A rotina de doenças e enchentes onde o saneamento básico não chega

Raquel Maria da Silva em lágrimas no seu casebre sem esgotamento sanitário e água tratada no Canal da Vovózinha, em Recife: chikungunya, zika e dengue numa rotina de doenças e sofrimento (Foto: Coletivo Sargento Perifa)

Mais de dois anos após o Marco Legal do Saneamento, Canal da Vovozinha, comunidade pobre do Recife, é o retrato da vida sem acesso a esgoto e água tratada

Por Yuri Euzébio | Inclusão e DiversidadeODS 6 • Publicada em 25 de janeiro de 2023 - 11:07 • Atualizada em 4 de março de 2024 - 17:33

Raquel Maria da Silva em lágrimas no seu casebre sem esgotamento sanitário e água tratada no Canal da Vovózinha, em Recife: chikungunya, zika e dengue numa rotina de doenças e sofrimento (Foto: Coletivo Sargento Perifa)

A dona de casa Raquel Maria da Silva estava ainda na adolescência quando voltou do Rio de Janeiro, em 1985, com a mãe para o Canal da Vovozinha, uma comunidade formada por cerca de casebres de taipa, em Santo Amaro, bairro da área central do Recife, sem abastecimento de água potável nem esgotamento sanitário. Em 37 anos, a população da capital pernambucana aumentou 50%, sua economia avançou e o PIB per capita é o maior entre as capitais nordestinas.

No Canal da Vovózinha, entretanto, quase nada mudou: aos 52 anos, dona Raquel ainda vive numa casa de taipa, sem tratamento de água e esgoto. “Chikungunya, eu já tive; a maioria dos vizinhos aqui também. Dengue e zika também. Foi horrível: o corpo parece que levamos uma pisa, porque dói os ossos, as mãos ficam inchadas. Pra ir no banheiro, era um aperreio”, conta.

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As doenças são a parte mais dolorosa do drama da falta de saneamento básico no Brasil. Mais de dois anos após a sanção do Marco Legal do Saneamento, celebrado pelo governo e pelo Congresso em julho de 2020, quase 35 milhões de pessoas no Brasil ainda vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto, de acordo com a da 14ª edição do Ranking do Saneamento, publicado pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados. “Pessoas sem acesso à água vão ter que consumir uma água inferior de qualidade. Também terão que armazenar água em casa, o que faz com que se proliferem doenças como dengue, chikungunya, zika e outras. E vão ter uma precariedade maior de higiene, de uma forma geral”, afirma o médico sanitarista Giliate Coelho, mestre em Saúde Coletiva.

Eu já tive chikungunya, passei um tempão em cima da cama sentindo dor. Até hoje, eu sinto dor nos joelhos, nas mãos, nas juntas. Já tive dengue também, e a maioria dos meus filhos já contraiu essa doença

Edna dos Santos
Moradora do Canal da Vovózinha, sete filhos

Conviver com essas doenças é a triste e dura realidade de quem mora na Vovózinha. Como também é o caso de Edna dos Santos, 60 anos, vizinha de Raquel, que passou a morar na comunidade em novembro de 2012. A dona de casa tem sete filhos e foi forçada a se mudar para a Vovozinha depois que sua mãe faleceu, obrigando-a a desocupar a antiga moradia. Na sua residência atual, período de chuva é sempre um momento de tormento. “Em época de chuva, o canal enche, o canal transborda e casa enche de água. Depois que seca, fica uma lama dentro da casa inteira”, resume Edna, que divide sua casa com outras 12 pessoas, entre filhos e netos.

“Quando chove, a gente tem medo porque tem muito gabiru, muitas baratas. Eu morro de medo de pegar uma doença, né? Porque eu já fui mordida por um rato aqui; às vezes, estamos dormindo e as baratas passando por cima da gente na cama. Eu não vou mentir: morro de medo, mas não tenho outro lugar para morar”, desabafa Edna, deixando claro seu temor pelo neto de apenas 2 anos, seu xodó. Assim como Raquel, Edna já sofreu de doenças causadas pela ausência de saneamento básico na Vovozinha. “Eu já tive chikungunya, passei um tempão em cima da cama sentindo dor. Até hoje eu sinto dor nos joelhos, nas mãos, nas juntas. Já tive dengue também, e a maioria dos meus filhos já contraiu essa doença”, relembra. Seus filhos têm idade entre 43 e 19 anos.

Todo tipo de bicho passa por essas ruas, é rato, barata, escorpião, muriçoca, tudo o que não presta tem por aqui. Por debaixo dessas tábuas aqui, já chegaram até a achar uma cobra; eu morro de medo

Raquel Maria da Silva
Moradora do Canal da Vovózinha

“Aqui embaixo é um canal, né? E todos os esgotos das casas vai para esse canal daqui. E nós moramos em cima dele. Aqui atrás da minha casa mesmo tem uma fossa da vizinha e da fossa vai pro canal. Então nós ficamos muito expostos”, diz Edna, que teve 10 filhos e perdeu 3: um foi assassinado e dois morreram por doença. A dona de casa diz que seu maior sonho é conseguir um cantinho para morar que não seja perto ou em cima de um canal.

Raquel também mora bem acima do canal que dá nome a comunidade e sofre sem acesso a serviços básicos. “Tem uns dias que a água falta, tem uns dias que vem, outros que só chegam uns pingos na torneira”, explica. “Além disso, todo tipo de bicho passa por essas ruas, é rato, barata, escorpião, muriçoca, tudo o que não presta tem por aqui. Por debaixo dessas tábuas aqui, já chegaram até a achar uma cobra; eu morro de medo”, disse. Quando a chuva aparece, o canal transborda e apodrece o piso das residências feitos de madeirite, o que causa desmoronamento sobre o canal que dá nome ao lugar e esse é o maior pesadelo da rotina de Raquel.

Bem como boa parte dos moradores da Vovozinha, Raquel tem sua vida marcada pela violência urbana. Perdeu a mãe, tios, três filhos, neto, vizinhos e amigos vitimados por armas de fogo. Por isso, mora sozinha na casa e convive com uma dificuldade de locomoção, muitas vezes precisando da ajuda de vizinhas para lhe socorrer ou auxiliar nas poucas saídas que faz de sua casa.

Edna dos Santos com o neto no Canal da Vovozinha: medo de doenças, enchentes e violência (Foto: Coletivo Sargento Perifa)
Edna dos Santos com o neto no Canal da Vovozinha: medo de doenças, enchentes e violência (Foto: Coletivo Sargento Perifa)

O temor das enchentes

A dona de casa Raquel se sente insegura dentro ou fora de sua residência, porque, além do perigo do desmoronamento em épocas de chuva, ainda há a ameaça das doenças e da violência que ronda a área. “É só dá uma pezada (sic) na porta de qualquer um daqui que já invade. Quando fechamos nossa porta, é só Deus mesmo pra nos proteger”.

A falta de um acesso universal ao saneamento básico tem influência direta na saúde pública, com prejuízos na vida dos moradores dessas regiões, que ficam expostas a infecções, verminoses, gastrenterites, desidratação, hepatite A e doenças respiratórias, com efeitos também em seu desenvolvimento cognitivo e emocional.

A falta de esgotamento é um dos graves gargalos do saneamento do Recife, que figura entre as 20 cidades brasileiras com as piores notas do Ranking do Saneamento 2022 do Instituto Trata Brasil, que contempla os 100 maiores municípios do País. A solução sanitária que os moradores da Vovózinha encontraram foi a de construir fossas para a destinação de dejetos. E não são fossas sépticas, que causariam menos prejuízos ao meio ambiente e nas ruas que alagam. As fezes são despejadas diretamente no canal.

Como já é de se imaginar, todos esses problemas são potencializados em períodos de chuva. Diante da precariedade das estruturas de saneamento básico e de moradias dignas, os moradores do Canal da Vovózinha sofrem com qualquer pancada de água que caia. “Quando chove, é melhor estar na rua do que aqui dentro de casa. Goteja por todo o canto, molha tudo o que tem aqui em casa. Eu fico aqui sentada assistindo TV e a água caindo por cima de mim”, relata Raquel, que mora sozinha, e não tem parentes próximos na comunidade – sempre que precisa de algum apoio conta com a ajuda dos vizinhos.

“Encheu aqui já, porque nesse canal a água vem de lá pra cá. Quando chove valendo mesmo, eu só via a água chegando até aqui. Fui lá pra minha cama que é o único lugar que não molha e fiquei quietinha rezando pra chuva passar porque não tinha o que fazer”, esclarece. Em maio deste ano, Recife sofreu com fortes chuvas que causaram deslizamentos de barreiras, alagamentos e outros transtornos para os moradores. O período ficou marcado como o mais sangrento no Estado no século, com 133 mortos e milhares de desabrigados e desalojados.

A época foi de muito sofrimento na Vovózinha. “A água caindo, eu ouvindo o barulho aqui debaixo dos lençóis, o barulho do lixo passando aqui embaixo e só pensava que a casa ia arriar”, confessou. “Fiquei em pânico imaginando que tinha um jacaré aqui. Às vezes, eu choro de medo. Porque eu não sei o que é cocô, lata ou algum bicho passando aqui” afirmou. Segundo Raquel, a vizinhança inteira enche de água durante as chuvas e a água costuma entrar nas casas de todos os moradores.

Palafitas sobre o Canal da Vovózinha, em Recife: sem esgoto tratado e água potável, moradores enfrentam rotina de doenças e enchentes (Foto: Sumaia Vilela / Agência Brasil)
Palafitas sobre o Canal da Vovózinha, em Recife: sem esgoto tratado e água potável, moradores enfrentam rotina de doenças e enchentes (Foto: Sumaia Vilela / Agência Brasil)

Pernambuco: só 30% com acesso a esgoto

Giliate Coelho, médico sanitarista e mestre em saúde coletiva, explica que a falta de saneamento básico causa impactos severos nas populações dessas áreas. “O que é a falta de saneamento? É a questão do acesso à água para a sua higiene, acesso à coleta do esgoto e ao tratamento desse esgoto coletado; em resumo, são essas três questões”, disse.

O sanitarista alerta para as consequências na saúde de quem não tem acesso ao serviço de saneamento. “Pessoas sem saneamento básico em casa adoecem mais. Se elas adoecem mais, elas se internam mais e há um maior número de óbitos decorrentes dessas doenças”, afirmou. E quais doenças são essas? Segundo Giliate, são as doenças diarreicas, as verminoses, hepatite A, as arboviroses (dengue, chikungunya, zika, malária, filariose, leptospirose) e a esquistossomose.

“De uma forma geral, as internações por essas doenças voltaram a subir desde 2016”, afirma o médico. De acordo com dados da Unicef de 2015, a diarreia mata 1,5 milhão de crianças a cada ano. É a segunda maior causa de mortes em crianças abaixo de cinco anos de idade. E 88% das mortes por diarreias no mundo são causadas pelo saneamento inadequado.

De acordo com Giliate, o retrocesso do saneamento básico entre as regiões vem sendo aprofundado nos últimos tempos, o que aumenta também a desigualdade social e aumenta a discrepância das oportunidades entre quem mora em determinadas regiões da cidade.

Em Pernambuco, apenas 30,8% da população tem acesso a esgoto e 81,7% a água tratada. Isso significa que sete em cada dez pessoas não têm sistema de esgoto em suas casas. Só 32,4% do esgoto gerado é tratado, de acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR). Os índices estão bem abaixo da média nacional, que já não é alta: a rede de esgoto contempla 55% da população. Já a taxa de atendimento de água se aproxima: 84,1%.

É comum andar pela Vovózinha e ter de desviar do esgoto à céu aberto para chegar a determinadas ruas. No ranking do saneamento divulgado pelo Instituto Trata Brasil, cidades do Norte e do Nordeste estão entre as mais vulneráveis. Recife e Jaboatão dos Guararapes aparecem na lista das 20 piores.

O Novo Marco Legal do Saneamento aposta na entrada da iniciativa privada no processo de saneamento para cumprir seu objetivo. A previsão é de um investimento de R$ 700 bilhões no setor. A pandemia da covid-19 atrapalhou o início desse Novo Marco. A expectativa anual de investimento era de R$ 30 bilhões por ano, quando em 2020 ficou em R$ 13,7 bilhões, tornando a meta mais difícil de ser alcançada. Ainda nesse sentido, indicadores de saneamento básico cresceram timidamente na última década e nada indica que o Brasil vai alcançar as metas pactuadas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Em algumas localidades, como no Canal da Vovózinha, é urgente a implantação do serviço para a melhoria de vida dos moradores. Porque além dos problemas de moradia e de acesso ao local, eles ficam expostos a doenças e se prejudicam com a ausência de uma infraestrutura melhor. Por exemplo, como já foi dito na casa de Raquel quando chove a água do canal transborda e apodrece a madeira do piso, e já aconteceu da dona de casa acordar com a cama afundada na madeira podre e foi preciso a ajuda dos vizinhos para retirá-la dali.

“Da cortina pra lá eu não vou mais, mandei colocar a minha bacia do banheiro aqui porque eu fui pisar a tábua podre afundou e eu fiquei presa. Graças a Deus e aos vizinhos que não fiquei ali até hoje”, relembrou. O caminhão que faz a coleta do lixo também não entra na comunidade, os moradores colocam seus resíduos na saída do Canal da Vovózinha que fica na Avenida Norte do Recife para que um coletor pegue.

A privada da casa de Raquel fica na sala, foi uma medida que ela tomou para que esse episódio não se repita. A casa toda é muito simples; são dois cômodos: sala/cozinha e quarto/banheiro. “A gente entende o direito à moradia digna como um tema que dispõe de uma vastidão de necessidades. E aí, obviamente, está incluído o acesso a serviços básicos como o saneamento. Bom destacar que a moradia não se resume a casa, é toda uma vivência, uma relação com a cidade que vai dizer se a moradia traz essa dignidade”, aponta Mohema Rolim, gerente de Programas da Habitat Brasil – ONG internacional que atua no Brasil há 25 anos e tem como causa a promoção da moradia como um direito humano fundamental. “O saneamento básico, eu diria que, é uma das coisas essenciais para uma família estabelecer uma moradia. Não pode existir em nenhum lugar do mundo uma casa que não tenha nenhum tipo de acesso à água, porque é primordial para o exercício do morar, do viver, do existir mesmo”, acrescenta Mohema.

Saneamento precário, educação também

Em quase quatro décadas de Vovózinha, Raquel não se recorda de nenhuma obra do governo sobre saneamento ou melhoria do sistema de esgoto da área, ou qualquer outra infraestrutura. “Entra ano e saí ano e eu só vejo promessas na época das eleições. Na época de chuvas mesmo quem veio ajudar foram as pessoas de outros locais, ONGs, associações, porque político nenhum chegou junto”, recordou. Raquel conta emocionada que recebeu kit de limpeza, quentinhas e lençóis de associações populares, mas nenhum órgão público deu qualquer suporte durante as chuvas de maio no Recife.

Eu queria uma vida boa pra mim, uma casa de alvenaria pra guardar melhor as minhas coisas dentro e ter água na torneira, um banheiro grande. Essas coisinhas só

Raquel Maria da Silva
Moradora do Canal da Vovózinha

A falta de acesso a esgoto e a inexistência ou irregularidade no abastecimento de água atingem uma parcela significativa dos pernambucanos e pernambucanas, comprometendo sua saúde e impactando diretamente na qualidade de vida. Para alguém como Raquel, que sempre conviveu com essa ausência, o prejuízo é enorme. Além disso, no Brasil, a diferença em anos de educação formal de um jovem que habita uma residência com saneamento básico para um sem esses recursos é cerca de 4,1 anos. Ou seja, tem influência até no nível de escolaridade dos moradores dessas áreas. O que, por sua vez, incide nas oportunidades de emprego que essas pessoas terão.

De acordo com o historiador e doutor em Educação Thiago Modenesi, para as crianças que moram nessas áreas carentes de saneamento básico os danos são perenes. “A primeira infância (0 a 12 anos) é o período que mais importa na construção do desenvolvimento e o ambiente em que elas vivem nos primeiros anos de vida interferem diretamente na sua saúde e no seu desenvolvimento cerebral”, destacou.

“Inclusive, é na primeira infância que o cérebro vai construir a base das habilidades cognitivas que dão o sustento no desenvolvimento da pessoa”, garantiu. Segundo Thiago, esse período de formação afeta toda a vida e a falta de acesso à infraestrutura básica ou de moradia digna interfere diretamente na qualidade de vida dos moradores dessas comunidades, causando efeitos para toda a vida. “Esse não é um problema novo no Brasil. Não começou agora. O Brasil é um dos países do mundo com o maior índice de saneamento básico não resolvido porque é uma obra que não chama a atenção. É uma obra subterrânea, não é igual a uma ponte e tal. E interfere diretamente na vida das pessoas”, arremata.

Somente 50% do volume de esgoto do país recebe tratamento, o que equivale a mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto in natura sendo despejadas diariamente na natureza. E lá se vão mais de dois anos depois do Novo Marco Legal do Saneamento entrar em vigor (Lei 14.026 de 2020), que prevê  investimentos no setor de R$ 13,7 bilhões — valor insuficiente para que sejam cumpridas as metas da legislação.

Raquel em sua casa no Canal da Vovózinha: sonho de morar em uma casa com "água na torneira" e banheiro (Foto: Coletivo Sargento Perifa)
Raquel em sua casa no Canal da Vovózinha: sonho de morar em uma casa com “água na torneira” e banheiro (Foto: Coletivo Sargento Perifa)

Sem direitos

Para Raquel, o mais difícil de viver nessa situação é a sensação eterna de perigo e de abandono. “Eu queria uma vida boa pra mim, uma casa de alvenaria pra guardar melhor as minhas coisas dentro e ter água na torneira, um banheiro grande. Essas coisinhas só”, falou. Nesse momento, a dona de casa começa a se recordar como era a Vovózinha quando chegou para morar ali em 1985 e demonstra que a situação na época era ainda pior do que a atual. “Antes era de barro aqui, o solo de massapê, e quando chovia ficava aquela lama na comunidade inteira. Era um aperreio grande. As casas sempre foram de tábua, e com a lama ficava só por Deus”, relembra.

Mesmo com o calçamento das ruas, a comunidade ainda sofre com problemas dos tempos do solo de massapê devido a falta de saneamento básico. “Calçaram as ruas, mas quando chove, alaga e nós vemos boiando até cocô na rua . É horrível. Não melhorou muito porque eu queria sair por aqui, passear mas cheio de esgoto na rua, cheio de cocô, é melhor ficar aqui na frente de casa mesmo”, lamenta. Além disso, a locomoção por entre a comunidade prejudica Raquel que usa um andador devido a problemas na perna. “É muito ruim sair daqui, porque é cheio de buraco na rua, um mau cheiro: tem vezes que eu prefiro ficar é em casa mesmo”.

Raquel, nessa altura da conversa, revela meio envergonhada que recorrentemente os políticos vão no Canal da Vovózinha em época de eleição para oferecerem dinheiro em troca de votos dos moradores. “Eu reclamei que eles não vêm aqui. Porque nós somos dignos também, queremos casa boa aqui. Por que não podemos ter?”, desabafa.

O direito ao lazer e o direito à cidade também são negados nessas áreas carentes, já que ficam distantes dos polos culturais, a locomoção é precária e/ou simplesmente não sobra recurso financeiro para isso. Com políticas públicas sólidas, e melhorias no acesso, é possível levar cultura a esses lugares por meio de ONGs e associações populares. Basta que o Marco Zero do Saneamento seja levado a sério e cumprido em todas as áreas das cidades. Torçamos.

Até por isso, no fim da conversa, pergunto para Raquel o que ela mais sente falta morando esses anos todos na Vovózinha e a resposta é singela. “O que eu mais sinto falta aqui durante esse tempo todo, é um cinema ou teatro. Uma opção de lazer pra gente. Ou alguma escola que dê pra eu ir com o meu andajar para fazer um curso ou me divertir”, afirma Raquel. Apesar das dificuldades, Raquel se permite ser alegre e consegue contar piadas ao longo de toda a entrevista, contrastando com o olhar sofrido de quem já lutou muito nessa vida.

Yuri Euzébio

Yuri Euzébio é jornalista e historiador: gosta de literatura, quadrinhos, cinema, música, cultura popular e de escrever sobre as coisas. Vencedor do 2º Prêmio de Jornalismo Cultural e do 1º Prêmio AMPE de Jornalismo em Saúde e do 2º Prêmio InfoVacina Trainee. Já contribuiu para veículos como Nexo Jornal, Marco Zero Conteúdo e Revista Continente