Jovens e mulheres negras são vítimas da ação e da omissão do estado no Brasil

Morador filme a ação da polícia durante um protesto contra a ação policial na favela do Jacarezinho, no Rio: jovens e mulheres negras são maioria entre vítimas de violência policial e até desastres ambientais (Foto: André Borges / AFP)

Anistia Internacional revela que maioria dos mortos por violência policial, feminicídio e até desastres ambientais têm a mesma cor da pele: preta

Por Agostinho Vieira | ODS 10ODS 5 • Publicada em 28 de março de 2023 - 09:01 • Atualizada em 19 de abril de 2023 - 09:20

Morador filme a ação da polícia durante um protesto contra a ação policial na favela do Jacarezinho, no Rio: jovens e mulheres negras são maioria entre vítimas de violência policial e até desastres ambientais (Foto: André Borges / AFP)

“Tarde da noite, um jovem homem negro parece estar perdido nas ruas desertas da vizinhança de um subúrbio dos Estados Unidos. Enquanto ele caminha pela calçada, um carro branco aparece e começa a seguir o jovem. Ao fundo é possível ouvir a canção “Run, rabbit! Run!” vindo de dentro do carro”. Assim como no premiado filme “Corra”, escrito e dirigido por Jordan Peele, os jovens e as mulheres negras no Brasil parecem não ter mesmo para onde correr. Relatório divulgado nesta terça-feira, 28 de março, pela Anistia Internacional, mostrou que a população negra segue sendo, desproporcionalmente, impactada pela ação e pela omissão do Estado. Nos registros de violência policial, que historicamente sempre vitimou mais os jovens negros, passando pelos casos de feminicídio e chegando até os desastres ambientais como as chuvas extremas, a cor da pele da maioria dos mortos e feridos se mantém lamentavelmente a mesma.

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De acordo com o relatório da Anistia Internacional, o ano de 2022 foi particularmente marcado pelo uso excessivo da força policial, em especial a força letal, que resultou em homicídios ilegais que vitimaram, em sua maioria, jovens negros moradores de favelas e periferias. As chacinas cometidas por agentes de segurança pública foram recorrentes em estados como o Rio de Janeiro e a Bahia.  No Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, referentes ao ano de 2021, 99% das vítimas de homicídios cometidos pela polícia eram do sexo masculino, 84% dessas pessoas eram negras e 52% tinham menos de 25 anos.

Para Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, o relatório da entidade não pode ser só mais um documento que reúne as tragédias de 2022, ele precisa servir como alerta para o poder público, nos seus diversos níveis: “Ele é um chamado para a ação das autoridades, que têm, por dever, a obrigação de garantir o direito a todas e todos, fazendo com que as violações deixem de acontecer e não se repitam. À sociedade, a responsabilidade de continuar vigilante, atenta e ativa na busca e na defesa de seus direitos’’, explicou.

Vítimas do desastre ambiental em São Sebastião, São Paulo, se abrigam em uma igreja do bairro. Foto Nelson Almeida/AFP
Vítimas do desastre ambiental em São Sebastião, São Paulo, se abrigam em uma igreja do bairro:  relatório da Anistia Internacional mostra que a população negra segue sendo, desproporcionalmente, impactada pela ação e pela omissão do Estado (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Registros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontaram que, no Brasil, 699 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2022, das quais 62% eram mulheres negras. No ano passado, o direito ao aborto legal também esteve ameaçado pela tentativa de votação, pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, na Câmara Federal, do Estatuto do Nascituro, que tinha como objetivo criminalizar as vítimas de estupro.

Em todas as regiões do mundo, os direitos das mulheres cis e transgêneros, seguiram sob ameaça porque os Estados falharam na sua proteção. A Anistia Internacional documentou em pelo menos 22 de 156 países onde atua, casos de prisão e detenção arbitrária de pessoas da comunidade LGBTQIA+. Dados publicados em janeiro de 2022 mostraram que, em 2021, o Brasil foi o país com o maior número de homicídios de pessoas trans no mundo. Título que o país recebe pelo 13º ano consecutivo, acumulando pelo menos 140 casos.

Mas não é apenas nos casos de violência policial e feminicídio que a desigualdade e o racismo estrutural se fazem presentes. Desastres causados pelos efeitos da crise climática e pela omissão do Estado continuaram a impactar desproporcionalmente as comunidades marginalizadas, que historicamente são as mais afetadas pela falta de políticas públicas de habitação, saneamento básico e infraestrutura. Nos meses de fevereiro e março de 2022, pelo menos 238 pessoas morreram no município de Petrópolis, no Rio de Janeiro, devido a deslizamentos de terra e enchentes. Em junho, 128 pessoas perderam a vida também em deslizamentos de terra e enchentes no Recife, em Pernambuco. Em ambos os casos, a maioria das pessoas afetadas era de mulheres negras moradoras de favelas e de bairros da periferia, que estavam em casa quando aconteceram os deslizamentos e as enchentes. Segundo um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios, apenas nos primeiros cinco meses do ano foi registrado o maior número de mortes em uma década em decorrência das chuvas extremas.

Se você, por acaso, acha que todos esses números são absurdos e que é preciso ir para as ruas protestar, saiba que isso também pode ser um risco. Dos 156 países em que a Anistia Internacional atuou, ao menos em 85 (isto é, 57%) foram registrados abusos no uso da força policial impedindo protestos pacíficos. Ainda, em 22% destes Estados, registrou-se a ocorrência de uso de armas letais contra manifestantes. Em 21% dos países ocorreram execuções extrajudiciais de pessoas envolvidas em protestos e em metade deles ocorreram prisões arbitrárias. O Brasil é o 4º país do mundo onde pessoas defensoras de direitos humanos e do meio ambiente mais morrem. Quatro anos depois do assassinato de Marielle Franco, vereadora e defensora dos direitos humanos, e seu motorista, Anderson Gomes, o crime ainda não foi elucidado.

“Os efeitos deletérios do racismo, da misoginia, das fobias LGBTQIA+ e a vulnerabilidade extrema que acomete mulheres trans exige que todos e todas se mobilizem e se engajem de maneira contínua. O estado de luta deve ser permanente – salvaguardando a liberdade de expressão, informação e associação – para que se possa produzir, de maneira irrestrita, as mudanças necessárias capazes de salvar vidas. O objetivo é um só: garantir a dignidade de todos, todes e todas”, enfatiza Jurema Werneck.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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