A nova safra do racismo: trabalho escravo nas vinícolas e o Caso Evandro

A entidade de Bento Gonçalves, o vereador gaúcho e os PMs do Paraná nada fizeram de inacreditável, apenas reproduziram lógica escravocrata

Por Fernando Molica | ArtigoODS 16ODS 8 • Publicada em 7 de março de 2023 - 09:44 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:12

Trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão abrigados em ginásio de Bento Gonçalves: trabalho escravo em vinícolas e Caso Evandro mostram renovação do racismo e da lógica escravocrata (Foto: MPT-RS/Divulgação)

De vez em quando a vida trata de fazer uma espécie de edição de fatos, de criar ligações. Num mesmo dia, semana passada, terminei de ver a série ‘Caso Evandro’, dirigida por Aly Muritiba e Michelle Chevrand, e soube da nota de uma associação empresarial de Bento Gonçalves e das declarações de um vereador de Caxias do Sul sobre os trabalhadores escravizados em três vinícolas gaúchas.

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O racismo, que, ao lado da cúmplice escravidão, é um dos marcos fundadores da sociedade brasileira, fica evidente no episódio dos trabalhadores recrutados na Bahia e permeia a investigação sobre o desaparecimento de um menino (Evandro) em Guaratuba, no litoral paranaense, em 1992. O documentário, de 2021, mostra como o preconceito contra religiões de matrizes africanas foi decisivo para a prisão de sete suspeitos, alguns deles chegaram a ser condenados com base em confissões obtidas sob tortura.

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Ao tratar do caso dos trabalhadores, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves afirmou que o episódio está relacionado à falta de mão de obra gerada por um “sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. Reforçou o preconceito contra os mais pobres e disse que o Bolsa Família de R$ 600, menos da metade do salário mínimo, desestimula o trabalho.

O vereador Sandro Fantinel (Patriotas) foi explícito na sua manifestação racista. Ironizou as queixas dos trabalhadores, afirmou que baianos só sabem tocar tambor na praia, sugeriu que o pessoal “lá de cima” não voltasse a ser contratado e, ao elogiar os argentinos, disse que eles eram “limpos”, adjetivo usado em contraposição a supostas características dos vindos da Bahia.

Ao investigar – irregularmente, já que esta não é sua função – o sumiço do menino Evandro Ramos Caetano, a PM do Paraná encontrou num pai de santo – Osvaldo Marcineiro – o fio da meada para uma suposta elucidação do crime. Marcineiro é branco, mas praticava uma religião de pretos e era um forasteiro. Foi o suficiente para se falar em “magia negra”, expressão de óbvio viés racista.

A violência física, outro componente estrutural brasileiro, está presente nos dois casos. Os baianos escravizados contaram que foram espancados; há indícios de participação de policiais nas agressões. Gaúchos também contratados para a colheita das uvas ressaltaram que apenas os nordestinos eram agredidos.

Para confessar um crime que não cometeram, os suspeitos de Guaratuba sofreram torturas que acabariam comprovadas por fitas gravadas durante interrogatórios ilegais. Nenhuma novidade: não faz tanto tempo assim – 135 anos, algo insignificante em termos históricos -, comprar, vender, violentar e açoitar seres humanos era um direito dos que eram donos de pessoas escravizadas. Até hoje, boa parte da sociedade aceita a tortura.

A memória e o peso da escravidão ainda são muito presentes – meus avós maternos nasceram em 1900, apenas 12 anos depois da Abolição. Conviveram com ex-escravizados, com negros largados nas ruas, vítimas do descaso oficial. A escravidão existiu e existe em diferentes civilizações, mas, nas Américas, tem um traço particular, a cor da pele, algo que diferencia e marca, que facilita a discriminação e a negação de direitos para uma grande parcela da população.

Em redes sociais, muita gente disse que a nota da entidade e as declarações do vereador eram inacreditáveis. Não, são até previsíveis num país que teima em não se reconhecer, em que tantos lutam para manter privilégios. Pessoas que insistem em considerar como seu apenas um país branco, de origem majoritariamente europeia. Fenômeno existente até em estados em que a população negra é grande maioria, como canta Gilberto Gil em Tradição, ao citar um famoso clube de Salvador: “(…) preto não entrava no Bahiano/ Nem pela porta da cozinha”.

Essa apartação tem até um componente psicológico – quando negam o Brasil negro, muitos procuram esconder as próprias raízes africanas, presentes em praticamente todos nós. Este é um dos nossos maiores paradoxos – somos, quase todos, descendentes de escravocratas e de escravizados, de estupradores e de estupradas; nossos antepassados chicotearam e foram chicoteados. Negar nossa origem apenas agrava nossas contradições e aumenta o tamanho da injustiça.

Na infância – num bairro suburbano do Rio -, cansei de ouvir expressões racistas que justificavam a violência contra negros e naturalizavam a má prestação de serviços públicos para os mais pobres. Uma delas era frequente: “Pra preto, tá bom”. O adjetivo “baiano” era também utilizado para desqualificar e ironizar determinados objetos e posturas.

Ao longo de séculos, naturalizamos a violência contra pretos e pobres enquanto passamos a considerar normal e civilizatória a entrega de terras a imigrantes brancos. Aqueles PMs do Paraná, a entidade de Bento Gonçalves e o vereador não fizeram nada de inacreditável, apenas reproduziram e renovaram o racismo e a lógica escravocrata tão bem plantados, adubados e colhidos por aqui.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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