Lutas e vitórias de Marta, a heroína artilheira

Marta bate o pênalti do recorde: 18 gols em Copa do Mundo, maior número entre homens e mulheres. Foto de Vanessa Carvalho (Brazil Photo Press)

Camisa 10 da seleção feminina de futebol bate recorde de gols em Copas (dos dois gêneros), na batalha contra um país de machistas

Por Aydano André Motta | ODS 5ODS 8 • Publicada em 19 de junho de 2019 - 12:22 • Atualizada em 23 de julho de 2021 - 13:36

Marta bate o pênalti do recorde: 18 gols em Copa do Mundo, maior número entre homens e mulheres. Foto de Vanessa Carvalho (Brazil Photo Press)

Em seu pouco mais de século e meio, o futebol produziu vários craques, incontáveis esforçados e uns poucos heróis. Ostenta, ao menos, uma heroína: Marta. A alagoana que veste a camisa 10 da seleção brasileira há mais de uma década joga em 2019, aos 33 anos, provavelmente sua derradeira Copa do Mundo. À frente de um time estropiado (ela mesma toureia uma lesão para entrar em campo), virou, em 19 de junho de 2019, a maior artilheira de mundiais – incluindo todos os sexos. Ao marcar pela 17ª vez, superou o alemão Miroslav Klose e, no bojo, garantiu a vitória na boa atuação brasileira contra a Itália.

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Na verdade, o que ela e suas contemporâneas enfrentam vai muito além da má vontade dos desinteressados por esporte. Ainda hoje, no Brasil, muita gente trata o futebol feminino como algo que deveria ser proibido. Não basta ignorar – tem de impedir que exista.

A maior façanha da atacante não acontece quando a bola rola. A canhota Marta precisou superar o machismo de toda uma sociedade para vencer no futebol. Está por ser inventado campeonato mais difícil do que esse. No país onde a craque nasceu, pais e mães ainda reprimem meninas que se interessam pelo esporte mais popular. Os garotos, mal aprendem a andar, ganham uma bola, na admirável massificação espontânea que nos faz o maior fabricante mundial de talentos futebolísticos. As meninas têm de se contentar com bonecas.

Até para ser exaltada por seus gols e atuações, Marta sofre com barbaridades machistas. “Joga como homem”, admiram-se os marmanjos. “Barrava fácil fulano, beltrano, sicrano”, completam os chegados a ironias igualmente estúpidas, referindo-se a degradados dos seus times de coração.

Na verdade, o que ela e suas contemporâneas enfrentam vai muito além da má vontade dos desinteressados por esporte. Ainda hoje, no Brasil, muita gente trata o futebol feminino como algo que deveria ser proibido. Não basta ignorar – tem de impedir que exista.

Marta, eleita melhor do mundo seis vezes, recebe algo em torno de US$ 400 mil – perto de R$ 1,6 milhão – por temporada. Seu congênere masculino, o português Cristiano Ronaldo embolsou 113 milhões de euros – ou R$ 512 milhões – no mesmo período. O salário dele é 320 vezes o dela

Alinha-se totalmente ao machismo que está nos alicerces da sociedade brasileira e a preconceitos planetários. Jogadora do Orlando Pride (EUA), Marta, eleita melhor do mundo seis vezes, recebe algo em torno de US$ 400 mil por temporada. Seu congênere masculino, o português Cristiano Ronaldo, 34 anos, dono de cinco títulos semelhantes (um a menos, prest’enção), embolsou € 113 milhões no mesmo período. O salário dele é 320 vezes o dela; ela recebe 0,31% dos vencimentos dele.

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A diferença poderia ser grande, diante do longevo investimento que irrigou o jogo dos rapazes, contra a recente – e tímida – aposta nas moças. Mas não precisa ser um abismo mesmo na comparação de Marta com qualquer zé-mané dos clubes brasileiros da Série A. Nos mais endinheirados, os aproximadamente R$ 130 mil mensais da artilheira de todas as Copas pagam jovens promessas, recém-desembarcadas das divisões de base.

Em todos os esportes, o machismo está presente, mas entre os inquilinos do topo, outras modalidades apresentam menos desequilíbrio. No tênis, o sérvio Novak Djokovic, 32 anos, número 1 do mundo, acumula US$ 125,7 milhões em prêmios; a japonesa Naomi Osaka, líder feminina, com somente 21 anos, soma US$ 11,35 milhões – pouco menos de 10%, na carreira muito mais curta. A americana Serena Williams, 37 anos, principal nome do tênis feminino, embolsou US$ 84 milhões com seus títulos, ou 67% do pago ao líder do ranking masculino.

Marta na campanha por equidade de gênero
Marta com a chuteira com o símbolo de igual numa campanha da ONU Mulher: craque não tem marca em seu calçado porque as propostas não estavam à altura (Foto reprodução)

A luta pela igualdade às mulheres vem de longe no esporte das raquetes. Nos quatro principais torneios (o Grand Slam), o US Open, em Nova York, paga prêmios iguais desde 1973; Rolland Garros, em Paris, adotou a isonomia em 2005; o Australian Open, em Melbourne, no ano seguinte; Wimbledon, em Londres, o maior de todos, o fez em 2007. No futebol, a estrada da desigualdade ainda é longa – a França, campeã da Copa da Rússia, recebeu cheque de US$ 38 milhões; a seleção que erguer o troféu do Mundial feminino receberá US$ 4 milhões, pouco mais de 10%.

Para além dos números, a desigualdade futebolística alimenta-se do preconceito. Como bem observou Marcelo Barreto n’O Globo, há vôlei masculino e feminino, basquete feminino e masculino, tênis, natação, boxe, atletismo – tudo nos dois gêneros. No mais popular esporte de todos, só existem futebol feminino e… futebol. Intrusas no protetorado macho – eis o epíteto do jogo.

Nem entre os encarregados da seleção o machismo dá trégua. Marco Aurélio Cunha, o coordenador das equipes femininas da CBF, confessou sem constrangimento ao repórter Tino Marcos, da TV Globo, sentir “pressão feminista” para ter mulheres trabalhando com as jogadoras. O pacato Vadão comanda Marta e suas companheiras nos campos da França.

Marta e Thaisa repetem o gesto de Bebeto na Copa de 1994: homenagem ao afilhado da camisa 5. Foto de Philippe Huguen (AFP)
Marta e Thaisa repetem o gesto de Bebeto na Copa de 1994: homenagem ao afilhado da camisa 5 (Foto de Philippe Huguen/AFP)

A Copa serve como ensaio de uma virada nesse jogo. A Globo apostou na cobertura e na transmissão ao vivo da competição e tem colhido boas audiências. Empresas mais modernas dispensaram funcionários nos dias de partidas da seleção, como no torneio masculino. Chega tardio o reconhecimento a uma geração de mulheres – lideradas pela heroína Marta – que fez a modalidade existir no país de Pelé e Zico.

Durante muito tempo, o futebol feminino foi proibido por lei no Brasil. A maluquice, implantada em 1941 por Getúlio Vargas, caiu apenas em 1979, mas não adiantou muito – a seleção das mulheres estreou somente em 1986 e não houve campeonatos relevantes no país até 2019, quando a CBF decretou que os clubes da primeira divisão têm de manter times femininos.

Você aí não sabe, mas o campeonato nacional, após nove rodadas, apresenta o Corinthians na liderança e o Santos em segundo. A primeira fase vai até agosto, classificando oito equipes ao mata-mata (numa vantagem sobre os homens e seu tedioso torneio de pontos corridos). São 16 participantes – ou seja, alguns clubes desrespeitam a lei. O mais tradicional é o Santos, com suas Sereias da Vila, em atividade há quatro temporadas e atuais vice-campeãs da Libertadores.

Atualmente em nono lugar, está um fenômeno do futebol feminino por aqui. O Esporte Clube Iranduba da Amazônia, da cidade homônima, na região metropolitana de Manaus, chegou a ter média de 15 mil pessoas por jogo, em 2017. Ficaria, naquele ano, à frente de grifes como Botafogo, Atlético-MG, Cruzeiro e Santos. O Hulk da Amazônia, fundado em 2011, inexiste no futebol masculino, mas mostra força no feminino. Hoje, tem como estrela a meia Andressinha, da seleção.

Atlético de Madrid x Barcelona, na capital espanhola: mais de 60 mil pessoas na plateia, recorde de público entre clubes do futebol feminino. Reprodução do Twitter
Atlético de Madrid x Barcelona, na capital espanhola: mais de 60 mil pessoas na plateia, recorde de público entre clubes do futebol feminino. Reprodução do Twitter

Em outros países, o cenário é bem diferente. Em março passado, 60.739 pessoas foram ao Wanda Metropolitano, estádio novinho do Atlético de Madrid (palco da final da última Champions League masculina), assistir à vitória do time da casa sobre o Barcelona por 2 a 0, pela Liga Iberdrola, no sexto maior público da história, recorde entre clubes. O primeiro geral é a final da Copa do Mundo de 1999, no Rose Bowl (EUA), com 90.185 torcedores para ver Estados Unidos x China.

Mas quando terminar o Mundial da França, no dia 7 de julho – ou antes, numa eventual eliminação – as brasileiras seguirão sua luta pelo prosaico direito de jogar bola. O machismo continuará em campo, como adversário poderoso. Ao menos, haverá o orgulho de, apesar da goleada de pesares, ser daqui a artilheira de todas as Copas, de todos os sexos. Todas as homenagens à heroica Marta serão poucas.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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