As lágrimas amargas de Tintin

Usado para lamentar terror em Bruxelas, personagem criado por Hergé já foi racista e simbolizou colonialismo europeu

Por Eduardo Souza Lima | ArtigoODS 9 • Publicada em 4 de abril de 2016 - 08:00 • Atualizada em 4 de abril de 2016 - 16:50

Arte do colombiano Vladdo no Twitter: Tintim chora pelos atentados em Bruxelas
Arte do colombiano Vladdo no Twitter: Tintim chora pelos atentados em Bruxelas
Arte do colombiano Vladdo no Twitter: Tintin chora pelos atentados em Bruxelas

Tintin caiu na rede chorando as vítimas dos atentados em Bruxelas; suas lágrimas são das cores da bandeira belga. É um conhecido fenômeno de nosso tempo; como um cacoete, estampas de futuras camisetas viralizam internet afora, mal a tragédia se deu. São imagens que carregam uma pilha de significados: de acordo com o humor do usuário, podem ser decodificadas como a hashtag de descargo de consciência do momento, apenas mais um ato de indignação-ostentação, ou mesmo uma manifestação sincera de pesar. Esta, em especial, embute um ato falho que pode ajudar a explicar o clima de ressentimento entre a Europa e suas antigas colônias.

Tintin chora lágrimas com as cores da bandeira belga: imagem viralizou na rede
Tintin chora lágrimas com as cores da bandeira belga: imagem viralizou na rede

O intrépido repórter Tintin é um símbolo da Bélgica, assim como a batata frita. O personagem foi criado pelo quadrinista Georges Remi, o Hergé (1907-1983), em 1929. Nasceu, portanto, na Europa colonialista do entre guerras. Em suas aventuras, lançava-se ao mundo resolvendo mistérios e exportando o european way of life, os modos do homem civilizado. Sem dúvida é um produto de sua época; pode-se dizer que os valores de seu autor, também.

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Sobre Hergé pesavam outras acusações abomináveis: dizia-se também ser antissemita, misógino e simpatizante do nazismo. Mas não se pode afirmar que não reconhecia os seus erros – não cabe considerar os motivos.

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Igualmente se pode dizer que no primeiro álbum do herói, “Tintin no País dos Sovietes” (1930), Hergé, por puro preconceito, atirou no que viu e acertou no que não viu. Sua criação cristã e burguesa o fez antecipar em algumas décadas a autocrítica que a esquerda se obrigou a realizar, ao retratar os líderes bolcheviques como tiranos gananciosos. No segundo, porém, errou feio, sem direito a revisão histórica: “Tintin no Congo” (1931) legou-lhe a pecha de racista que resiste até hoje. Os congoleses de seus quadrinhos são indivíduos totalmente obtusos, praticamente inimputáveis, pouco mais do que macacos. O Congo era colônia belga, e os belgas não foram colonizadores gentis. “Conhecia deste país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’. E desenhei os africanos de acordo com estes critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica”, disse o autor em seu favor.

As aventuras de Tintim no Congo: racismo ou produto da época?
As aventuras de Tintin no Congo: racismo ou produto da época?

Sobre Hergé pesavam outras acusações abomináveis: dizia-se também ser antissemita, misógino e simpatizante do nazismo. Mas não se pode afirmar que não reconhecia os seus erros – não cabe considerar os motivos. Em seu quinto álbum, “O Lótus Azul” (1936), por exemplo, tomou como colaborador o jovem estudante chinês Chang Chung-jen, para evitar embaraços. Seguiu cometendo atrocidades nos seguintes (as vítimas de “Tintin no País do Ouro Negro”, de 1950, foram ninguém menos do que os árabes), mas não se furtou de redesenhar histórias inteiras, caso julgasse necessário. O racismo de “Tintim no Congo” foi atenuado em reedições posteriores; mesmo assim, ainda incomoda um bocado.

Entretanto, se o autor reconheceu suas faltas, o espírito paternalista e supremacista daquela época de certa forma permaneceu, travestido de razão. Em 2007, o cidadão congolês Bienvenu Mbutu Mondondo pediu à Justiça belga que “Tintim no Congo” fosse interditado ou, ao menos, que fosse incluída nas novas edições um texto introdutório que explicasse o contexto da época em que foi publicado pela primeira vez. Seu advogado, Ahmed L’Hedim, argumentou: “Imagine uma menina negra de 7 anos descobrindo ‘Tintim no Congo’ com os colegas de escola”.

Os juízes, contudo, consideraram que Tintim não só não era “racista” como “cultivava a amizade” com os personagens negros “contribuindo para a paz entre as tribos, colocando a sua vida em perigo para socorrer o próximo, e luta contra o mal que está representado por um personagem branco e não negro”. Em sua decisão tomada de cima para baixo, a corte ainda condenou Mondondo e o Conselho Representativo das Associações Negras de França, que impetrou a ação junto com ele, a pagarem uma indenização simbólica de 110 euros às editoras Moulinsart e Casterman, detentoras dos direitos sobre os quadrinhos do personagem.

É um caso exemplar: lê-se claramente nas entrelinhas da sentença do tribunal belga que o que é bom para a Europa, é bom para o mundo. O Velho Continente acredita que atingiu tal grau de civilidade que os seus valores são absolutos – e que o seu critério para determinar o que deve ser admitido em nome de liberdade de expressão, entre outros princípios, é infalível. Tintin chora os seus mortos sem se dar conta de seu papel na tragédia.

 

Eduardo Souza Lima

Eduardo Souza Lima é jornalista e cineasta. Trabalhou nos jornais "Tribuna da Imprensa" e "O Globo", e nas revistas "Manchete" e "Zé Pereira", esta última criada por ele. Também foi documentarista da Fundação Roberto Marinho e dirigiu o longa-metragem "Rio de Jano" (2003), entre outros filmes. Atualmente é editor de conteúdo da ONG Uma Gota no Oceano.

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