Mudança climática ameaça mobilidade urbana

Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando

Sem sistemas de transporte adaptados ao clima do futuro, nossas cidades podem parar

Por Clarisse Linke | Mobilidade UrbanaODS 13ODS 16 • Publicada em 20 de janeiro de 2016 - 09:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:03

Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando
Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando
Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando

Passada a euforia das negociações do clima, em Paris, começam agora as análises mais cuidadosas sobre suas implicações. Um fenômeno raro aconteceu durante o COP-21: líderes mundiais se comprometeram com metas mais ousadas do que o que estava sendo pleiteado pela comunidade internacional. Ao invés de se limitar ao cenário que considerava o aumento de 2°C na temperatura global, o comprometimento político definiu um limite de apenas 1,5°C. Para atingir esta meta – que já era ousada no cenário anterior – é necessário colocar o pé no acelerador e avançar definitivamente em políticas públicas arrojadas com investimentos que nos permitam não apenas sonhar, mas viver um futuro de baixo carbono.

O verão mais quente do Rio de Janeiro não será um momento único na nossa história. Teremos, de fato, que mudar o nosso slogan. E no “Rio, 50 graus”, o ato de se deslocar de um lugar para o outro será uma tarefa ainda mais árdua.

Se o assunto da mudança climática soava como uma pauta distante para a maior parte da população, agora entrou de fato para o vocabulário do dia-a-dia. E a diferença de 0,5 graus na temperatura global prometida pelos políticos afeta sim a vida de todos nós, por um motivo bem claro: nossas cidades não estão prontas para dar conta da mudança climática.

Escolhemos morar em cidades pois é onde temos mais acesso a oportunidades econômicas, sociais, culturais e de participação. Viver em cidades nos oferece ganhos de escala: estamos mais expostos, temos uma gama maior de chances de alçar voo, realizar sonhos. No entanto, para funcionar, elas precisam de sistemas eficientes e interdependentes: saneamento, transporte, energia, para citar somente os estruturais. E a mudança climática afeta diretamente o funcionamento de todos eles.

O verão mais quente do Rio de Janeiro não será um momento único na nossa história. Teremos, de fato, que mudar o nosso slogan. E no “Rio, 50 graus”, o ato de se deslocar de um lugar para o outro será uma tarefa ainda mais árdua.

A pauta das manifestações que voltam a ocupar as ruas em protesto contra o aumento das tarifas de transporte inclui a falta de ar condicionado nos ônibus. O que tem transformado a vida de passageiros e motoristas, muitas vezes, em um inferno diário. Se os veículos que hoje circulam pela cidade não dão conta do aumento da temperatura, imagine com o aquecimento global. O desconforto causado pela falta de ar condicionado será apenas um dos muitos problemas.

Estudos sobre mudança climática demonstram que a temperatura na América Latina subiu alguma coisa entre 0,5 e 3 graus Celsius nos últimos 100 anos. No território brasileiro, o aumento médio foi de 0,7 graus nos últimos 50 anos. Esta variação pôde ser percebida em diversos eventos atípicos, incluindo ondas de calor, aumento da precipitação e tempestades mais frequentes.

Neste momento, o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil) está liderando uma pesquisa sobre o impacto da mudança climática na mobilidade urbana, e a conclusão é bastante clara: os sistemas são vulneráveis aos longos períodos de temperaturas elevadas ou extremas, assim como ao aumento do volume, frequência e intensidade de chuvas. E as regiões metropolitanas são as mais vulneráveis, pois concentram a maior parte dos transportes coletivos e individuais, e um percentual significativo da população urbana brasileira.

Para agravar ainda mais a situação, são nessas regiões que se concentra a população de baixa renda, que compromete grande parte do seu orçamento familiar e do seu tempo nos deslocamentos entre casa e trabalho. Interrupções ou falhas nos sistemas de mobilidade geram um alto custo social e econômico para toda a sociedade.

E se não houver planejamento, é exatamente isso que teremos: interrupções e falhas.

Com o aumento da temperatura, as redes de transporte e seus componentes ficam sujeitos a falhas estruturais e operacionais, num processo de deterioração acelerado. Aumenta a necessidade de ciclos de manutenção e reparo. Nos modais metro-ferroviários, são constatados danos às redes aéreas, aos cabos de alimentação de energia e aos trilhos. A velocidade operacional dos veículos precisa ser reduzida. Quando atingidos por inundações, componentes desses sistemas, como motores de indução de parada, resistores, transformadores, interruptores elétricos, sinais e câmeras de controle podem ficar paralisados por horas, deixando os sistemas inoperantes.

Nos modais rodoviários, o superaquecimento de veículos e o maior desgaste nos pneus são recorrentes. Mais carros enguiçam, o que resulta em mais congestionamento. A temperatura dentro dos veículos se torna insuportável para passageiros e motoristas. Se já é difícil manter a temperatura em veículos com ar condicionado, os que não têm equipamento adequado dificilmente poderão continuar circulando. Com chuvas extremas, as vias que frequentemente sofrem com alagamentos e inundações também estão mais suscetíveis à deterioração, resultando em problemas na pavimentação, calçadas, semáforos, ciclovias, estações e terminais de transporte.

Durante o mês de maio de 2015, a cidade de Salvador enfrentou níveis de chuva que não eram vistos desde 1989, quando o acumulado no mês registrou 662,7 mm. O sistema de transporte marítimo entre Salvador e o terminal de Mar Grande foi interrompido. O mesmo aconteceu com o transporte rodoviário em função do transbordamento de rios e alagamento de diversas vias. O deslocamento a pé foi impactado em bairros que tiveram as calçadas comprometidas por desabamentos, transbordamento de esgoto e falta de luz.

As alterações climáticas projetadas para o território brasileiro impactam a implementação efetiva da Política Nacional de Mobilidade Urbana, influenciando o planejamento e o investimento de curto, médio e longo prazo. Garantir sistemas de mobilidade urbana confiáveis e acessíveis é estratégico para o futuro das cidades. Os Planos Municipais de Mobilidade Urbana, exigidos por lei para todas as cidades com mais de 20.000 habitantes, terão sua efetividade afetada caso não internalizem em suas estratégias as ameaças de mudanças futuras no clima.

Investimentos em infraestrutura que estejam acontecendo agora precisam não somente de planos de contingência para lidar com situações emergenciais. Tais planos são importantes, mas são soluções pontuais e de curto prazo. Para termos sistemas de mobilidade urbana mais resilientes e que contribuam com a meta de descarbonizar o planeta, precisamos de sistemas adaptados ao clima do futuro.

Nessa linha, o item 1 da pauta é acabar por completo nossa dependência dos combustíveis fósseis. Precisamos promover transportes ativos de forma mais enfática, precisamos rever a forma como usamos e ocupamos o solo, de modo que tenhamos que fazer deslocamentos mais curtos. Sistemas de mobilidade urbana mais resilientes são parte fundamental do conjunto de estratégias necessárias à transição das cidades brasileiras para economias mais sustentáveis e de baixo carbono. Assim teremos benefícios sociais, econômicos e ambientais para toda a população. Limitar o aumento da temperatura global a 1,5 graus é possível, mas para isso precisamos parar de sonhar. É hora de agir.

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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