armada e hoje abriga um centro de instrução; as ilhas do Boqueirão, comprada pelo governo imperial para ser depósito de pólvora em 1872, e do Rijo, usada inicialmente, em 1910, como sede do Observatório Astronômico e Meteorológico, dividem, hoje, as instalações do Centro de Munição da Marinha. Do outro lado, em São Gonçalo, a Ilha das Flores é base dos Fuzileiros Navais e a Ilha do Engenho abriga o Centro de Mísseis e Submarinos. Essas ilhas  tiveram melhor sorte do que as que foram ocupadas e devastadas por estaleiros: Viana, Caju, Santa Cruz, Tavares. Ou destino pior: a lha D’àgua chegou à primeira metade do século XX como balneário e base de pescadores; na década de 1960, virou terminal de carga e descarga de combustíveis da Reduc.

Encharcado pelas histórias das ilhas, decidi que devia voltar a Paquetá, o que não fazia desde o começo da adolescência. Sempre tive um certo trauma porque não sei andar de bicicleta, limitação que os colegas não perdoavam. Mas, agora já com um mapa mental da baía, viajo na barca, identificando a Ilha das Enxadas à esquerda, antes do Fundão e da Ilha do Governador, a maior da baía com seus 16 bairros. E, do lado direito, vão aparecendo as primeiras das 17 ilhas do arquipélago de Paquetá – inclusive a famosa Ilha do Sol, que foi da estrela Luz Del Fuego e seu clube de naturismo. Menos de uma hora depois de zarpar da Praça XV, desembarco na ilha sem qualquer lembrança de visitas passadas, nem mesmo as ruins. Duas horas de caminhada dá para ter a noção de como são as praias, apreciar a vista da Ilha de Brocoió, onde está o palácio mandado construir por Octávio Guinle (do Copacabana Palace), em 1932, e provar os petiscos do Quintal da Regina e do Zeca’s, participantes do Comida di Buteco. Sem carros, Paquetá continua com aspecto de cidade do interior mas, hoje, tem mais bares, hotéis e rodas de samba – além do vibrante bloco Pérola da Guanabara que, desde 2011, faz um carnaval que começa na ilha, atravessa a baía de barco e deságua na Praça XV.

Praia de José Bonifácio, em Paquetá: ilha ganhou movimento, hotéis e bares (Foto Oscar Valporto):
Praia de José Bonifácio, em Paquetá: ilha ganhou movimento, hotéis e bares (Foto Oscar Valporto):

Volto ao continente mais interessado no cenário da baía do que na geografia das ilhas e levado por sambas de Nei Lopes, quase todos em parceria com Wilson Moreira. Cantarolei dos sucessos “Senhora liberdade” e “Gostoso veneno” aos clássicos das rodas Irajá e Cadongueiro, passando – de passagem porque a memória não ajudou – pelo emocionante “Silêncio de bamba”: “No meio de toda euforia/ Nossa escola chorava/ Obedecendo a harmonia/A batucada calava/ Instrumentos em funeral/Enrolavam a bandeira do samba/ Era silêncio de um bamba”. Dá para entender porque este mestre-sala das letras – autor também  de “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana” e “Dicionário Literário Afro-brasileiro” – não queira tomar chá com aquela maioria de chatos que ocupa as cadeiras da Academia e tenha deixado este estandarte negro para a professora, poeta e romancista Conceição Evaristo. Deve preferir continuar evoluindo com uma cerveja na mão pelas rodas de samba e de conversa ao redor da sua Baía de Guanabara.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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Um comentário em “#RioéRua: as ilhas da Guanabara e o mestre-sala das letras

  1. armando freitas disse:

    amigo Oscar.
    Nunca fui a Paquetá, falha imperdoável para um carioca que viveu no Rio desde sempre. Mas inspirado pela sua crônica, acho que farei em breve esse passeio, de preferência após ler o livro do Nei. E, como você, estarei atento às muitas ilhas das quais quase nunca nos damos conta de que existem – imaginando como deviam ser paradísíacas nos tempos pré-Cabral (não o governador, claro).
    Aliás, voltando ao século XV, recomendo a leitura do livro do colega Rafael Freitas “O Rio antes do Rio”, em que ele narra, a partir de uma incrível pesquisa histórica, como era a vida dos índios que habitavam o que é hoje o Rio de Janeiro e o entorno da Baía de Guanabara. Cabral descobriu o Brasil? Piada de mau gosto. Os índios já haviam descoberto há muitos séculos. abração

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