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O Rei do Futebol e a majestade do Maracanã

ODS 11 • Publicada em 10 de janeiro de 2023 - 08:50 • Atualizada em 10 de janeiro de 2023 - 16:35

Vi Pelé jogar – ao vivo, no estádio – duas vezes, as duas vezes no Maracanã. Apesar de já estar devidamente coroado como Rei do Futebol, Pelé, em ambas, é apenas um coadjuvante nas minhas memórias, onde estão gravados detalhes mais pessoas e sempre o impacto causado pela majestade do Maracanã. São memórias de um garoto de menos de 10 anos, apaixonado por futebol, que passa seu tempo de brincadeiras entre a bola grande das peladas na calçada e a bola pequena dos jogos de botão.

O meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope

Nelson Rodrigues
Escritor, na crônica A Realeza de Pelé

A primeira vez que vi Pelé jogar, para mim, não ficou marcada como a primeira vez que vi Pelé jogar. Foi, sim, a primeira vez que fui ver um jogo no Maracanã à noite – e a primeira vez que vi uma partida internacional. Tenho lembranças de Pelé naquele uniforme todo branco ´- tão bonito quanto tradicional – do Santos, como de Edu, com as meias arriadas, e de Carlos Alberto. E lembro do uniforme do Penãrol, time uruguaio de camisa amarela e preta, cores jamais vistas em combinação por aqui. Mas, mais do que o jogo, minha memória guarda a inigualável rampa do Maracanã (mal) iluminada, os refletores brilhando, meu avô levando o neto no colo no arquibancada acima (quem tem saudade das arquibancadas do Maracanã, diz um amigo, tem, na real, saudade do tempo em que tínhamos joelhos para subir aqueles degraus altos).

A noite escura, o gramado verde, os pretos no time de branco, os brancos no time de amarelo e preto – e meu avô, que me levava aos jogos nesta fase da infância, enorme (quase 1,90m) como o Maracanã, contando coisas do futebol: são essas as lembranças. Se não estivesse escrevendo essa crônica, não saberia que o Santos ganhou de 1×0, com um gol do jovem e recém-promovido Clodoaldo e o jogo, em 1968,valia pela Recopa Sul-Americana, torneio que incluía o Racing, da Argentina, e foi vencido pelos brasileiros. O Santos de Pelé amava jogar no Maracanã – o maior estádio do mundo na época, garantia de rendas excelentes, e também um campo maior, em dimensão, do que o da Vila Belmiro ou do Pacaembu, o que facilitava a exibição dos craques.

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A segunda vez que vi Pelé jogar – e a única, no estádio, que vi o Rei fazer gols – foi a primeira vez que assisti a uma partida da seleção brasileira: Brasil x Venezuela pelas Eliminatórias da Copa do Mundo do México 1970. Minhas principais lembranças do jogo de 1969 são do Maracanã lotado – estava meio vazio naquele noturno Santos x Peñarol – com muita gente de camisa amarela, da torcida gritando o nome dos jogadores – “Pelé, Pelé”, “Tostão, Tostão”, e também “Brasil, Brasil” – de ter visto grande parte do jogo em pé, entre as pernas do meu pai (tinha oito anos), porque a arquibancada estava um aperto só. Ficou na memória o placar de 6×0 que faz da campanha histórica das feras de João Saldanha nas eliminatórias para a conquista do tri, mas não lembro dos gols – três de Tostão, dois de Pelé, um de Jairzinho.

Placa da Avenida Rei Pelé em frente ao Estádio Mário Filho: homenagem aproxima o artista do majestoso palco do Maracanã (Foto: Beth Santos / Prefeitura do Rio)
Placa da Avenida Rei Pelé em frente ao Estádio Mário Filho: homenagem aproxima o artista do majestoso palco do Maracanã (Foto: Beth Santos / Prefeitura do Rio)

O Maracanã nunca deixou de fazer parte de minha vida. Vi meu Bangu, em sua pior fase ser goleado por 8×0 pelo Flamengo; acompanhei, com meu mais querido amigo rubro-negro, as conquistas do time de Zico, inclusive a vitória sobre o Atlético Mineiro na final de 1980 (público pagante, 154 mil pessoas); estava lá quando meu time perdeu o título brasileiro para o Coritba em 1985; no Maracanã, assisti, pela única vez, o Bangu levantar um troféu: Taça Rio 1987; vi Romário liderar a seleção na conquista da Copa América em 1989. Também foi no Maracanã, que este beatlemaníaco viu um show de Paul McCartney pela primeira vez. E foi lá a única vez que meus olhos testemunharam um gol de Messi – Argentina 2×1 Bósnia, pela Copa do Mundo de 2014, onde, no mesmo palco, contemplei o gol mais bonito do Mundial, do colombiano James Rodriguez, contra o Uruguai.

Apesar de ter jogado só pelo Santos no Brasil, a trajetória do Rei do Futebol passa pela majestade do estádio como se carioca fosse. Pelé estreou com a camisa da seleção brasileiro em um jogo – onde mais? –  no Maracanã, em julho de 1957. O Brasil perdeu de 2×1, mas o adolescente, ainda com 16 anos anos. fez seu gol. Em 1961, no mesmo estádio, Pelé driblou seis adversários (ou sete, ou oito, há controvérsias) para marcar um gol no Fluminense pelo Torneio Rio/SP. Este gol gerou uma homenagem – uma placa comemorativa no saguão do estádio – e também a expressão “gol de placa”, até hoje usada para denominar gols espetaculares. Em 1969, Pelé marcou – no Maracanã, contra o Vasco – seu milésimo gol. Em 1971, depois de conquistar três Copas do Mundo, o Rei ouviu 140 mil gritando em coro “Fica, Pelé” em seu jogo de despedida da seleção brasileira no (onde mais?) Maracanã.

Cada brasileiro se sentia um pouco Pelé. Um brasileiro fora escolhido para ser Pelé. Poderia ter sido qualquer um deles. Era o sangue, era a raça

Mário Filho
Escritor e jornalista, em Viagem em Torno de Pelé

Desnecessário escrever aqui – depois de tantos – sobre a magnitude e a dimensão de Pelé e sua importância para o Brasil e a identidade nacional. Minha admiração de torcedor mirim, levada a última potência pela conquista no México da seleção dos sonhos, guiada pelo Rei em forma exuberante, foi solidificada na adolescência por um livro sobre o Mundial do Chile (Copa do Mundo, 62), escrita por Mário Filho, jornalista, escritor e amante dos esportes que batiza o Maracanã desde 1966. Mário Filho, proprietário e diretor do Jornal dos Sports, foi decisivo para o estádio ficar ali onde está – havia uma corrente que deseja o estádio em Jacarepaguá, bairro a 50 quilômetros do Centro do Rio.

Em ‘Copa do Mundo, 62’, o escritor, que acompanhou a delegação brasileira, reconta cenas da seleção a caminho do título. “Pelé sentou-se na cama, ouvindo o ressonar de Coutinho. Juntou as mãos e fechou os olhos. ‘Minha Nossa Senhora da Aparecida. Protegei Dondinho”, escreve o jornalista, logo no capítulo 4 da primeira parte do livro, relatando que o craque pediria depois proteção para a mãe, Celeste, para a avó Ambrosina, para os irmãos Jair e Lúcia. “E, depois de Lúcia, Pelé não tinha mais ninguém a pedir. Esquecera-se dele. ‘Dai paz ao mundo, minha Nossa Senhora’. Pelé fez o sinal da cruz”.  O livro – neste e outros trechos – humaniza a majestade, como a quase todos os envolvidos na conquista do bicampeonato.

Aos 21 anos, em 1962, Pelé já era tratado como Rei – foi o irmão de Mário Filho, Nelson Rodrigues, que começou a chamá-lo assim depois de assistir, no Maracanã (onde mais?), Pelé marcar quatro gols na vitória de 5×3 do Santos sobre o América. “O meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”, escreveu Nelson, em ‘A realeza de Pelé’, crônica publicada em março de 1958, quatro meses antes da conquista da Copa do Mundo quando até franceses e suecos – ambos derrotados pelo Brasil de Pelé – também a chamá-lo de Rei.

Avenida Rei Pelé: homenagem no Rio em frente ao Maracanã, onde o Pelé fez seu primeiro gol pela seleção e o milésimo de sua carreira (Foto: Beth Santos / Prefeitura do Rio)
Sinalização da nova Avenida Rei Pelé: homenagem no Rio em frente ao Maracanã, onde o Pelé fez seu primeiro gol pela seleção e o milésimo de sua carreira (Foto: Beth Santos / Prefeitura do Rio)

O relato detalhado de Mário Filho sobre o Mundial de 1962 mistura testemunhos de jogadores, comissão técnica e jornalistas no Chile. Na lesão de Pelé no segundo jogo do Brasil, ainda na primeira fase, contra a Tchecoslováquia, relata o drama do craque, sentindo a violenta distensão no músculo após acertar a trave adversária. “E não fiz o gol, e não fiz o gol”. Pelé fica no jogo, fazendo número perto da lateral, mas não jogo mais no Mundial. Mário Filho ainda escreveria “Viagem em torno de Pelé”, biografia romanceada publicada em 1963, em que conta a trajetória do Rei desde Três Corações até a volta triunfal depois da lesão na Copa do Mundo, concluída pela conquista da Copa Intercontinental de Clubes – goleada do Santos (5×2) sobre o Benfica, em Lisboa, três gols de Pelé, e mais um capítulo da paixão dos súditos. “Cada brasileiro se sentia um pouco Pelé. Um brasileiro fora escolhido para ser Pelé. Poderia ter sido qualquer um deles. Era o sangue, era a raça”, escreveu Mário Filho.

Estive com o Rei algumas vezes antes dos Jogos Olímpicos de Atlanta 1996 – Pelé, ministro dos Esportes, eu assessor do Comitê Olímpico Brasileiro. Quando ele ia à sede do COB, no Centro, ele levava pelo menos meia hora do momento em que descia do carro até chegar à sala do presidente Carlos Nuzman. Na rua, parava e atendia todos os pedidos de autógrafos e fotos; no COB, fazia questão de cumprimentar os funcionários. Poucos antes dos Jogos em Atlanta, encontro em restaurante juntou representantes do COB e do Ministério. O Rei levou 40 minutos da entrada à mesa. Os súditos americanos tinham a mesma deferência dos brasileiros – e Pelé os tratava com deferência semelhante.

Por todas essas memórias e lembranças, fiquei emocionado ao ver a placa da Avenida Rei Pelé em frente ao Estádio Mário Filho. Pelé merece todas as homenagens, em todos os lugares do mundo, de todas as torcidas, de todos que amam o futebol. Mas a homenagem carioca vai ficar bem ao aproximar o artista de seu palco e o Rei de seus súditos.

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