Muito mais do que um novo idioma

Os professores das oito turmas de inglês, espanhol, árabe e francês do projeto Abraço Cultural

Refugiados de Congo, Síria e Venezuela dão aulas de língua e trocam experiências no Rio

Por Adriana Pavlova | ODS 1ODS 4 • Publicada em 26 de abril de 2016 - 08:00 • Atualizada em 26 de abril de 2016 - 11:14

Os professores das oito turmas de inglês, espanhol, árabe e francês do projeto Abraço Cultural
Os professores das oito turmas de inglês, espanhol, árabe e francês do projeto Abraço Cultural
Os professores das oito turmas de inglês, espanhol, árabe e francês do projeto Abraço Cultural

O casarão de dois andares numa rua arborizada em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, não está no melhor estado de conservação. Lá dentro, nas duas salas, as cadeiras são de plástico, não há mesa para apoiar o material, o quadro branco é pequeno, as janelas estão abertas e, para espantar o calor, a solução é ligar o ventilador de teto. Nada disso, no entanto, parece atrapalhar a concentração dos alunos e o bom humor dos professores. É num clima amistoso, como um encontro de velhos conhecidos, que as aulas do curso Abraço Cultural vêm acontecendo desde fins de março, de segunda a quinta-feira, sempre à noite.

A violência estava chegando cada vez mais perto e ainda havia o perigo imediato de sermos convocados para o Exército. Aqui fui acolhido, consegui entrar na Universidade Federal do Rio de Janeiro para estudar Química, que era o mesmo que iria estudar no meu país, estou dando aulas, conhecendo pessoas, enquanto isso, meus amigos que escolheram fugir para a Europa estão em campos de refugiados, sem conseguirem fazer nada.

O projeto que começou com sucesso em São Paulo, no ano passado, tem uma engenhosa fórmula colaborativa: de um lado, refugiados estrangeiros precisando ganhar dinheiro; do outro, gente curiosa querendo aprender um outro idioma sem gastar muito, com vontade de ajudar o outro e, ao mesmo tempo, de mergulhar mais profundamente em outros mundos, através de encontros culturais. O marketing do bem parece ter sido certeiro. Todas as oito turmas de francês árabe, inglês e espanhol oferecidas neste primeiro semestre estão cheias – com entre 10 e 12 alunos, que era o que havia sido previsto – e os iniciantes já estão começando a arriscar suas primeiras palavras e frases em outras línguas.

“A troca me interessou. Vim em busca de um novo idioma, estou recebendo mais do que esperava de uma outra cultura e ainda estou ajudando”, conta o biólogo Victor Cury, 25 anos, bisneto de sírios, que na terceira semana de aulas já parecia estar muito à vontade com a diversidade de sons da língua árabe. “Ter aula com alguém do próprio país é muito mais estimulante. O Adel (o professor que é sírio) é muito criativo para ensinar sons que nunca produzimos. Numa aula, ele trouxe um copinho de água para cada aluno para ensinar um som igual ao do gargarejo. E todo mundo teve que gargarejar no meio da sala.”

Ao todo são oito professores (três do Congo, três sírios e dois venezuelanos) dando aulas de uma hora e meia duas vezes por semana, para alunos que pagam R$ 200 por mês – um valor bem abaixo dos cursos regulares de idioma. A proposta didática inovadora, que prioriza a comunicação do dia a dia a partir da experiência de cada professor, inclui ainda eventos culturais, de 15 em 15 dias, reunindo alunos e mestres em torno de um tema. O primeiro, que aconteceu em abril, foi o Mundo Latino.

Entre uma aula e outra, o curso de salsa ministrado por professores venezuelanos
Entre uma aula e outra, o curso de salsa ministrado por professores venezuelanos

Na quadra nos fundos do mesmo espaço onde acontecem as aulas, a coordenação caprichou. Enfeitou com bandeirinhas coloridas, fez cartazes com ícones da música latina e ainda convidou outros refugiados para venderem comida. Tinha uma família colombiana vendendo arepas, quitute típico feito de farinha de milho com recheios variados, e um senhor venezuelano oferecendo empanadas. O ponto alto foi a aula de salsa ministrada pelos professores venezuelanos. Um deles, o engenheiro Ender Molina, 28 anos, que chegou ao Brasil em fevereiro do ano passado, parecia bem satisfeito com o emprego depois de ter trabalhado até em lanchonete. Próximo dele, o professor de árabe Adel Bakkour de 23 anos, conversava com os alunos, num clima de confrades. Desde 2012 no Rio de Janeiro, este é seu primeiro trabalho menos braçal. Antes, ele havia trabalhado num restaurante árabe, em Copacabana.  Os professores têm um salário mensal de R$ 1 mil.

“Finalmente estou confortável e me divertindo num emprego”, conta ele, que fugiu com o irmão mais novo de sua cidade natal, Alepo, na divisa da Turquia, numa rota que passou por Istambul e São Paulo até chegar ao Rio, onde uma irmã já morava. “A violência estava chegando cada vez mais perto e ainda havia o perigo imediato de sermos convocados para o Exército. Aqui fui acolhido, consegui entrar na Universidade Federal do Rio de Janeiro para estudar Química, que era o mesmo que iria estudar no meu país, estou dando aulas, conhecendo pessoas, enquanto isso, meus amigos que escolheram fugir para a Europa estão em campos de refugiados, sem conseguirem fazer nada.”

A rede que tornou o Abraço Cultural possível tem o toque do pessoal do Atados – plataforma on-line que faz a ligação entre voluntários e organizações não-governamentais – e apoio precioso do Programa de Assistência a Refugiados(as) e Solicitantes de Refúgio da Cáritas, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Nesse caldeirão cultural, a casa que abriga as aulas é sede do movimento juvenil judaico sionista socialista Habonim Dror, cedida sem custo para o Abraço. E, por enquanto, as duas coordenadoras são voluntárias. Mas pela grande procura, em breve serão capacitados mais professores e oferecidas mais turmas. Agora falta somente ter mais espaço.

“Fomos surpreendidos pela procura, poderíamos ter o dobro de turmas que ficaria lotado. Precisamos achar um espaço para abrigar novas turmas que seja gratuito, porque nossa prioridade é capacitar mais refugiados e pagar a todos pelo trabalho”, diz a coordenadora Tatiana Rodrigues.

Adriana Pavlova

Trabalhou durante 13 anos no jornal O Globo, de onde saiu em 2005 para morar em São Paulo. Foi setorista de dança na Folha de S. Paulo de 2007 a 2010 e colaborou regularmente com as revistas Época São Paulo e Exame. De volta ao Rio, é crítica de dança do Globo desde 2013. Em 2015 tornou-se mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola de Comunicação da UFRJ.

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5 comentários “Muito mais do que um novo idioma

  1. Carla Boechat disse:

    Que legal saber desses projetos aqui pertinho da gente.
    Estava morando na Europa recentemente e vi muitos refugiados em situação mais delicada, algumas vezes barrados por dias nas fronteiras de países onde eram proibidos de entrar, em lugares onde não havia mais nada além de uma estrada, e dependendo de pessoas que iam até lá para ajudar com doações. Eu mesma fui até a fronteira da Croácia com a Eslovênia para doar roupas e alimentos.
    Que bom saber de histórias que tiveram um rumo diferente 🙂

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