Diplomacia da vacina: como o Brasil encolheu na disputa entre China e Índia

A chegada a São Paulo do voo com 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca. Foto de Aurélio Pereira/MS

Trapalhadas diplomáticas e desprezo à ciência obrigam país a se humilhar em busca de insumos e imunizantes contra a covid-19 e, com atraso, conseguir 2 milhões de doses

Por Florência Costa | ODS 17ODS 3 • Publicada em 23 de janeiro de 2021 - 18:33 • Atualizada em 9 de fevereiro de 2021 - 09:38

A chegada a São Paulo do voo com 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca. Foto de Aurélio Pereira/MS

Há exatamente um ano, em 23 de janeiro de 2020, a cidade chinesa de Wuhan era submetida a um lockdown para tentar conter a pandemia do novo coronavírus. Naqueles dias, Donald Trump e seus seguidores, como Jair Bolsonaro, procuravam colar na testa da China a culpa pela pandemia. Mas hoje, após a potência oriental ter conseguido controlar a doença (embora novos casos tenham aparecido por lá), a disputa é: quem vai salvar o mundo emergente e pobre?

Poucos países têm condições de disputar a condição de “salvador da pátria”. Três deles são do Brics: China, Índia e Rússia, todos produzindo suas vacinas. Com a desastrosa política externa de Bolsonaro, o B do acrônimo encolheu. O Brasil se viu, na última semana, na humilhante posição de implorar pressa na entrega de vacinas e insumos para os dois países asiáticos milenares e rivais.

Enquanto os outros grandes emergentes investiam tudo em seus cientistas e se posicionavam positivamente na diplomacia da vacina, o Brasil estava ocupado demais em negar a ciência e empurrar à sua população “tratamentos precoces” inúteis com remédios como cloroquina. Como se não bastasse isso, o país cometeu barbaridades diplomáticas contra a China em nome do amor de Bolsonaro a Trump, contrariando interesses nacionais e econômicos.

Esse é o pano de fundo que resultou na confusão dos últimos dias, com o atraso dos insumos da China e a venda para o Brasil dos dois milhões de doses de vacinas da Oxford/Astrazenca fabricadas na Índia. As relações entre Índia e Brasil são boas e havia o interesse indiano de ser a mão amiga, no momento em que a China faz jogo duro no envio de insumos.

Mas a parte brasileira foi açodada e inconveniente. Há 10 dias, mesmo sem o o sinal verde das autoridades indianas, houve o anúncio espalhafatoso de que um avião da Azul decolaria em direção a Mumbai para pegar as vacinas e voltar no domingo, 17. A aeronave estava adesivada com o slogan “Brasil imunizado: somos uma só nação” e a imagem do Zé Gotinha.

A Índia anunciou, é claro, que não poderia vender doses antes de começar a vacinar a sua população (1.3 bilhão de humanos), o que começou a ocorrer no sábado, 16. A primeira fase do programa de imunização da Índia – o maior do mundo – planeja vacinar 300 milhões de habitantes até meados do ano.

Em segundo lugar, no planejamento estratégico indiano da diplomacia da vacina estava a chamada “Política Primeiro os Vizinhos”. A doação dos imunizantes começou na quarta-feira, 20. No dia seguinte a encomenda do Brasil foi embarcada.

O país, que mantém e pretende reforçar uma posição de liderança regional, não mandaria as vacinas antes de enviar, por exemplo, para o Nepal e outros vizinhos, que vêm sendo cortejados pela rival China com investimentos em infraestrutura. As duas potências asiáticas têm sérios problemas de fronteira que resultaram em uma guerra em 1962 e em um sério conflito ano passado, causador da morte de 20 soldados indianos nas montanhas geladas dos Himalaias, 4 mil metros acima do nível do mar.

A diplomacia indiana mantém independência do chefe de Estado, defendendo interesses estratégicos e de segurança, conceitos esquecidos na gestão do ministro Ernesto Araújo, que segue o comando de Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. O primeiro-ministro indiano Narendra Modi, um líder de direita, é pragmático e cumprimentou Joe Biden no dia seguinte à sua vitória. Agora, o imunologista Anthony Fauci, à frente do combate à covid-19, anuncia que a parceria com a Índia na guerra contra o vírus é fundamental.

Nessa disputa, os chineses, por sua vez, já anunciaram que vão enviar “de presente” meio milhão de doses de vacinas para o Paquistão até o fim de janeiro.  Pequim vai doar vacinas também a Myanmar, Camboja e Filipinas. A rivalidade indo-chinesa está escancarada. O jornal chinês “Global Times”, por exemplo, publicou, neste sábado, 23, reportagem sobre as movimentações de indianos na China, em relação à vacina.

O dramalhão do envio das vacinas da Índia ao Brasil terminou no fim da tarde da sexta-feira, 22, com a chegada do avião trazendo as doses, encomendadas para a foto que o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello tanto sonhava fazer antes do governador de São Paulo, João Dória. Mas quem ficou bem na foto mesmo foi Modi. É só espiar a conta do governante indiano, no poder desde 2014, no Twitter (rede social na qual ele é pioneiro): está lá uma procissão de agradecimentos dos  chefes de Estado dos países vizinhos e pobres, como Nepal, Sri Lanka e Maldivas. Esses e outros, como Bangladesh, Butão e Myanmar, receberam, antes do Brasil, 3,2 milhões de doses como presente da Índia. O país vai doar e vender para vizinhos mais 17 milhões de doses nas próximas semanas.

No post de Bolsonaro, a popular divindade Hanuman, deus macaco e herói do épico Ramayana: bajulação tardia. Reprodução
No post de Bolsonaro, a popular divindade Hanuman, deus macaco e herói do épico Ramayana: bajulação tardia. Reprodução

Bolsonaro se uniu a esses chefes de Estado na fila de agradecimentos online. Antes mesmo de o avião com as doses chegar ao Brasil, o presidente brasileiro agradeceu a Modi: “Namaskar, primeiro ministro. O Brasil sente-se honrado em ter um grande parceiro para superar um obstáculo global. Obrigado por nos auxiliar com as exportações de vacinas da Índia para o Brasil”, diz o tuíte.

O post que acompanha essas palavras é ilustrado com uma imagem calculada para derreter o coração de qualquer hindu: o desenho de um triunfante Hanuman, uma das divindades mais populares da Índia do século 21. O Deus macaco é um verdadeiro herói em um dos épicos milenares mais importantes da Índia, o  Ramayana: Hanuman representa a força e o poder.

Na imagem postada por Bolsonaro, um Hanuman triunfante voa da Índia para o Brasil, carregando as vacinas. É uma referência a um trecho do Ramayana. Nele, Hanuman, que é um general macaco, voou para os Himalaias para colher ervas milagrosas com o objetivo de salvar Lakshmana, irmão do príncipe-herói Rama, na batalha contra demônio Ravana em Lanka (o atual Sri Lanka).

“A honra é nossa, presidente Jair Bolsonaro, por ser um parceiro de confiança do Brasil na luta conjunta contra a pandemia da covid-19. Nós continuaremos a fortalecer nossa cooperação na área da saúde”, replicou Modi, na rede social.

O ministro indiano das Relações Exteriores, S. Jaishankar, foi direto ao assunto, também no Twitter: “Confie na Farmácia do Mundo. Vacinas feitas na Índia chegam ao Brasil”. O Instituto Serum, de onde vieram as vacinas da Oxford/AstraZeneca, é o maior fabricante de vacinas do mundo. A Índia criou até uma hashtag para a sua diplomacia da vacina: #vaccineMaitri. Maitri, do Hindi, significa amizade.

A Índia é o maior produtor de remédios genéricos do mundo (20% da produção global) e produz  mais de 60% das vacinas do planeta. Há muitos anos, o país tem estratégia contínua nessa área e vem defendendo de forma consistente a suspensão de direitos de propriedade intelectual das vacinas contra a Covid 19. O Brasil foi contra essa posição indiana, que hoje o beneficiaria. Dessa maneira, não tinha como o Brasil aparecer bem na foto.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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