ODS 1
Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. Conheça as reportagens do Projeto Colabora guiadas pelo ODS 1.
Veja mais de ODS 1Que tal sair por aí com um lindo vestido de bactérias? Estranho? Acredite: tem tudo para fazer o maior sucesso. E você ainda pode incrementar o look com bolsas e sapatos feitas do mesmo material. Bactérias estão na moda. Melhor explicar: em vários países, inclusive no Brasil, estão sendo feitas pesquisas e desenvolvidos protótipos de tecidos confeccionados a partir desses micro-organismos vivos, na busca de alternativas para tornar o mundo fashion mais sustentável. O chamado biotecido, desenvolvido em laboratórios, não é feito a partir de fios, como o convencional. O método é uma adaptação do usado desde os anos 220 antes de Cristo para obter o kombusha (pronuncia-se kombutcha ou kombuchá), chá de origem chinesa, feito a partir de uma colônia de bactérias aglomeradas em uma massa de celulose parecida com uma panqueca. Misturada a chá preto e açúcar, essa mistura transforma-se em uma bebida doce e azeda, com fragrância frugal, considerada excelente para a saúde. A camada fibrosa de celulose formada por bactérias ganhou status de biotecido. Seca, ela está pronta ser tingida, recortada e costurada.
Quem ficou curioso tem a oportunidade de ver de perto modelos, digamos, com um charme bacteriano, na exposição “Interface Interlace”, que foi aberta no dia 14 de julho e fica em cartaz até 15 de novembro, no Museu do Amanhã, no Rio. São ao todo 19 peças, que vão do biquíni a vestido de noiva (cortado a laser), passando por mochilas para ciclistas.
A indústria da moda de alto consumo, assim como a do petróleo, é uma das mais nocivas ao planeta, na atualidade. Ela usa trabalho escravo, gasta muita água (a confecção de uma calça jeans exige 11 mil litros)… Para se produzir o algodão – um dos materiais mais usados – é necessário muito agrotóxico. Lançar coleções, mensalmente, nessas condições não é sustentável
A designer de moda inglesa Suzanne Lee, pesquisadora da Central Saint Martins, respeitada escola de artes e design, em Londres, é pioneira na elaboração de tecidos biológicos, feitos a partir de bactérias – um trabalho que une biotecnologia e nanotecnologia. Sua pesquisa, em parceria com o cientista David Hepworth, deu origem ao projeto Biocouture, para o desenvolvimento de produtos com matérias-primas naturais. O objetivo é questionar a lógica da cadeia produtiva da moda, que tem indústrias – como as do couro e do algodão – entre as consideradas mais nocivas ao meio ambiente.
A pesquisa de Suzanne despertou o interesse da turma do Olabi, no Rio, organização social que se propõe “a democratizar a produção de tecnologia, em busca de um mundo socialmente mais justo”. “Achamos o protocolo da Suzanne na internet e passamos a replicar aqui”, conta Gabriela Agustini, à frente do Olabi, que conta com um laboratório de inovação, para pesquisas relacionadas à biotecnologia. Nada muito complexo, ressalva Gabriela. “Não trabalhamos com engenharia genética, por exemplo. São coisas fáceis, como fazer a massa de um pão. Mas em vez de fazer essa massa, que já é senso comum, pensamos em tecidos a partir desse tipo de matéria-prima: simples, disponível e barata”, conta, acrescentando que o foco do Olabi nunca foi o produto final. “Só desenvolvemos o tecido, não confeccionamos roupas, etc. Somos um clube de troca de experiências. Estimulamos discussões, reflexões e ações práticas nesse campo”.
Foi também a partir de um laboratório de experimentações – o Laboratório de Atividades do Amanhã (LAA) – que o biotecido chegou ao Museu do Amanhã e acabou como uma das estrelas da exposição “Interface Interlace”. “A indústria da moda de alto consumo, assim como a do petróleo, é uma das mais nocivas ao planeta, na atualidade. Ela usa trabalho escravo, gasta muita água (a confecção de uma calça jeans exige 11 mil litros)… Para se produzir o algodão – um dos materiais mais usados – é necessário muito agrotóxico. Lançar coleções, mensalmente, nessas condições não é sustentável. Queremos provocar essa indústria”, diz Marcela Sabino, diretora do LAA.
Segundo ela, o foco do trabalho é o “desenvolvimento da moda no sentido de promover o bem estar humano. Uma moda que sirva para além de cobrir o nosso corpo, mas para aumentar nossas capacidades”. Em janeiro deste ano, o laboratório criou o Programa de Tecnologia na Moda e lançou um projeto de residência artística. “Recebemos 160 inscrições. Eram estilistas, designers de produtos, tecnólogos… Ensinamos o processo e eles foram desenvolvendo projetos e protótipos”.
Um importante parceiro do Laboratório de Atividades do Amanhã no desenvolvimento do biotecido foi a Biotecam, empresa que desenvolve tecnologias para estações de esgoto. “Eu fazia parte de uma comitiva da Coppe/UFRJ, onde estamos incubados, que tratava de um problema no museu. E soube que o laboratório tinha a ideia de produzir o biotecido. Falei: ‘Ei, eu sei fazer isso’. Foi assim que entramos como parceiros”, relembra o engenheiro químico Ricardo Amaral, sócio da empresa. Com pós-graduação na área de biotectecnologia, ele conta que, há mais de 20 anos, participou de um projeto que usava o método de produção de biotecido no tratamento de pessoas com queimaduras. “Como era para aplicação médica, o processo era um pouco mais complicado”, conta.
Ricardo deu um workshop para os participantes do programa de residência artística do Laboratório de Atividades do Amanhã, a fim de ajudá-los no desenvolvimento dos biotecidos. “Fomos fazendo alterações a partir do que os designers e modelistas queriam desenvolver: mais liso, mais áspero, de diferentes cores, com ou sem costuras…Uma experiência muito rica e interessante”.
A bactéria usada para produzir o tecido é a Acetobacter Xylinum, encontrada normalmente em resíduos de vinagre. O processo é o mesmo usado para obter iogurte, queijo ou Yakult: a partir da multiplicação de microorganismos. É preciso isolar a bactéria, viva, da natureza, através de uma cultura feita com chá e açúcar. “Também se pode usar leveduras de panificação ou próprias para fermentar cerveja. Para o biotecido da exposição, usamos sorbitol e glicose, já que o açúcar comum (sacarose) não é o ideal. Para acelerar o processo, acrescentamos um xarope de vitaminas, como a C, em vez de chá”, diz Ricardo. “Diferentemente dos chineses, não estávamos interessados em fazer chá, e sim na superfície dele, onde se forma um filme (como uma nata). O tempo necessário para essa formação depende de qual será a finalidade do tecido. Para uso médico, bastam dois dias, já que este tipo de biotecido precisa ser fino. No caso da moda, é necessário mais tempo. Para dar a aparência de couro, por exemplo, esperamos de duas a três semanas. Para dar a cor, usamos pigmentos naturais”, ensina o engenheiro químico.
Para a confecção das peças em exposição no Museu do Amanhã foram produzidas cerca de 100 placas de tecido, medindo aproximadamente 40cm x 50cm, cada. “Muita coisa deu errada durante os processos. Mas usamos os erros para aprender, como um estímulo para as pessoas entenderem que não é fácil, mas sempre podemos dar um jeito”, conta Marcela. “No processo de desenvolvimento de uma das peças, por exemplo, apareceu um fungo. Resolvemos investir nesse padrão para a confecção de uma bolsa”.
Como as bactérias, os fungos, de forma geral, têm uma imagem negativa, sempre associada a doenças. “Mas sem fungos também não temos pão ou cerveja. O próprio chocolate é um produto fermentado. Só que nem todo mundo conhece os processos biológicos. E os fungos podem dar padrões aos biotecidos”, observa Ricardo. “Há um apelo no mundo da moda por soluções como essas, pois a indústria que usa couro e algodão é muito danosa ao meio ambiente. O maior charme dessa técnica é combinar duas coisas que têm cada vez mais atraído as pessoas: a possibilidade de produzir em casa, a partir de ingredientes naturais”.
Como os micro-organismos, as ideias para uso do biotecido na moda estão por aí, se reproduzindo. Mas uma das grandes questões, no momento, é a da escala de produção. Para quem ficou com nojinho ou incomodado com a possibilidade de sair por aí envolvido em micro-organismos vivos, uma última informação: quando a peça fica pronta, é feito um tratamento para retirar as bactérias do biotecido, até para não estragar o produto. Que tal vestir a camisa da sustentabilidade na moda?
Paula Autran e Reneé Rocha se completam. No trabalho e na vida. Juntos, têm umas quatro décadas de jornalismo. Ela, no texto, trabalhou no Globo por 17 anos, depois de passar por Jornal do Brasil, O Dia e Revista Veja, sempre cobrindo a cidade do Rio. Ele, nas imagens (paradas ou em movimento), há 20 anos bate ponto no Globo. O melhor desta parceria nasceu no mesmo dia que o #Colabora: 3 de novembro de 2015. Chama-se Pedro, e veio fazer par com a irmã, Maria.