Para as potências, o que menos interessa na guerra da Ucrânia é a própria Ucrânia

Na Praça Lafayette, em Washington DC, manifestantes protestam contra a invasão da Rússia na Ucrânia (Foto Mandel Ngan / AFP)

A perigosa e acirrada disputa pela liderança mundial terá consequências que serão sentidas por anos, talvez décadas

Por Leonardo Valente | ODS 16 • Publicada em 25 de fevereiro de 2022 - 18:20 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 18:21

Na Praça Lafayette, em Washington DC, manifestantes protestam contra a invasão da Rússia na Ucrânia (Foto Mandel Ngan / AFP)

Os arsenais nucleares dos Estados Unidos e da Rússia, que por décadas alimentaram em todo o mundo o pesadelo de uma dolorosa extinção da espécie humana a partir de uma guerra onde quem morresse primeiro teria melhor sorte, dessa vez salvaram a Europa de uma grande guerra de duração e consequências imprevisíveis, apenas com a certeza de pelo menos alguns milhares de mortos. A invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada em 24 de fevereiro, só ocorreu porque Vladimir Putin tinha a certeza de que seus mísseis intercontinentais e multi-ogivas capazes de atingir em questão de minutos as principais cidades americanas impediriam os Estados Unidos e a própria Europa de darem qualquer passo além das já previsíveis sanções. Em sentido contrário, os mísseis americanos, tão potentes e velozes quanto, são a garantia de que a Ucrânia é o limite de Putin, não há chance de qualquer avanço para o Oeste, por conta das fronteiras da Otan. Não fosse assim, este certamente já seria um conflito, no mínimo, europeu. Isso, contudo, não retira a gravidade da crise. Trata-se do mais tenso episódio geopolítico na Europa desde o final da Guerra Fria, reflexo de um mundo cuja liderança encontra-se em perigosa e acirrada disputa, e com consequências que serão sentidas por anos, talvez décadas.

Leu essa? Rússia: um grande urso acuado

Para compreender as questões que levaram a Rússia à guerra é preciso mergulhar em uma complexa e intricada teia de questões históricas e geopolíticas, que remetem desde a fundação da própria Rússia, o que envolve diretamente a Ucrânia, à recente ascensão da China ao status de potência rival dos Estados Unidos. Alguns fatos, no entanto, têm importância crucial, e entre eles se destacam as escolhas da política externa americana desde a Queda do Muro de Berlim.

Com a dissolução da União Soviética, no início da década de 1990, parte relevante da comunidade internacional esperava que o antigo desejo americano de democratizar a Rússia aos moldes do Ocidente resultaria no acolhimento do país e em ajudas vultuosas que permitissem sua inclusão no seleto clube de aliados. Expectativa que existia até mesmo em Moscou naquele período, quando a Otan passou a ser vista mais como aliada do que como rival. A frustração foi grande, inclusive em grupos nos Estados Unidos. Em vez da aproximação, o caminho foi a expansão da Otan para a tradicional área de influência da Rússia, inclusive para ex-repúblicas soviéticas, o que converteu a empolgação em decepção e desconfiança. Deixada à deriva também no campo econômico, a Rússia precisou retroceder a seu perímetro de segurança e enfrentar um dos momentos mais difíceis e humilhantes de sua história recente. Considerado pelos russos como o presidente que tirou o país dessa constrangedora situação e o recolocou com nação relevante perante o mundo, Putin tornou-se um revisionista feroz da política externa russa dos anos 90 para o Ocidente, e um claro rival dos Estados Unidos.

Veículos militares ucranianos passam pela Praça da Independência no centro de Kiev. Foto Daniel Leal/AFP. Fevereiro/2022
Veículos militares ucranianos passam pela Praça da Independência no centro de Kiev (Foto Daniel Leal / AFP / Fevereiro 2022)

Outra escolha mais recente da política externa americana é reflexo direto da ascensão da China à condição de grande potência e das alianças estratégicas estabelecidas entre Moscou e Pequim, que ganharam musculatura a partir de 2007. A visão geopolítica dos Estados Unidos, influência direta da geopolítica britânica, considera a Ásia o centro nervoso do sistema internacional. Quem, portanto, controla a Ásia, controla o mundo. Há uma região euroasiática que se estende até mais ou menos a Alemanha, chamada de Heartland, e que seria de acordo com essa visão o centro nevrálgico do domínio da Ásia e, consequentemente, do exercício da hegemonia mundial. Os territórios de China e Rússia juntos ocupam praticamente todo esse território, faltando apenas uma parte da Europa.  Apesar de ser uma espécie de old school para muitos, essa orientação geopolítica permeia a visão militar e política de uma forma geral no establishment norte-americano, e, por isso, a estratégia sempre foi: ninguém pode ter o controle da Ásia, esta é uma região que precisa estar dividida para que a liderança do Ocidente não seja ameaçada. Na Guerra Fria, o rompimento entre China e União Soviética foi a tábua de salvação para o bloco capitalista, segundo muitos analistas, e o papel dos norte-americanos neste processo foi crucial. A visita de Nixon à China foi um dos marcos dessa questão, assim como a transferência da vaga permanente do Conselho de Segurança da ONU de Taiwan para a China continental.

Os Estados Unidos perderam para China e Rússia nos últimos anos espaço importante em processos decisórios na Ásia, especialmente multilaterais e em acordos comerciais. Diante da possibilidade de perderem ainda mais, optaram por um avanço da Otan para o Leste, e não é segredo para ninguém que a Ucrânia, porta de entrada da Europa para a Ásia, pelo menos desde 2014 faz parte desse projeto de ampliação. O problema é que dessa vez a aliança ocidental não encontra mais uma Rússia falida, desestruturada e ansiosa pela aproximação com o Ocidente, mas um país revisionista, aliado a uma outra grande potência e com projeto de construção de uma ordem multipolar de poder, onde na Ásia não haveria mais espaço relevante para os Estados Unidos.

Putin, contudo, apesar de seu enorme conhecimento geopolítico e de claramente ter preparado de forma meticulosa a invasão, pode ter caído na própria armadilha.  Há algum tempo o braço sino-russo na Europa Ocidental, por meio de acordos econômicos e de infraestrutura, especialmente na Alemanha, preocupa os EUA, pois reduz sua influência entre seus principais aliados. A divulgada integração pelos gasodutos é só uma parte dessa preocupação, que inclui também, e especialmente, a tão temida Nova Rota da Seda. Nesse contexto, um conflito controlado, limitado justamente pelos arsenais nucleares de ambos os lados, mas que afaste a Europa da Rússia, e por tabela da China, ainda que por um tempo, pode ser uma vantagem para os Estados Unidos ainda maior que uma incerta expansão de sua aliança militar. Nesse novo xadrez pela liderança mundial, cada passo importa e ganhar tempo pode ser ainda mais importante. Para os grandes atores envolvidos nessa disputa, o que menos interessa na guerra da Ucrânia é a própria Ucrânia.

Leonardo Valente

Escritor, jornalista e professor de Relações Internacionais e Geopolítica. Diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ).

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Um comentário em “Para as potências, o que menos interessa na guerra da Ucrânia é a própria Ucrânia

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *