Uma Deusa Cientista que espalha conhecimento nas redes sociais

Kananda Eller no bairro da periferia de Salvador, onde nasceu: “A minha avó dormiu dois dias numa fila para que eu pudesse ter acesso ao SESI”. Foto Instagram

De Salvador para o mundo, Kananda Eller vira referência na produção e divulgação da Ciência e inspiração para jovens periféricos

Por Igor Soares | ODS 4 • Publicada em 8 de dezembro de 2023 - 08:08 • Atualizada em 12 de dezembro de 2023 - 09:36

Kananda Eller no bairro da periferia de Salvador, onde nasceu: “A minha avó dormiu dois dias numa fila para que eu pudesse ter acesso ao SESI”. Foto Instagram

O que é conhecimento científico? Foi pensando nisso que Kananda Eller, ou melhor, “Deusa Cientista”, como é conhecida, resolveu compartilhar nas redes sociais um pouco do conhecimento acumulado. Mas não era um conhecimento qualquer. A jovem nascida em uma periferia de Salvador queria ser uma voz para propagar o saber que, muitas vezes, ignora pessoas negras como legítimas produtoras de ciência.

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Desde muito nova, ela já estava envolvida em áreas que tivessem alguma relação com produção de conhecimento e tecnologia. Começou a estudar computação em um curso e foi fazer o ensino médio em uma escola profissionalizante: “A minha avó dormiu dois dias numa fila para que eu pudesse acessar o SESI, que é um colégio tecnicista e que incentivava os alunos a irem para a indústria. E minha mãe sempre pensou na nossa realidade material”, conta a influenciadora.

Kananda diz que ficou na dúvida entre a dança e a carreira em química. “Surgiu uma oportunidade de fazer um curso de computação gratuito na minha escola. Eu falei: ‘Minha mãe, e agora? Porque as minhas aulas de computação iam ser na mesma hora da minha aula de dança”, lembra, sinalizando que a mãe decidiu que ela interrompesse a dança: “Naquele momento, eu não entendi minha mãe, mas hoje eu entendo. Muito mais porque no mundo a gente convencionou o que é profissão para mulheres, o que é para homens, o que é profissão para pessoas negras, o que é profissão para pessoas brancas. As profissões que são para homens brancos são mais bem pagas, são mais valorizadas. Eu entendi que nessa área das ciências exatas, as engenharias, eu podia ter uma estabilidade financeira, que é o que a gente não tinha. Eu vim da periferia de Salvador”.

Kananda Eller é formada em química pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e chegou a fazer estágio em bioquímica no Instituto Médico Legal (IML) do estado. O contato com a química fez com que ela se apaixonasse e quisesse seguir a carreira. “Sempre gostei de laboratório. Quando pensei em fazer faculdade, escolhi química porque tive uma experiência marcante no meu ensino médio, em que construí sacolas plásticas com féculas de mandioca, e aquilo ali foi incrível para mim”.

Kananda: "A ciência é negra porque existe uma história de produção de conhecimento científico feita pelas comunidades negras que precisam ser valorizadas". Foto Divulgação
Kananda: “A ciência é negra porque existe uma história de produção de conhecimento científico feita pelas comunidades negras que precisam ser valorizadas”. Foto Divulgação

Foi só na faculdade que a influenciadora descobriu que ser cientista também poderia ser uma opção. “Eu não sabia que existia essa carreira de pesquisa, de pesquisa científica. Nas minhas primeiras semanas de aula na universidade foi que entendi o que era mestrado, doutorado e aí falei que queria seguir na carreira acadêmica”. Por outro lado, ela avalia que fazer ciência também pode estar além da academia. “Hoje, estou fazendo mestrado; depois, quero fazer doutorado e continuar estudando, continuar pesquisando, escrevendo, que é o que eu amo fazer”, explica.

Ela se mudou para São Paulo para fazer o mestrado em Ensino de Ciências Ambientais pela Universidade de São Paulo (USP): “Eu sempre quis ir para a USP no mestrado, então, comecei a ir para as redes sociais falar sobre química. E, ao mesmo tempo, comecei a me preparar para entrar no mestrado”, diz. Neste momento ela está concluindo a dissertação.

Em muitos dos vídeos compartilhados pela química e criadora de conteúdo é possível perceber a divulgação de saber a partir de pessoas negras. “Durante muito tempo, usei esse termo ‘ciência preta’ e as pessoas negras muitas vezes precisam afirmar esse lugar de ‘eu estou presente aqui’. Acho que é mais o lugar de retomada de memória, de reafirmação. Hoje em dia, uso menos esse termo, mas é isso que ele significa para mim: esse lugar de dizer que a ciência é preta, que a ciência é negra porque existe uma história de produção de conhecimento científico feita pelas comunidades negras que precisam ser valorizadas”, pontua.

Inspiração

“Acho que o meu trabalho tem essa importância de mostrar para as pessoas o outro lado da comunidade negra, das pessoas negras e um outro lado da ciência também. No Brasil, por exemplo, a gente teve Jaqueline Goes, que sequenciou o genoma do coronavírus. Ela estava lá no laboratório produzindo ciência, mas muita gente não sabe”, complementa.

Quando o assunto é a produção de conteúdo para a internet, Kananda destaca o compromisso com a informação de qualidade, a partir da arte de criar e comunicar, como ela mesma salienta. “Ser uma divulgadora científica é um trabalho que exige muita responsabilidade, vontade, entrega, e essa arte de criar e de comunicar. Eu entendo que o meu trabalho enquanto divulgadora científica tem um impacto social, racial e de gênero muito importante dentro da ciência, mas não só dentro da ciência; na sociedade como um todo porque esse é o papel da comunidade científica, que é produzir conhecimento”.

Vídeos explicativos que fazem de Kananda uma tradutora de termos e conceitos, às vezes, longe do entendimento comum. “Pego um conhecimento mais especializado, com uma linguagem mais complexa e traduzo para o público em geral. Busco falar de uma maneira acessível para as pessoas”.

No processo criativo, Kananda conta que também usa temas atuais, faz pesquisa em bancos de dados, como Google Acadêmico, além de estar ligada em assuntos nas redes sociais. “Eu começo a pensar em temas. Eu falo sobre a estrutura do cabelo crespo e o racismo que as mulheres negras sofreram ao longo da história, trago uma referência sobre Ogum, que é um orixá muito importante no candomblé, que é o dono das tecnologias, do ferro, que também a gente pode fazer uma relação com a tabela periódica”, ressalta a química, que conta com uma equipe de edição e roteiro na produção dos vídeos. “Por fim, eu posto, interajo com meus seguidores, falo sobre o que eles estão gostando, o que eles não estão gostando. Assim, é um movimento longo que eu amo fazer”.

No TikTok e no Instagram, a influenciadora tem mais de 300 mil seguidores, que acompanham cada informação nova que a “Deusa Cientista” vai trazer. “Eu tenho me tornado referência no que falo. Tenho sido reconhecida pelo meu trabalho, convidada para participar de trabalhos que eu nunca pensei. Tem sido muito importante para mim. Ao mesmo tempo que, enquanto criadora de conteúdo, uma das coisas que a gente quer é ter muitos seguidores, assim, mais alcance”.

Kananda se vê como uma inspiração para outras pessoas e considera isso um bom fruto do seu trabalho. “Os resultados que eu tenho colhido hoje são de mudar muitas histórias, de ver muitas mulheres e homens negros, periféricos acessando as universidades, se inspirando na minha história, se inspirando no meu trabalho, colhendo referências, e tendo ideias para dissertações e teses de doutorado”.

Entre os muitos resultados colhidos estão conquistas pessoais e coletivas. “Agora eu estou na África do Sul. A primeira vez que piso no continente africano. Tudo isso quem me deu foi meu trabalho com as redes sociais, a minha coragem para falar o que eu penso, a minha coragem de mudar o mundo, de querer ajudar as pessoas. Em junho, saí pela primeira vez do Brasil, fui para o México, para um evento global de um conselho do qual estou participando e para mim foi uma grande conquista. Poder dar um plano de saúde para minha mãe é uma grande conquista. São coisas assim que têm me feito muito feliz”, finaliza.

Igor Soares

Igor Soares é jornalista freelance no Rio, com foco em cobertura de favelas, e atua como ativista social. É vencedor do 13º Prêmio Jovem Jornalista. Atualmente, é repórter freelance do #Colabora. Já teve passagem pelo Estadão e TV Bandeirantes, além de ter colaborado para a Folha de S. Paulo.

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