Serviço de delivery é ainda mais precário para as mulheres

Cristiana Batista com sua motocicleta em Petrolina: serviço de delivery ainda mais precário para mulheres (Foto: Arquivo Pessoal)

Elas somam quase 90 mil entregadoras no Brasil que sofrem com dificuldades no período menstrual, dores nos seios e tripla jornada de trabalho

Por Adriana Amâncio | ODS 5ODS 8 • Publicada em 8 de março de 2023 - 08:26 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:12

Cristiana Batista com sua motocicleta em Petrolina: serviço de delivery ainda mais precário para mulheres (Foto: Arquivo Pessoal)

“Trabalhar no período menstrual tem dificuldades por conta dos banheiros que a gente não pode entrar para as trocas de absorvente”. Essa é Cristiana Batista, de 37 anos, entregadora em serviço de delivery por aplicativo, em Petrolina, cidade do Sertão do São Francisco, em Pernambuco. Esse relato é apenas um dos exemplos de como a precariedade deste trabalho, que cresce em todo o país, afeta as mulheres de modo particular. Sem acesso seguro ao banheiro, durante o ciclo menstrual, Cristiana divide a tensão de pilotar a moto com segurança no trânsito com o medo de que o fluxo menstrual suje a roupa, antes que ela tenha a sorte de encontrar um banheiro e trocar o absorvente.

O aplicativo não fornece nenhum tipo de seguro. Na verdade, só quem nos segura é Deus

Cristiana Batista
Entregadora

Em todo Brasil, de acordo com a pesquisa Painel Gig Economy no setor de transporte do Brasil, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2022, há quase 90 mil mulheres trabalhando como entregadoras em serviços de delivery. Com uma jornada de trabalho que se estende de terça a domingo, das 9h às 17h, quase sempre, sem horário para almoço, Cristiana dá vida a uma estatística, que mostra como a precarização dá o tom do serviço de delivery. “Às vezes, eu paro uma hora, meia hora, depende da demanda. Quando a demanda está alta, trabalho mais, para ganhar mais”, conta a entregadora.

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Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e especialista em Medicina do Trabalho, Sérgio De Lucca avalia que a dinâmica de remuneração influencia nos riscos enfrentados pelos profissionais. Produto da uberização, ou seja, trabalho para o mercado informal, o serviço de entrega de delivery por aplicativo se sustenta na promessa de empreendedorismo.

“Quando você tem um trabalho que você só ganha quando realiza a entrega – ou seja, 80% do tempo você está à disposição, mas não ganha por isso -, há estresse e ansiedade. Quando eles pegam uma corrida tem que entregar rápido para fazer outra. A maioria dos acidentes de trânsito envolvendo entregadores é resultado desta dinâmica”, avalia o professor, coordenador de pesquisa com entregadores. Justamente o risco de acidente é um dos principais temores que acompanham Cristiana ao longo da jornada de trabalho. “O aplicativo não fornece nenhum tipo de seguro. Na verdade, só quem nos segura é Deus”, declara em meio a um suspiro profundo.

A diferença entre Cristiana e os entregadores homens que cumprem a mesma jornada que ela, é que eles, quase sempre, ao chegarem em casa, encontram a casa e as roupas limpas e a comida na mesa. Já a entregadora, que é mãe solo de uma garota de 10 anos, inicia outra jornada: a dos serviços domésticos. Após horas enfrentando o trânsito intenso da cidade, que é conhecida como a capital do Sertão, e mais outras horas de serviços domésticos, a entregadora sucumbe. “Eu durmo, literalmente, no chão para que a coluna volte ao normal”, afirma, categórica.

Quando o dia é marcado por entregas maiores e mais pesadas, o corpo sente o impacto e tudo fica ainda pior. Essa jornada rende à entregadora cerca de R$ 1.500 por mês. Com esse recurso, ela paga a parcela de R$ 80,47 do apartamento conquistado através do Programa Minha Casa, Minha Vida e garante o sustento da casa. Cristiana chegou ao serviço de delivery na pandemia, quando o restaurante onde trabalhava como uma espécie de “faz tudo” – acumulava o serviço de garçonete com outras funções – fechou por causa do isolamento social.

Cristiana faz entrega durante sua longa jornada de trabalho em Petrolina: “Eu durmo, literalmente, no chão para que a coluna volte ao normal” (Foto: Arquivo Pessoal)
Cristiana faz entrega durante sua longa jornada de trabalho em Petrolina: “Eu durmo, literalmente, no chão para que a coluna volte ao normal” (Foto: Arquivo Pessoal)

Mulheres no delivery: invisibilidade

Mesmo com essas particularidades, o impacto da precarização do serviço de delivery entre as mulheres é sub-representado, avalia a secretária de Mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Juneia Batista. Segundo Juneia, a pesquisa realizada pela CUT, em parceria com as universidades federais da Paraíba e de Brasília “não tem recorte de gênero e possivelmente, o documento que traz propostas de regulamentação, fruto dessa pesquisa, também, não”. A pesquisa “Condições de Direitos e Diálogo Social para Trabalhadoras e Trabalhadores do Setor de Entrega por Aplicativo em Brasília e Recife” apontou que 92% dos entregadores nessas capitais são homens, com até 30 anos, pretos ou pardos, com renda média de R$ 1.1172.

Teve dia de eu ter cólica forte por estar sentada, aí vem a trepidação dos lugares por onde a gente passa por causa de lombada, buracos. Teve dias que eu já dei uma parada no trabalho com muita dor

Raquel Rodrigues
Entregadora

Na versão do documento ‘Sistematização do GT de Motoristas e Entregadores de Aplicativos’ enviada no dia 14 de fevereiro de 2023 à nossa reportagem, não haviam propostas específicas para as mulheres entregadoras, identificamos apenas uma proposta de pagamento de Auxílio maternidade ás entregadoras. “Do que eu li, só encontrei proposta de licença maternidade para as mulheres. Não perguntaram para as mulheres sobre a bag que machuca e aperta os seios. Diferente dos homens, as mulheres menstruam, então, não ter acesso ao banheiro é diferente. Eu acho que é preciso rever essa proposta, consultar as mulheres. Uma coisa interessante, mas que vai envolver todo mundo, é que a proposta cobra que se trabalhe, no máximo, 8 horas por dia”, observa Juneia.

A tripla jornada de trabalho, inclusive, foi a razão pela qual houve baixa adesão das mulheres à pesquisa realizada pela Universidade de Campinas com entregadores de delivery, afirma o pesquisador Sérgio De Lucca. Mesmo assim, alguns dados levantados, desenham parte do perfil das entregadoras participantes. As mulheres têm a escolaridade mais baixa em meio à média dos entregadores, que segundo os dados da Unicamp é do Ensino Médio. Elas são maioria no transporte por bike. Isso acontece, justifica o professor da Unicamp, porque “elas são mães, sustentam a casa, não têm condições de comprar uma moto.”.

No caso de entregadores como Cristiana, que vivem exclusivamente do serviço de entrega de delivery, as jornadas são mais extensas, chegam a 64,5 horas por semana, vinte a mais do que aqueles que exercem a atividade de forma complementar. “Esses trabalhadores têm uma insegurança alimentar. Quase sempre, eles estão do lado de fora comendo pão com mortadela, enquanto o restaurante está preparando comida para eles entregarem. Eles trabalham entregando comida, mas passam fome”, avalia Sérgio De Lucca. O pesquisador critica a falsa promessa de empreendimento que, quase sempre, está no pano de fundo da correria dos entregadores de delivery. “Isso é uma mentira! Se eles pararem de rodar, o aplicativo vai tocar menos para eles, a conta já fica ociosa. Por isso, eles querem realizar cada vez mais entregas”, enfatiza.

Raquel Rodrigues com a sacola de entregas grudada no corpo: "Se você colocar muito peso na bagagem, a regulagem vai subir e machucar os seios" (Foto: Arquivo Pessoal)
Raquel Rodrigues com a sacola de entregas grudada no corpo: “Se você colocar muito peso na bagagem, a regulagem vai subir e machucar os seios” (Foto: Arquivo Pessoal)

Cólicas e dores no seios

A sertaneja Raquel Rodrigues, nasceu no povoado de Caitutu, em Petrolina. Ela firmou o propósito de morar na área urbana e o serviço de delivery lhe pareceu uma alternativa para ganhar o sustento e, ao mesmo tempo, ter flexibilidade para estudar. Foi assim que ela se tornou uma das primeiras mulheres a trabalhar no serviço de delivery na cidade. “Todo mundo se admirava! Dizia ‘você é guerreira, viu!’. Nos condomínios de luxo, o pessoal me parabenizava”, relembra. Estipulando uma jornada de 8 horas de trabalho diário, de segunda a domingo, ela lucra, em média, R$ 2.800 por mês, já descontado o custo com combustível. Em um domingo, relembra a entregadora de 32 anos, ela fez a sua diária mais lucrativa R$ 184. “Eu não precisei trabalhar mais horas, apenas peguei muitas viagens, rápido, sem parar, e aumentei o lucro”, revela.

Em Petrolina, cidade de clima Semiárido, a média de temperatura é de 40Cº. A exposição a todo esse sol, ao final de um dia de trabalho, pesa sobre o corpo de Raquel. “O sol quente causa fadiga, você chega em casa com sono. Termino o dia cansada”, desabafa. Para quem é entregadora, o dilema é realizar mais entregas volumosas, que pagam mais e lidar com a dor nos seios que se torna mais intensa com o avanço da jornada de trabalho. “Se você colocar muito peso na bagagem, a regulagem vai subir e machucar os seios. Há um modelo cruzado, que deixa os seios livres, e que tem o fecho sobre o umbigo, mas ainda não é comum nas plataformas”, comenta.

Nada vai adiantar se o serviço de delivery não for regulamentado! É preciso regulamentar esse serviço e dizer que as trabalhadoras do serviço de delivery estão incluídas e devem ser protegidas

Juneia Batista
Secretária de Mulheres da CUT

Raquel lamenta que, pela atividade de entrega não ser regulamentada, os profissionais fiquem “à margem do acesso a banheiro, água e um abrigo do sol quente”. Ainda segundo ela, durante o ciclo menstrual, essa precariedade se tornava insustentável. “O pior dia é durante o ciclo menstrual. Tinha que estar sempre parando para observar o absorvente, para ver se não passou para a calça, para não entrar no estabelecimento suja. Teve dia de eu ter cólica forte por estar sentada, aí vem a trepidação dos lugares por onde a gente passa por causa de lombada, buracos. Teve dias que eu já dei uma parada no trabalho com muita dor. A gente tem que se virar nos de postos de gasolina, pedir ‘posso usar o banheiro?’, a gente fica à margem”, conclui.

Uma das recomendações da pesquisa realizada pela Unicamp, afirma Sérgio de Lucca, é a adoção de um modelo híbrido de regulamentação do serviço. Assim, mesmo sem criar um vínculo regido pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), os entregadores de delivery teriam direito a um seguro de vida e para o veículo de trabalho e a uma remuneração em caso de afastamento por doença ou acidente. A proposta de regulamentação elaborada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), que ainda está em fase de definição, cobra a adoção de um piso fixo de dois salários mínimos para evitar prejuízos aos entregadores que não atinjam metas.

Nessa apuração, visitamos um ponto de entrega, localizado na Zona Sul do Recife, próximo a um dos Shoppings da região. Lá, encontramos a entregadora Flávia Maia*, que relatou a dificuldade de trabalhar em um ambiente majoritariamente masculino. No ponto onde ela atua, são 40 homens e apenas três mulheres entregadoras. “As brincadeiras pesadas existem. Falam de assuntos pornográficos, mas eu encontrei uns meninos aqui que são legais e fico perto deles. Eles me ajudam”, afirma. Manter-se próxima de um grupo de entregadores homens que a respeita foi a estratégia que Flávia encontrou para conseguir as condições necessárias para desempenhar o seu trabalho. A entregadora não quis revelar o nome verdadeiro e também preferiu não fazer fotos para preservar o seu trabalho no ponto de entrega, local onde ganha o sustento dela e da mãe, idosa e impossibilitada de trabalhar devido a problemas de saúde.

De acordo com Juneia, o Brasil está a um passo curto de ratificar a Convenção Nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do combate ao assédio e a violência ano ambiente do trabalho, o que inclui a violência de gênero. Caso o serviço de delivery não seja regulamentando antes, essa convenção não poderá atender às trabalhadoras de delivery. “Nada vai adiantar se o serviço de delivery não for regulamentado! É preciso regulamentar esse serviço e dizer que as trabalhadoras do serviço de delivery estão incluídas e devem ser protegidas por essa Convenção 190”, conclui Juneia.

*Nome fictício

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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Um comentário em “Serviço de delivery é ainda mais precário para as mulheres

  1. maria helena mueller disse:

    Excelente artigo que revela as dificuldades devidas à invisibilidade da perspectiva de gênero nesse tipo de trabalho. Espero que a sua regulamentação atente para esses graves problemas

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