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Mães fora do armário: exemplos de acolhimento LGBT+ inspiram livro
Mulheres contam histórias da relação com filhos/as/es após conhecimento sobre suas sexualidades e/ou identidades de gênero
“Sinto orgulho demais dos humanos que são e da forma como vivem a vida”. A declaração é de uma das autoras do livro “Mães fora do armário” – Cintia Jardim é mãe de três jovens não binários e bissexuais. Afeto, acolhimento são elementos que definem o conceito de maternagem, enquanto uma relação de cuidado independente de laços biológicos, origem ou diversidade. Porém, grande parte das pessoas LGBTQIA+ enfrentam preconceitos e violências ao falar abertamente sobre sexualidade e/ou identidade de gênero no ambiente familiar.
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De acordo com o mais recente dossiê elaborado pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, o preconceito contra esse grupo possui três dimensões: interpessoal, institucional e estrutural. Neste último, está incluída a LGBTfobia que se manifesta no ambiente familiar, seja pela não aceitação da identidade dos filhos pelos pais, chegando a casos de expulsão de casa e violências morais e físicas. Apesar deste contexto desafiador e desigual, é importante destacar que essa relação não precisa – e não deve – ser assim, como mostram os depoimentos do livro “Mães fora do armário”.
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Veja o que já enviamosLançada no mês do Orgulho LGBTQIA+, a obra reúne 14 diferentes histórias da experiência da maternagem diante da diversidade. Uma das organizadoras, Adriana Valadares descreve a iniciativa como um esforço para demonstrar o potencial do afeto e uma forma de derrubar barreiras e preconceitos. “Quem lê o livro, esteve naquele lugar e optou, nesse mundo cruel e difícil, por abraçar essa pessoa (LGBTQIA+), está num grupo que tem orgulho de dizer: eu maternei uma pessoa LGBTQIA+”, afirma Adriana.
Assim como tudo na vida, as histórias do livro não são todas iguais, o mesmo vale para as trajetórias das mães que escrevem. Cintia Jardim, por exemplo, revela que teve dificuldades para compreender e se adaptar com a identidade de gênero dos filhos: suas duas gêmeas adotaram os nomes sociais de Lilo e Oliver, após se entenderem como não binárias. O processo mais difícil, no entanto, foi quando, até então, o seu “filho mais velho” passou a usar o nome social Mat e os pronomes “ela/dela”.
“Recuperar esses momentos e enxergar de outra maneira foi muito forte e eu topei, porque a Adriana disse que a intenção era fazer com que as pessoas lessem sobre e entendessem como as famílias passam por esses momentos”, conta Cintia sobre a experiência da escrita do livro. Jornalista e moradora de Porto Alegre, ela pontua o fato de buscar ler e estudar o máximo possível para acolher seus filhos.
‘Quem sabe não chamo todos de amores?’
Apesar de ter se considerado preparada para lidar com a sexualidade dos filhos fora da heteronormatividade, Cintia afirma que desconhecia as questões de gênero. O primeiro baque em relação a isso veio quando foi até a escola e descobriu que uma de suas filhas, então com 15 anos, tinha solicitado a troca do nome na chamada para Lilo. “Eu me senti um fracasso, pensei: como que ela não me conta?”.
Passado o momento da surpresa e depois de uma conversa com os filhos e a filha, Cintia passou a compreender melhor o que estava acontecendo. Uma das estratégias adotadas por ela para aprender mais sobre o assunto foi buscar contato com outras mães de pessoas LGBTQIA+, o que a levou a conhecer e fazer parte do projeto “Mães fora do armário”.
Além disso, o acolhimento na forma como seus pais – os avós de Lilo, Oliver e Mat – lidaram com o assunto, foi algo que a ajudou e tranquilizou. “Quando Lilo foi conversar com meu pai foi até engraçado, porque meu pai disse assim: olha, vô vai te confessar que é muito difícil, mas vou tentar. Agora estava pensando em uma coisa, quem sabe não chamo todos de amores?”, relembra Cintia, que diz ter gostado e adotado essa postura do avô dos jovens.
“A gente aprende a sair do armário junto com a filha ou com o filho”
Os exemplos que Romyna Lanza teve dos pais, mesmo tendo crescido em meio a ditadura militar, também foram importantes na relação dela com a filha Ana Luiza, uma mulher bissexual. Jornalista e servidora pública em Minas Gerais, Romyna relata que começou a perceber a proximidade da filha com uma amiga, Paula, após um acidente em que esta acompanhou Ana Luiza até o hospital. “Todo final de semana ia para a casa dela e só me contava novidades sobre a Paula”, acrescenta.
A conversa definitiva e o entendimento que a filha estava em um relacionamento com outra mulher veio depois, na véspera de um Natal em que Romyna perguntou o que poderia dar de presente para Paula. “Aí que ela me falou: ah mãe, você já sabe então”. A mãe da jovem ressalta que a abertura e escuta foram decisivas. “Eu estava aprendendo com a minha filha como era ser essa mãe fora do armário, então eu dei esse espaço para ela me contar o que ela quisesse”, complementa a jornalista.
No caso da psicóloga Eveny Teixeira, o processo de conhecimento da identificação do filho como um homem trans ocorreu em meio à investigação de sua neurodivergência. Apesar do acolhimento materno, o mesmo não ocorreu com o pai de Lucca (nome social adotado pelo filho de Eveny). “O pai, infelizmente, não teve tanta facilidade para aceitar. Eu acredito que agora já esteja mais sensível à realidade do gênero do filho, mas eles estão rompidos há dois anos e meio”, relata a psicóloga de Belém.
De acordo com Eveny, um dos pontos chaves para o desenvolvimento do filho, que enfrentou problemas de autoestima e depressão, foi a entrada em uma escola com caráter mais progressista, onde o nome social foi aceito e respeitado. No contexto familiar, Eveny menciona que seus pais tiveram dificuldade no início, principalmente com o pronome, “mas eles conseguiram, porque são extremamente afetuosos e apaixonados pelo neto, fazem de tudo que está ao alcance deles, pelo neto”.
Em relação à participação no livro e o contato com outras mães LGBTQIA+, a psicóloga cita os desafios de compartilhar com o mundo questões sensíveis e revisitar diferentes momentos. “Cada mulher envolvida no projeto do livro Mães Fora do Armário precisou revisitar suas verdades e superar a autocrítica para compartilhá-las com o mundo”, diz. A intenção agora é de que esses relatos estimulem mais acolhimento e compreensão. “Nós esperamos que este livro seja um abraço cheio de esperança aos que compreendem a importância de construirmos uma sociedade para todas, todos e todes”, afirma Eveny.
O amor como uma potência política
Mãe solo de três filhos, Adriana Valadares acredita que o processo de criação de uma criança, associado ao termo maternagem, para além da ideia de maternidade – ligada à geração biológica de um filho – deveria ser algo mais coletivo na sociedade. Segundo ela, isso ajudaria os jovens a terem referências mais plurais, a exemplo do que ela mesmo teve ao crescer em uma comunidade periférica do Rio de Janeiro, onde o senso coletivo era muito forte. “Eu cresci no meio daquele extremo considerado subalternizado, eram retirantes, nordestinos, pessoas negras, pessoas muito pobres, e claro, população LGBTQIA+”.
Esse contexto de acolhimento coletivo ajudou Adriana a lidar com a transição de gênero do seu filho mais velho, Victor, um homem trans hoje com 30 anos. “Meu filho mais velho recebia os brinquedos que eram relativos à ideia de feminilidade e odiava, não gostava de botar presilha no cabelo, odiava vestido”, relembra ela.
O entendimento da identidade de gênero por Victor e o início da transição ocorreu na adolescência, quando ele tinha 15 anos. Nessa época, revela Adriana, encontrar ajuda para realizar o tratamento hormonal necessário para a transição foi um desafio. “Nenhum dos 19 endócrinos aceitou fazer o procedimento. Então teve uma hora que eu falei assim: espera, eu estou fazendo errado, porque eu estou sofrendo a violência junto com o Victor”. Após isso, ela começou a estudar o tema e se tornou ativista na luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ e fazer parte do coletivo Mães pela Diversidade.
A atuação na militância também levou Adriana a se tornar madrinha de várias outras pessoas LGBTQIA+, muitas que não tiveram acolhimento em suas famílias. “Minhas redes são ocupadas por jovens que ficam querendo carinho, palavras de afeto. Às vezes, eu vou dormir 3h da manhã, porque eu não vou dizer não para uma pessoa dessa. Queremos muito que isso acabe, quero ser madrinha de pessoas que estão felizes, sabe, eu não quero ser madrinha porque falta essa maternagem, eu não quero ser madrinha porque eles estão se sentindo sozinhos no mundo”, relata.
Um dos temas que permeia os relatos do livro escrito por Adriana e pelas outras 13 mães é justamente a preocupação com a violência e o preconceito. “Quem tem um filho trans tem outras preocupações para além da violência dita ‘comum’, que não dá para normalizar, mas, por exemplo, a média de vida do meu filho cis, no Brasil, é de 72 a 74 anos de idade, e a média de vida da população brasileira trans no Brasil é entre 33 e 35 anos de idade”, enfatiza ela. Em 2023, o Brasil registrou 230 mortes associadas à LGBTfobia, incluindo pessoas trans e travestis, uma a cada 38 horas, sem contar a subnotificação e os casos de violência e agressão.
Como alternativa de resistência nesse contexto, Adriana defende uma postura que considere o amor como um afeto com potência política. Ela também destaca que os depoimentos da obra, “não são de pessoas falando sobre o filho LGBTQIA +, mas sobre a maternagem. As pessoas LGBTQIA+ efetivamente falam com muito mais propriedade do que a gente. Queríamos que tivesse um projeto que falasse sobre esse olhar materno, esse olhar amoroso”, ressalta a organizadora do livro.
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Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.