A cubanização da Venezuela

As ironias do destino, os avanços lentos de Cuba e a falência do chavismo

Por Trajano de Moraes | ODS 11 • Publicada em 1 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 3 de abril de 2022 - 17:01

Nas ruas de Havana, um dos tradicionais carros da cidade circula com as bandeiras de Cuba e dos EUA

A Venezuela bolivariana de Hugo Chávez e Nicolás Maduro tanto imitou a Cuba dos irmãos Fidel e Raúl Castro que está cada vez mais parecida com ela: faltam alimentos, remédios e produtos de higiene pessoal, há filas na porta dos estabelecimentos comerciais e a população sofre com apagões e escassez de peças de reposição para veículos e equipamentos. Até o pão anda difícil de achar.

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Mas há outra ironia nisso. Enquanto o Socialismo do Século XXI, de Chávez e Maduro, despenca ladeira abaixo, o do Século XX, dos Castro, está em viés de alta.  Vejamos alguns números: o PIB de Cuba cresceu 1,3% em 2014, último dado disponível, enquanto na Venezuela caía 4%. Em 2015, a produção total de bens e serviços na terra de Chávez encolheu catastróficos 10% – a de Cuba não deve ser muito diferente do ano anterior – avanço modesto.  Mas há outro dado explosivo: a produção industrial na ilha dos Castro aumentou expressivos 9,6% ano passado, enquanto a da Venezuela recuava 8%, números do CIA World Factbook.

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As últimas notícias são péssimas para a República Bolivariana e portadoras de esperanças para a ilha (ainda) stalinista. Pela primeira vez em 20 anos, em fevereiro, Nicolás Maduro anunciou aumentos nos preços da gasolina mais barata do mundo: o litro da de 91 octanas foi para 1 bolívar (R$ 0,6318) e a de 95 octanas, para 6 bolívares (R$ 3,8) – neste caso uma alta de impensáveis 6.085%! O dirigente venezuelano aumentou o salário mínimo em 20%, algo como enxugar gelo, pois a inflação no país em 2015 bateu nos 181% – a mais alta do mundo. Este ano deverá ultrapassar os 200%. Enquanto isso, o aumento geral de preços em Cuba ficou em 4,4% no ano passado.

Havana, por sua vez, se beneficia da política de abertura adotada pelos EUA de Barack Obama. Um ano após o início da normalização das relações diplomáticas, os dois lados firmaram um acordo que permitirá a realização de até 110 voos diários entre os dois países, suspensos há 50 anos. Apenas os fretados eram permitidos. Mas outras regras não mudaram: só podem viajar a Cuba americanos enquadrados em 12 categorias, entre elas religiosos, acadêmicos, desportistas, jornalistas. Nada de turistas, por enquanto – a não ser, claro, os que fizerem uma triangulação. Mesmo antes da medida, o número de americanos que viajou a Cuba ampliou-se em 57% no ano passado, aumentando o ingresso de moeda forte na ilha. Que já havia sido reforçada pela decisão de Obama de quadruplicar a remessa financeira trimestral por cubanos no exterior de US$ 500 para US$ 2000.

Outro dado expressivo para Cuba foi a primeira permissão, em mais de cinco décadas, para instalação de uma fábrica americana na ilha. Um pequeno fabricante de tratores do Alabama vai investir até US$ 10 milhões para instalar uma linha de montagem na zona franca cubana de Mariel, que deverá operar em 2017. Apostam na necessidade de modernizar a agricultura cubana.

Mas a notícia mais impactante foi o anúncio de que Barack Obama chegará a Cuba no dia 21 de março – a primeira visita de um presidente americano em 88 anos. Por mais que Obama esteja de olho em seu legado, é um gesto de estadista que poderá apressar a abertura do regime castrista, principalmente na área dos direitos humanos, e melhorar a relação de Washington com toda a América Latina. Críticos lembram o outro lado da moeda: a visita poderá soar aos dirigentes em Havana como um beneplácito para continuar aplicando sua receita de pequenas concessões econômicas, sem abertura democrática e desmantelamento do Estado policial, que não admite oposição. É bem possível.

O carismático coronel Hugo Chávez assumiu o poder na Venezuela em 1999 e trabalhou intensamente até sua morte, em 2013, para implantar a Revolução Bolivariana e o Socialismo do Século XXI, denominações pomposas para um regime nacional-populista com toques messiânicos que transformou em caricaturas as instituições democráticas do país. Exportou sua “revolução” para outros latino-americanos como Equador, Bolívia e Nicarágua e encontrou reciprocidade do kirchnerismo, na Argentina, e apoio dos governos petistas do Brasil. Sua fórmula, imutável, é Executivo forte, Legislativo e Judiciário fracos, porque aparelhados pelo chavismo, censura e controle dos meios de comunicação e estatização galopante da economia.

Chávez tinha, afinal, três argumentos fortíssimos: as maiores reservas de petróleo do mundo, a escalada formidável do preço do barril – que chegou a custar US$ 112,36 em junho de 2014, e uma retumbante retórica antiamericana, à guisa de esquerdismo, que sempre faz sucesso em amplos setores na América Latina. Com essas armas, montou um enorme esquema assistencialista baseado na petrolífera PDVSA. Conseguiu reduzir a pobreza e melhorar a qualidade de vida do povo enquanto o esquema funcionou. Mas a estatização arruinou a economia e a falta de investimentos dilapidou a infraestrutura. Maduro já herdou um país atolado em dificuldades. Quando o preço do petróleo despencou dois terços, para US$ 35 o barril no início de fevereiro, a Venezuela faliu.

Venezuela: um homem consegue comprar baguetes numa das poucas padarias de Caracas que ainda vendia pão na semana passada
Um homem consegue comprar baguetes numa das poucas padarias de Caracas que ainda vendia pão na semana passada

Outro dado curioso é que, do alto de sua então formidável receita petrolífera, Chávez se transformara no mecenas econômico do regime de Cuba, a quem fornecia cerca de 100 mil barris/dia em troca da atuação de especialistas cubanos em várias áreas carentes da Venezuela, em programas sociais que incluem médicos, o que viria a ser copiado, com adaptações, pelo Brasil. Não se sabe se, nos atuais dias de penúria, o mecenato continua em vigor.

A Venezuela empobrece rapidamente. Segundo pesquisa da Venebarômetro, 79% dos entrevistados disseram não ter dinheiro para comprar comida ou remédios (se os achassem), 80% para comprar roupas e 65% para pagar a educação. Segundo o próprio Banco Central venezuelano, o preço dos alimentos subiu 315% em 2015. Hospitais sofrem com a falta de remédios e material para exames radiológicos e mamografia. A Assembleia Nacional, hoje dominada pela oposição, pediu ajuda humanitária à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mas as medidas de emergência do governo Maduro indicam que o regime pretende seguir seu curso até o caos. São típicas de economias de planejamento central, do tipo que desapareceu junto com a URSS e os regimes de países da então chamada Cortina de Ferro (Europa Oriental). É o que se depreende da recente declaração do dirigente chavista: “O novo sistema de preços busca acabar com o capitalismo neoliberal que reina nos mercados nacionais”. Algo que deixaria até líderes chineses de cabelos em pé.

Os cubanos, por sua vez, vêm se beneficiando de uma série de medidas de desafogo econômico a partir de abril de 2011, quando houve o primeiro Congresso do Partido Comunista Cubano em quase 13 anos. Eles passaram a poder comprar eletrodomésticos e celulares, carros e até imóveis que pertenciam ao governo. Este entendeu que precisava diminuir o peso do Estado na economia e cortou cerca de 500 mil funcionários, ao mesmo tempo em que permitia a abertura de pequenos negócios, como bares, restaurantes, salões de beleza. Também foi autorizada a venda de produtos de pequenos fazendeiros, a criação de cooperativas não-agrícolas e adotada uma lei mais liberal para investimentos estrangeiros. Até uma zona especial de desenvolvimento foi criada no porto de Mariel.

Isto quer dizer que Cuba está hoje em melhor situação que a Venezuela? Em termos. Cuba continua forte em indicadores sociais. Está à frente em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – 67/71 entre 166 países em 2015; em alfabetização (99,8%/94,8%); em mortalidade infantil (4,63 /18,91 por mil nascimentos); em gastos com saúde (8,8%/3,6% do PIB); em gastos com educação (12,8%/6,9% do PIB).

Mas só o fim do embargo econômico dos EUA, em vigor há mais de 50 anos, poderá liberar Cuba para realizar seu potencial. Isto, entretanto, só se dará quando o regime cubano der passos largos rumo à democratização e soltar os presos políticos. Apenas a adoção de um sistema híbrido, como na China e no Vietnã, poderá não satisfazer Washington.

Já o potencial da Venezuela é grande. Mas o país precisa parar de andar para trás e iniciar um diálogo político nacional. O legado social chavista não precisa ser desprezado, mas quase todo o mais precisará ser reformulado, principalmente na economia e na política.

Trajano de Moraes

Jornalista com longas passagens por Jornal do Brasil, na década de 1970, e O Globo (1987 a 2014), sempre tratando de temas de Política Internacional e/ou Economia. Estava posto em sossego quando foi irresistivelmente atraído pelos encantos do #Colabora. E resolveu sair da toca.

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