Diário da Covid-19: Uruguai está vencendo o coronavírus

No centro de Montevidéu, uma loja de roupas mostra os manequins com máscara. Os país teve um dos menores índices de casos e mortes no continente. Foto Carlos Lebrato/Anadolu Agency

País possui um dos menores coeficientes de incidência e de mortalidade do continente e até agora não ultrapassou a casa de duas dezenas de óbitos

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 18 de maio de 2020 - 09:15 • Atualizada em 28 de julho de 2020 - 11:29

No centro de Montevidéu, uma loja de roupas mostra os manequins com máscara. Os país teve um dos menores índices de casos e mortes no continente. Foto Carlos Lebrato/Anadolu Agency

A América do Sul virou o epicentro global da pandemia do novo coronavírus e o principal responsável é o Brasil. A realidade do continente é muito heterogênea e os problemas brasileiros, felizmente, não são predominantes na maioria das nações latino-americanas. Por obra de um desgoverno central que insiste em atacar a ciência e o bom-senso, o Brasil assume hoje (18/05) o quarto lugar no ranking dos países com maior número de pessoas infectadas e ruma, celeremente, para o segundo lugar em número de casos e mortes acumuladas. Porém, considerando o número diário de casos e mortes, pode ocupar o primeiro lugar em pouquíssimo tempo. Cresce a sensação de que o país do presidente Bolsonaro é uma ameaça continental.

Todavia, a América do Sul tem seus bons exemplos e o Uruguai tem sido uma fonte de inspiração para nós brasileiros. A antiga Província Cisplatina tem conseguido controlar o coronavírus e evitado a propagação da pandemia no território ao sul do Rio Grande do Sul. O Uruguai possui um dos menores coeficientes de incidência e de mortalidade do continente e até agora não ultrapassou a casa de duas dezenas de óbitos. Enquanto o Brasil atingiu 16 mil óbitos pela covid-19, a República Oriental do Uruguai tem um número de vítimas fatais equivalente ao número de títulos da Copa América (15), Olimpíadas (4) e mais uma Copa do Mundo de Futebol.

Para entender como se deu esta conquista que implicou em baixo coeficiente de mortalidade, vamos iniciar este diário com uma breve caracterização sociodemográfica e econômica do Uruguai, apresentar os dados da covid-19 na América do Sul e divulgar uma entrevista que fizemos com o doutor em demografia Ignácio Pardo, professor e pesquisador do “Programa de Población de la Universidad de la República, Uruguay” e atual presidente da Associação Latino Americana de População (ALAP). Ele vai nos contar sobre as conquistas e os desafios nacionais, do nosso querido vizinho do sul, na batalha contra os efeitos nocivos da covid-19.

Breve panorama demográfico e socioeconômico do Uruguai

O Uruguai é um pouco maior do que Belo Horizonte e cerca da metade do tamanho da cidade do Rio de Janeiro. Segundo a Divisão de População da ONU, o Uruguai tinha uma população de 2,2 milhões de habitantes em 1950, chegou a 3,47 milhões em 2020 e deve atingir, na projeção média, 3,2 milhões de pessoas em 2100. O Uruguai manteve taxas de crescimento demográficas menores do que o mundo, a América Latina e Caribe (ALC) e o Brasil. Consequentemente, apresenta uma estrutura etária mais envelhecida como mostra a pirâmide etária.

A tabela abaixo apresenta alguns indicadores demográficos para o Uruguai, Brasil, América do Sul, ALC e o mundo. O Uruguai sempre teve melhor desempenho demográfico do que o Brasil e a região. Enquanto o mundo tinha uma mortalidade infantil (MI) de 140 por mil no quinquênio 1950-55, o Brasil tinha de 136 por mil e o Uruguai 57 por mil. No Uruguai, as taxas de fecundidade (TFT) eram menores, a esperança de vida era maior e o Índice de Envelhecimento (IE) era de 42 idosos (60 anos e mais) para cada 100 jovens de 0 a 14 anos.

Ou seja, o Uruguai começou a transição demográfica mais cedo e possui, no quinquênio 2015-20, indicadores demográficos mais próximos daqueles dos países de alta renda. O fato de ser um país mais envelhecido não representou uma vulnerabilidade em relação à covid-19, pois as melhores condições de educação e cidadania favoreceram o combate à epidemia.

Nos últimos 40 anos o Uruguai tem conseguido manter um ritmo de desenvolvimento econômico acima da média da ALC e do mundo. O gráfico abaixo mostra que o Uruguai tinha uma renda per capita, a preços correntes, em poder de paridade de compra (ppp, na sigla em inglês) abaixo das rendas do Brasil e da América Latina nas duas últimas décadas do século XX, mas inverteu o jogo nas duas primeiras décadas do século XXI e passou a ter uma renda média de quase US$ 25 mil, enquanto o Brasil e a ALC ficaram, a partir de 2015, com renda per capita abaixo da média mundial.

De certa forma, o Uruguai estava a caminho de se transformar em uma nação de renda alta, pois com empenho poderia atingir níveis equivalentes aos de Portugal e Espanha. Porém, a crise sanitária provocada pelo coronavírus gerou um pandemônio na economia internacional e a América Latina e Caribe será uma das regiões mais prejudicadas do mundo.

O estudo da Cepal, “Dimensionar los efectos del COVID-19 para pensar en la reactivación” (21/04/2020), mostra que a pandemia da covid-19 pegou a ALC em um momento de debilidade macroeconômica, pois, no decênio posterior à crise financeira de 2008/09, o continente apresentou em média o menor crescimento desde a década de 1950.

A Cepal estima um aumento do desemprego e da pobreza e uma redução da renda per capita de todos os países da região. A Cepal estima uma queda do PIB, em 2020, de -5,3% na ALC, de 5,2% no Brasil, de 5,2% na América do Sul e de 4% no Uruguai. Evidentemente, quanto maior for o impacto da pandemia maior será o pandemônio econômico e maior será o sofrimento das populações afetadas.

Assim, é fundamental vencer a batalha contra o coronavírus. Quanto mais rápido a epidemia for eliminada, mais velozmente o país vitorioso poderá voltar à ativa e reduzir os efeitos negativos do aumento do desemprego, da pobreza e da queda da renda média. Neste aspecto, o Uruguai está em posição muito menos traumática do que o Brasil.

Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos

Dados sobre a Covid-19 no mundo, na América do Sul, no Brasil e no Uruguai

A América do Sul tem se tornado um enorme foco de propagação da pandemia do novo coronavírus. Considerando os 10 maiores países da região, a América do Sul com 5,5% da população mundial respondia no dia 17 de maio de 2020 por 9,2% do número de pessoas infectadas e por 7,3% das mortes globais. Mas o país com maior peso proporcional é o Brasil que tem 2,7% da população mundial, mas responde por 5% dos casos e das mortes da covid-19. O Uruguai, com 0,4% da população mundial respondia em 17/04, por 0,02% dos casos e 0,01% das mortes.

A tabela abaixo mostra que o Uruguai está entre os três países com os menores coeficientes de incidência e de mortalidade, com valores bem abaixo da média da América do Sul e da média mundial. O Brasil tem, destacadamente, os maiores números de casos e de mortes, mas o maior coeficiente de incidência está no Equador com 2,7 mil casos por milhão de habitantes. O maior coeficiente de mortalidade está no Peru com 2,8 mil mortes por milhão de habitantes.  Portanto, o Uruguai é um dos países menos impactados pela pandemia do novo coronavírus.

Os gráficos abaixo mostram a série histórica do número de casos e de mortes pela covid-19 no Uruguai, Brasil e no mundo. Nota-se três padrões diferentes. O Uruguai já está caminhando para o controle da pandemia, pois o pico do número de casos ocorreu no dia 28 de março (com 66 casos) e nos últimos dois dias houve apenas duas pessoas infectadas em 48 horas. O máximo de vítimas fatais foi de 2 óbitos, sendo que nos 17 dias de maio houve apenas 3 mortes.

Enquanto isto a pandemia avança no Brasil e o pico ainda não está à vista no horizonte. Na semana que passou, de 10 a 16 de maio, houve em todo o território brasileiro uma média de 11 mil casos por dia e 715 mortes por dia. O Brasil caminha para ser o segundo país mais atingido pela pandemia até, no máximo, meados de junho, atrás apenas dos EUA.

No mundo, a pandemia já chegou ao pico e agora começa a descer a curva. O número de casos globais atingiu o zênite no dia 24 de abril com mais de 100 mil casos em 24 horas. Mas depois desta data o número de infecções diárias diminuiu, embora se mantenha em patamar elevado. Já o número de mortes atingiu o zênite no dia 17 de abril, com 8,5 mil mortes em 24 horas. Depois disto o número diário de óbitos vem caindo e chegou ao valor mais baixo, dos últimos dois meses, no dia 17/05, com menos de 4 mil mortes em 24 horas.

A América Latina é o continente mais desigual do mundo e, no caso da pandemia do coronavírus, o Brasil está em um extremo e o Uruguai no outro. O que o povo uruguaio está mostrando é que a doença da covid-19 não é uma fatalidade impossível de ser evitada. Ao contrário, com esforço e determinação, o número de casos e de mortes pode ser minimizado e zerado.

Entrevista com o professor e demógrafo Ignácio Pardo sobre a pandemia no Uruguai

Para entender melhor o que acontece no vizinho do sul, fizemos uma entrevista com uma testemunha ocular das ações realizadas pela população uruguaia e o Poder Público para afastar o perigo da covid-19 e minimizar os danos desta implacável epidemia.

Quando o Uruguai percebeu a gravidade da pandemia?

Na sexta-feira, 13 de março foi provavelmente o dia em que a população tomou conhecimento da gravidade da pandemia. Naquele dia, o governo decretou a Emergência Nacional de Saúde: shows públicos foram proibidos e os centros educacionais começaram a operar em modalidades remotas. Foi nesse dia onde tudo começou para a maioria da população uruguaia. Até então, havia pouca consciência da gravidade do que estava por vir.

Ignácio Pardo, presidente da Associação Latino Americana de População (ALAP). Foto Arquivo Pessoal
Ignácio Pardo, presidente da Associação Latino Americana de População (ALAP). Foto Arquivo Pessoal

Que medidas sanitárias foram tomadas pelo governo e pela sociedade civil?

Não foram medidas de isolamento obrigatórias como na Argentina, por exemplo, mas uma “exortação” para ficar em casa, desde que se pudesse trabalhar remotamente. E se desabilitou as áreas onde muitas pessoas pudessem se reunir em um espaço limitado, como atividades de esportes, shows de teatro ou música, os maiores shoppings, ou as praias. Ainda, se solicitou que se usasse uma máscara quando nas pequenas lojas ou nos transportes públicos. Da parte do sistema de saúde, foi tomada a decisão de adiar muitas intervenções médicas e consultas (o que tem sido considerado polêmico), tudo em preparação para evitar a saturação do número de vagas em hospitais, o que felizmente ainda não ocorreu.

Como tem funcionado a quarentena (isolamento social) no Uruguai?

A população, em geral respeitou a exortação feita para o isolamento, embora nos últimos dias tenha começado a ocupar cada vez mais os espaços públicos, talvez devido a certo cansaço associado ao confinamento em residências e à percepção de que os contágios não são tão frequentes.

O Uruguai possui um dos mais baixos coeficientes de mortalidade na América do Sul para a COVID-19 (6 mortes por milhão de habitantes). Como explicar esse sucesso uruguaio?

Não tenho uma resposta definitiva, e não me atrevo a ser muito enfático porque não sou especialista no tema de mortalidade, mas sim de fecundidade. Mas, em todo caso, eu entendo que é um sucesso provisório, que precisaria ser confirmado nas próximas semanas e meses. De toda forma, direi que existem várias hipóteses. Uma delas está associada ao alto cumprimento da exortação pela população ao isolamento social e uso de máscaras. Outra resgata que os primeiros vetores de contágio foram rapidamente identificados, com isto as medidas teriam sido tomadas a tempo, evitando a evolução exponencial tão temida. Mas insisto que teríamos que esperar algumas semanas para confirmar esse relativo sucesso. Por enquanto, como eu disse, não existe uma situação séria em relação ao número de mortes e nem a saturação do sistema de saúde.

Existem medidas econômicas tomadas pelo governo para garantir que as pessoas mantenham sua sobrevivência?

Existem, mas insuficientes. Um estudo de economistas da Universidade da República estima que as medidas tomadas (transferências para os setores mais pobres em dinheiro e alimentos e apoio a empresas para moderar os efeitos da crise no emprego) não impediriam cerca de 100.000 pessoas caíssem abaixo da linha da pobreza. Em um país de 3,5 milhões de habitantes, esses são números muito importantes. Se continuar assim, a pobreza aumentaria para cerca de 11 a 12% em breve.

Quando e como o governo planeja encerrar a quarentena?

Ainda não se sabe. Aparentemente, o plano do governo é “dar pequenos passos e avaliar” e, portanto, não adiantaram informações a respeito. Na quinta-feira 21, no entanto, haverá um anúncio sobre o retorno da educação presencial (exceto para escolas rurais, com poucos alunos, que já começaram a retomar as aulas presenciais). O que o governo disse é que o fim da situação atual será definido após a assessoria de um pequeno grupo de consultores especialistas, incluindo Rafael Radi, um dos principais cientistas do país. Tomara que as decisões sejam baseadas nas evidências sistematizadas por este grupo e outros cientistas renomados.

Existem lições que você acredita que o Uruguai pode ensinar ao Brasil neste momento no enfrentamento da pandemia?

Sem pretender falar detalhadamente sobre o Brasil, eu me animaria a dizer que é razoável que o Uruguai ou qualquer outro país observa o que acontece com nossos irmãos brasileiros com preocupação. Essa preocupação decorre do fato de a pandemia coincidir com o governo Bolsonaro e sua perspectiva, que, entre outras coisas, parece quase não científica e com pouca preocupação com os direitos e o bem-estar da população mais vulnerável.

Como a associação que você preside, a ALAP, está enfrentando estes tempos de pandemia?

Em princípio, com dificuldades: tivemos que adiar o IX Congresso, que seria realizado em Valparaíso, Chile, em novembro. Em seguida, tentando contribuir com o que sabemos fazer melhor: a sistematização da pesquisa onde a pandemia é analisada do ponto de vista demográfico, a geração de fóruns de debate para acompanhar o tópico em tempo real, a realização de seminários realizados remotamente de discussão sobre a pandemia e problemas demográficos associados. Em breve, haverá mais uma iniciativa, especialmente destinada a promover a pesquisa demográfica sobre a pandemia, não apenas em termos de saúde e mortalidade, mas também em outras dimensões que foram impactadas por esse fenômeno sem precedentes.

Como você e sua família estão lidando com esses 2 meses de quarentena?

A ponto de enlouquecer! Temos dois filhos, de 1 e 3 anos, que não podem frequentar a escolinha ou ver os avós (tampouco eu posso ver meus pais, que são população de risco). E, ao mesmo tempo, o trabalho remoto é muito exigente: tarefas de pesquisa e gestão acadêmica são adicionadas às tarefas de ensino por meio de plataformas virtuais. Assim, sofrendo com a incerteza, o isolamento e a sobrecarga de trabalho ao mesmo tempo. Espero muito ansioso que em breve se deem as condições necessárias para a flexibilização dos critérios atuais de quarentena.

Frase do dia 18 de maio de 2020

“Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos”

Eduardo Galeano (1940-2015)

Escritor uruguaio

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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Um comentário em “Diário da Covid-19: Uruguai está vencendo o coronavírus

  1. ALESSANDRA DA SILVA disse:

    Se o povo brasileiro não tem consciência como o povo uruguaio, que resolveu por conta própria entrar em quarentena sem ordem do governo, porquê culpar o governante do país?
    Desde o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil, já procurei colocar em prática todos os cuidados possíveis para que eu e meus pais ficassem protegidos.
    Brasileiro faz o que bem entende, não respeita nem as leis do próprio país, pelo simples prazer de culpar outros pela sua falta de educação e descultura. E isso não é o governo que dá a cada um, se aprende em casa.

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