ODS 1
“Na pandemia, a mulher está em casa à disposição do agressor”, diz feminista do Amazonas
Para especialistas, falta de transparência nas informações gera uma subnotificação dos casos de feminicídio no estado
Para especialistas, falta de transparência nas informações gera uma subnotificação dos casos de feminicídio no estado
Kátia Brasil e Nicoly Ambrozio*
Manaus (AM) – “Sou xingada e humilhada”, diz a psicóloga Miriam (nome fictício para segurança da vítima), de 36 anos. Desde o início da pandemia do novo coronavírus, ela está atendendo os pacientes pelo telefone. Quando alguém lhe pede ajuda, relatando um caso de violência doméstica, ela chora. “Às vezes, eu ouço a minha própria história. Fica passando um filme na minha cabeça. Me pergunto: quando irei sair dessa situação?”
Com esse desabafo que deu à reportagem da Amazônia Real, Miriam diz que tenta lutar para acabar com o ciclo da violência doméstica. Mas ela ainda não tem coragem de denunciar o agressor para as autoridades policiais, ou organizações de defesa aos direitos das mulheres. Ela é casada com um militar e mãe de duas crianças.
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Veja o que já enviamos“Não tenho família em Manaus. Não tenho como pegar meus filhos e sair por aí. Tenho medo de pegar o vírus, tenho medo de passar necessidade. Ainda tem o meu trabalho, que é um contrato temporário. É muito difícil tomar uma decisão assim”, afirma ela chorando.
A psicóloga e o policial estão juntos há dez anos, e já viviam problemas de relacionamento antes do isolamento social. A divisão das tarefas da casa e os cuidados com os filhos e com o marido têm sido motivo de desentendimentos. “Parece que tudo virou uma combustão: tudo é motivo de briga. Sofro uma violência psicológica constante: é dia e noite”. Miriam não compartilha esse problema no trabalho, e poucas amigas sabem sobre seu sofrimento. “Desabafo quando posso: conto o que acontece, sofro, choro. Isso me alivia. Mas sei que tenho que tomar uma atitude, tenho que dar uma basta”.
Confira as outras reportagens da série “Um vírus e duas guerras”
O relato de Miriam faz parte das histórias contadas a série de reportagens especiais Um vírus e duas guerras sobre a violência doméstica, durante a pandemia do novo coronavírus. O monitoramento da violência é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independente Amazônia Real, Agência EcoNordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. A parceria inédita tem o objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, contando histórias das mulheres, fortalecendo a rede de apoio e contribuindo com a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. O monitoramento – que será publicado a cada quatro meses até o fim deste ano – traz dados, mapas e infográficos das cinco regiões do país.
Feminista histórica, Luzanira Varela, 59 anos, do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (PMM) e do Movimento Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas), afirma que o aumento da violência não é surpresa. “Na pandemia, a mulher está em casa, à disposição do agressor, sem ter como pedir ajuda”. Ela (Luzanira) afirma que a pandemia expôs, ainda mais, as desigualdades, pois muitas mulheres que trabalham como empregadas domésticas, faxineiras, ambulantes, e outras profissões estão sem recursos financeiros dentro de casa, convivendo com os companheiros, também desempregados. “Agora, ficou mais difícil, pois tem muitas mulheres desassistidas. A violência doméstica é um mal que vamos demorar muito para combater”, disse ela.
Uma história de lacunas
O levantamento dos casos de feminicídios da série Um vírus e duas guerras foi realizado com dados oficiais das secretarias de segurança pública de 20 estados do país, mas o governo do Amazonas apresentou dificuldade em relação à transparência das informações. A agência Amazônia Real solicitou os dados em dia 25 de maio. Primeiro, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) comunicou que não registrou mortes de mulheres por feminicídios, entre os meses de janeiro a abril de 2020. Mas a estatística enviada à reportagem, informava oito feminicídios no quadrimestre, somente em Manaus. A agência questionou os dados e a SSP voltou atrás na informação anterior, garantindo que eram dados de “casos suspeitos de feminicídio”, isto é, que ainda estavam em investigação, pela Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros (DEHS). Então, a reportagem solicitou novamente os dados do quadrimestre e a assessoria da SSP pediu que fosse procurada a delegacia para prestar tal informação.
Nesta quarta-feira (16), a DEHS informou que registou quatro casos de feminicídio “consumado”, sendo dois em janeiro e dois em março, mês que iniciou a pandemia da Covid-19 no Amazonas. A informação aponta que, entre os meses de março e abril, o crime de feminicídio diminuiu 50% no Amazonas: de quatro em 2019 foi para dois em 2020.
A falta de transparência nas informações gera uma subnotificação dos casos de feminicídio no Amazonas como um todo. “[O estado] É uma história de lacunas. Isso ajuda a gente entender a dificuldade de mapear os dados no momento da pandemia. Mas não é uma situação que surge da pandemia; isso é uma situação de invisibilidade e negligência contra as mulheres que sofrem violência, e que se arrasta por muito tempo”, afirma a professora e antropóloga Flávia Melo, criadora do Observatório da Violência de Gênero da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
A Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros (DEHS) é a responsável pelas investigações de casos de feminicídios. Mas as denúncias chegam primeiro à Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher, da qual a titular é a delegada Débora Mafra. Ela diz que há dificuldade na tipificação do crime de feminicídio, que foi classificado pela Lei nº 13.104 de 9 de março de 2015. De acordo com essa lei, o artigo 121 tipifica o crime contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, envolvendo a violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. LIN
“Toda vez que encontramos uma mulher que foi assassinada e ninguém viu aquela mulher morrer, a princípio é um homicídio. Após as investigações iniciais, que vão apontar a autoria e a materialidade daquele caso, é que podemos, sim, diferenciar se foi feminicídio, porque a causa é decorrente da violência doméstica e familiar, ou discriminação, ou aversão à condição de mulher, ou se realmente foi um homicídio. Então, somente encontrar um corpo [de mulher] não podemos deduzir logo de cara que foi um feminicídio”, disse a delegada.
[g1_quote author_name=”Luzanira Varela” author_description=”Integrante do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A maioria das vítimas não tem como ir para abrigos, ou outro lugar mais seguro. Se denunciam o marido ou o companheiro, a audiência costuma ser marcada para 30 dias, sem acompanhamento algum
[/g1_quote]Débora Mafra destacou que, no decorrer das investigações, a suspeita de feminicídio pode não se confirmar. “ Ficar sabendo que coincide com todo o artigo 121, que fala do feminicídio, vai ser feito o inquérito policial e o processo todinho será como feminicídio. Se caso nas investigações não se configurar o feminicídio, aquela morte de mulher será tratada como homicídio, muitas vezes qualificado”.
Um dos quatro feminicídios registrados este ano pela DEHS foi da estudante M. B.B., 14 anos, assassinada com duas facadas no pescoço pelo ex-namorado, para que ela “não namorasse com mais ninguém”. O crime aconteceu no dia 14 de janeiro, em Manacapuru, Região Metropolitana de Manaus. A cidade que tem pouco mais de 90 mil habitantes, ficou abalada. O acusado, Jeferson Roberto Silva da Silva, de 22 anos, fugiu. A delegada Roberta Merly classificou o crime como feminicídio, mas o fim da investigação foi duplamente trágico: o ex-namorado foi encontrado morto, no dia 25 de janeiro, em uma área de mata da região.
Na cidade de Manaus há duas delegacias especializadas da Mulher, o Serviço de Apoio Emergencial à Mulher (Sapem), o Centro Estadual de Referência e Apoio à Mulher (Cream) e a Casa-Abrigo Antônia Nascimento Priante. Mas mesmo assim, faltam políticas públicas no combate à violência contra a mulher no Amazonas, diz a feminista Luzanira Varela.
“A maioria das vítimas não tem como ir para abrigos, ou outro lugar mais seguro. Se denunciam o marido ou o companheiro, a audiência costuma ser marcada para 30 dias, sem acompanhamento algum. E nas delegacias [as mulheres] encontram servidores despreparados. [Eles] Tratam as mulheres mal e a realidade é essa. Então, nós estamos sempre correndo atrás de políticas públicas para as mulheres, para todas nós termos uma vida digna”, afirma Luzanira, integrante do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus.
No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a existência da pandemia do novo coronavírus (SARS-Cov-2) no mundo. O vírus letal desenvolve a doença infecciosa covid-19, que foi identificada por cientistas na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019. Como não existe uma vacina ou remédio que cure a doença e, para evitar o colapso nos hospitais, a OMS sugeriu a quarentena e isolamento social da população, no período da incidência da pandemia.
No Brasil, o Ministério da Saúde notificou a presença da pandemia no dia 26 de fevereiro, quando foi registrado o primeiro caso. A partir daí, após 113 dias, até esta quarta-feira (18 de junho), a pandemia permanece, com mais de 920 mil casos confirmados do novo coronavírus, e mais de 45 mil mortes.
No Amazonas, o primeiro caso do novo coronavírus foi registrado em 13 de março. Até esta quarta-feira (17), foram confirmados 59.647 casos confirmados de Covid-19 e 2.579 mortes.
Em tempos de pandemia, a violência doméstica aumentou dentro de casa. Dados da SSP do Amazonas mostram que de janeiro a abril foram 26% de ocorrências a mais de ameaças contra a mulher; 24% de ataques (vias de fato) e 23% de lesão corporal, em Manaus.
Desde a década de 1980, quando coordenou a Comissão sobre a Mulher Trabalhadora do Sindicato dos Metalúrgicos do Amazonas, Luzanira atua na linha de frente de apoio às vítimas da violência doméstica. Em suas ações, faz o resgate delas em suas casas, onde estão vivendo com o agressor, ou então acompanha mulheres até a delegacia para que possam fazer a denúncia.
[g1_quote author_name=”Débora Mafra” author_description=”Delegada titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Na pandemia, a mulher também não tem, na cabeça dela, para onde ir. Isso intimida a vítima a não denunciar
[/g1_quote]Por ser do grupo de risco mais suscetível ao vírus da Covid-19, a feminista não está saindo de casa, mas seu telefone está sempre à disposição. Quando uma mulher pede apoio, entra em ação a rede solidária do Musas. Ela explicita: [É] “Uma liga para denunciar a agressão e quem estiver mais próximo da vítima a orienta a procurar os serviços de delegacias. Às vezes, não é a vítima que nos procura: é alguém próximo, ou um familiar. Aí, orientamos essa pessoa a encaminhar a vítima à delegacia”, explica Luzanira.
A delegada Debora Mafra diz que, no período da pandemia, as ocorrências de violência contra mulher através do Ligue 190 diminuíram. A média se manteve nas 20 denúncias por dia. Mas isso, segundo ela, pode não refletir a realidade. “Na pandemia, a mulher também não tem, na cabeça dela, para onde ir. Isso intimida a vítima a não denunciar”, explica.
Há um mês, o Tribunal de Justiça do Amazonas disponibilizou números de telefone para que as mulheres, vítimas de violência, possam pedir a prorrogação das medidas protetivas (92-99972-8953, 99198-7620 e 98449-7084). O TJ informou à reportagem que de janeiro a abril foram concedidas 2.492 protetivas.
Um aperto no braço e gritos
Nayandra*(nome fictício), de 41 anos, contou à reportagem da Amazônia Real que é constante a violência do marido durante o isolamento social. Durante 15 dias em que ficou sem trabalhar, a situação se tornou crítica. “Na última vez, dois meses atrás (abril), ele me empurrou, me machucou, apertou meu braço e me jogou na cama, gritando comigo por ciúmes, não me deixando sair de casa e me acusando de não querer trabalhar para depender dele”, contou ela. No entanto, não denunciou o caso à Delegacia da Mulher por sentir receio.
Desempregada, Nayandra trabalhava como operária de uma fábrica do Distrito Industrial de Manaus. Ela é casada há 20 anos e o marido já revelava comportamentos agressivos antes, mas na pandemia a tensão ficou maior. “Meus filhos (duas crianças) assistem todas as brigas: em uma das vezes, ele chegou a machucar o cachorro do meu filho.” Embora a casa seja de Nayandra, o agressor se recusa a sair dela. “Na frente das pessoas e da família ele é de um jeito, e em casa é de outro”.
As mulheres que sofrem de violência doméstica temem denunciar os agressores, por se sentirem fragilizadas. “O agressor faz um ‘belíssimo’ trabalho de baixar a autoestima dessas mulheres e, quando chega ao espancamento, ela já sofreu todas as formas de violência, na pandemia [a situação] piorou. A mulher está totalmente a mercê do agressor, mas por outro lado ela tem dependência afetiva: vai na delegacia e não dá queixa; quer apenas deixar de apanhar. Algumas morrem antes de sair a medida protetiva concedida pelas delegacias”, explica Luzanira Valera.
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