Bactérias na moda

Peças expostas no Museu do Amanhã: ao centro, bolsa de kombucha, adaptável à bicicleta, com sinalização noturna em LED. Trabalho da artista Mônica Bentes. Foto: Guilherme Leporace

Pesquisas com tecidos feitos a partir de micro-organismos vivos ganham força em todo o mundo e são destaque em exposição no Rio

Por Paula Autran e Reneé Rocha | ODS 12 • Publicada em 20 de agosto de 2017 - 07:32 • Atualizada em 21 de agosto de 2017 - 16:25

Peças expostas no Museu do Amanhã: ao centro, bolsa de kombucha, adaptável à bicicleta, com sinalização noturna em LED. Trabalho da artista Mônica Bentes. Foto: Guilherme Leporace
Exposição no Museu do Amanhã: ao centro, bolsa de kombucha, adaptável à bicicleta, com sinalização noturna em LED. Trabalho da artista Mônica Bentes. Foto: Guilherme Leporace

Que tal sair por aí com um lindo vestido de bactérias? Estranho? Acredite: tem tudo para fazer o maior sucesso. E você ainda pode incrementar o look com bolsas e sapatos feitas do mesmo material. Bactérias estão na moda. Melhor explicar: em vários países, inclusive no Brasil, estão sendo feitas pesquisas e desenvolvidos protótipos de tecidos confeccionados a partir desses micro-organismos vivos, na busca de alternativas para tornar o mundo fashion mais sustentável. O chamado biotecido, desenvolvido em laboratórios, não é feito a partir de fios, como o convencional. O método é uma adaptação do usado desde os anos 220 antes de Cristo para obter o kombusha (pronuncia-se kombutcha ou kombuchá), chá de origem chinesa, feito a partir de uma colônia de bactérias aglomeradas em uma massa de celulose parecida com uma panqueca. Misturada a chá preto e açúcar, essa mistura transforma-se em uma bebida doce e azeda, com fragrância frugal, considerada excelente para a saúde. A camada fibrosa de celulose formada por bactérias ganhou status de biotecido. Seca, ela está pronta ser tingida, recortada e costurada.

Quem ficou curioso tem a oportunidade de ver de perto modelos, digamos, com um charme bacteriano, na exposição “Interface Interlace”, que foi aberta no dia 14 de julho e fica em cartaz até 15 de novembro, no Museu do Amanhã, no Rio. São ao todo 19 peças, que vão do biquíni a vestido de noiva (cortado a laser), passando por mochilas para ciclistas.

A indústria da moda de alto consumo, assim como a do petróleo, é uma das mais nocivas ao planeta, na atualidade. Ela usa trabalho escravo, gasta muita água (a confecção de uma calça jeans exige 11 mil litros)… Para se produzir o algodão – um dos materiais mais usados – é necessário muito agrotóxico. Lançar coleções, mensalmente, nessas condições não é sustentável

A  designer de moda inglesa Suzanne Lee, pesquisadora da Central Saint Martins, respeitada escola de artes e design, em Londres, é pioneira na elaboração de tecidos biológicos, feitos a partir de bactérias – um trabalho que une biotecnologia e nanotecnologia. Sua pesquisa, em parceria com o cientista David Hepworth, deu origem ao projeto Biocouture, para o desenvolvimento de produtos com matérias-primas naturais. O objetivo é questionar a lógica da cadeia produtiva da moda, que tem indústrias – como as do couro e do algodão – entre as consideradas mais nocivas ao meio ambiente.

Tecido biológico sendo desenvolvido, em oficina no Laboratório de Atividades do Museu do Amanhã. Foto: Divulgação/Olabi

A pesquisa de Suzanne  despertou o interesse da turma do Olabi, no Rio, organização social que se propõe “a democratizar a produção de tecnologia, em busca de um mundo socialmente mais justo”. “Achamos o protocolo da Suzanne na internet e passamos a replicar aqui”, conta Gabriela Agustini, à frente do Olabi, que conta com um laboratório de inovação, para pesquisas relacionadas à biotecnologia. Nada muito complexo, ressalva Gabriela. “Não trabalhamos com engenharia genética, por exemplo. São coisas fáceis, como fazer a massa de um pão. Mas em vez de fazer essa massa, que já é senso comum, pensamos em tecidos a partir desse tipo de matéria-prima: simples, disponível e barata”, conta, acrescentando que o foco do Olabi nunca foi o produto final. “Só desenvolvemos o tecido, não confeccionamos roupas, etc. Somos um clube de troca de experiências. Estimulamos discussões, reflexões e ações práticas nesse campo”.

Foi também a partir de um laboratório de experimentações – o Laboratório de Atividades do Amanhã (LAA) – que o biotecido chegou ao Museu do Amanhã e acabou como uma das estrelas da exposição “Interface Interlace”. “A indústria da moda de alto consumo, assim como a do petróleo, é uma das mais nocivas ao planeta, na atualidade. Ela usa trabalho escravo, gasta muita água (a confecção de uma calça jeans exige 11 mil litros)… Para se produzir o algodão – um dos materiais mais usados – é necessário muito agrotóxico. Lançar coleções, mensalmente, nessas condições não é sustentável. Queremos provocar essa indústria”, diz Marcela Sabino, diretora do LAA.

Segundo ela, o foco do trabalho é o “desenvolvimento da moda no sentido de promover o bem estar humano. Uma moda que sirva para além de cobrir o nosso corpo, mas para aumentar nossas capacidades”. Em janeiro deste ano, o laboratório criou o Programa de Tecnologia na Moda e lançou um projeto de residência artística. “Recebemos 160 inscrições. Eram estilistas, designers de produtos, tecnólogos… Ensinamos o processo e eles foram desenvolvendo projetos e protótipos”.

Um importante parceiro do Laboratório de Atividades do Amanhã no desenvolvimento do biotecido foi a Biotecam, empresa que desenvolve tecnologias para estações de esgoto. “Eu fazia parte de uma comitiva da Coppe/UFRJ, onde estamos incubados, que tratava de um problema no museu. E soube que o laboratório tinha a ideia de produzir o biotecido. Falei: ‘Ei, eu sei fazer isso’. Foi assim que entramos como parceiros”, relembra o engenheiro químico Ricardo Amaral, sócio da empresa. Com pós-graduação na área de biotectecnologia, ele conta que, há mais de 20 anos, participou de um projeto que usava o método de produção de biotecido no tratamento de pessoas com queimaduras. “Como era para aplicação médica, o processo era um pouco mais complicado”, conta.

Alunos na oficina de biodesign: experiências para uma moda mais sustentável. Foto: Divulgação/Olabi

Ricardo deu um workshop  para os participantes do programa de residência artística do Laboratório de Atividades do Amanhã, a fim de ajudá-los no desenvolvimento dos biotecidos.  “Fomos fazendo alterações a partir do que os designers e modelistas queriam desenvolver: mais liso, mais áspero, de diferentes cores, com ou sem costuras…Uma experiência muito rica e interessante”.

A bactéria usada para produzir o tecido é a  Acetobacter Xylinum, encontrada normalmente em resíduos de vinagre. O processo é o mesmo usado para obter iogurte, queijo ou Yakult: a partir da multiplicação de microorganismos. É preciso isolar a bactéria, viva, da natureza, através de uma cultura feita com chá e açúcar. “Também se pode usar leveduras de panificação ou próprias para fermentar cerveja. Para o biotecido da exposição, usamos sorbitol e glicose, já que o açúcar comum (sacarose) não é o ideal. Para acelerar o processo, acrescentamos um xarope de vitaminas, como a C, em vez de chá”, diz Ricardo. “Diferentemente dos chineses, não estávamos interessados em fazer chá, e sim na superfície dele, onde se forma um filme (como uma nata). O tempo necessário para essa formação depende de qual será a finalidade do tecido. Para uso médico, bastam dois dias, já que este tipo de biotecido precisa ser fino. No caso da moda, é necessário mais tempo. Para dar a aparência de couro, por exemplo, esperamos de duas a três semanas. Para dar a cor, usamos pigmentos naturais”, ensina o engenheiro químico.

Para a confecção das peças em exposição no Museu do Amanhã foram produzidas cerca de 100 placas de tecido, medindo aproximadamente 40cm x 50cm, cada. “Muita coisa deu errada durante os processos. Mas usamos os erros para aprender, como um estímulo para as pessoas entenderem que não é fácil, mas sempre podemos dar um jeito”, conta Marcela. “No processo de desenvolvimento de uma das peças, por exemplo, apareceu um fungo. Resolvemos investir nesse padrão para a confecção de uma bolsa”.

Projeto experimental de sapato, assinado pela artista Liz Unikowski. Foto: Guilherme Leporace

Como as bactérias, os fungos, de forma geral, têm uma imagem negativa, sempre associada a doenças. “Mas sem fungos também não temos pão ou cerveja. O próprio chocolate é um produto fermentado. Só que nem todo mundo conhece os processos biológicos. E os fungos podem dar padrões aos biotecidos”, observa Ricardo. “Há um apelo no mundo da moda por soluções como essas, pois a indústria que usa couro e algodão é muito danosa ao meio ambiente. O maior charme dessa técnica é combinar duas coisas que têm cada vez mais atraído as pessoas: a possibilidade de produzir em casa, a partir de ingredientes naturais”.

Como os micro-organismos, as ideias para uso do biotecido na moda estão por aí, se reproduzindo. Mas uma das grandes questões, no momento, é a da escala de produção. Para quem ficou com nojinho ou incomodado com a possibilidade de sair por aí envolvido em micro-organismos vivos, uma última informação: quando a peça fica pronta, é feito um tratamento para retirar as bactérias do biotecido, até para não estragar o produto.  Que tal vestir a camisa da sustentabilidade na moda?

Paula Autran e Reneé Rocha

Paula Autran e Reneé Rocha se completam. No trabalho e na vida. Juntos, têm umas quatro décadas de jornalismo. Ela, no texto, trabalhou no Globo por 17 anos, depois de passar por Jornal do Brasil, O Dia e Revista Veja, sempre cobrindo a cidade do Rio. Ele, nas imagens (paradas ou em movimento), há 20 anos bate ponto no Globo. O melhor desta parceria nasceu no mesmo dia que o #Colabora: 3 de novembro de 2015. Chama-se Pedro, e veio fazer par com a irmã, Maria.

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