Pequenos (e preciosos) milagres de Jorge

Tânia Bisteka e Lígia Mello, unidas pelo fervor a São Jorge. Foto Claudia Silva

A festa de parceria e solidariedade em homenagem ao Santo Guerreiro, que faz sonhar com uma cidade melhor

Por Aydano André Motta | ODS 1ODS 11 • Publicada em 24 de abril de 2017 - 18:18 • Atualizada em 24 de abril de 2017 - 18:21

Tânia Bisteka e Lígia Mello, unidas pelo fervor a São Jorge. Foto Claudia Silva
Tânia Bisteka e Lígia Mello, unidas pelo fervor a São Jorge. Foto Claudia Silva
Tânia Bisteka e Lígia Mello, unidas pelo fervor a São Jorge. Foto Claudia Silva

A megalópole intolerante e estressada, mesquinha e carrancuda, que exige silêncio diante da alegria alheia, se esvanece no sonho de uma rua da Zona Norte, no dia do padroeiro informal. A via fechada aos carros cruzou a tarde chuvosa do 23 de abril embalada no amor a São Jorge (Ogum, no sincretismo indispensável), ao sabor da feijoada, no ritmo do samba – de graça, como convém. Somente trabalho e entrega, em nome da fé mais carioca.

Fábula com endereço: rua Francisco Neiva, em Maria da Graça, subúrbio arrumado, de casas confortáveis, ruas e calçadas em ordem, que merecia sorte melhor no Rio ultraviolento do século XXI. Mas, ao menos naquele canto, as mazelas sumiram, efêmero (e precioso) milagre de Jorge. Do almoço até a noite, o domingo chuvoso iluminou-se em generosidade canto, dança, amizade, comida e bebida.

Cinco anos atrás, decidiram que todo ano haveria uma feijoada pelo padroeiro, sem ingresso nem couvert, aberto a quem quisesse chegar. Há dois anos mudaram-se para Maria da Graça. Agora, em 2017, elas previram 150 pessoas – apareceram 300

O bafafá nasce da fé de duas cariocas, Lígia Mello e Tânia Bisteka, que, vizinhas, uniram-se no fervor pelo Guerreiro. Cinco anos atrás, decidiram que todo ano haveria uma feijoada pelo padroeiro, sem ingresso nem couvert, aberto a quem quisesse chegar. As primeiras edições foram na área externa do prédio onde moram – mas o lugar ficou pequeno. Há dois anos mudaram-se para Maria da Graça. Agora, em 2017, elas previram 150 pessoas – apareceram 300.

Sem crise. Os panelões absurdamente imensos ofereceram comida (deliciosa!) em quantidade industrial e a cerveja rolou caudalosa e gelada até o fim. Maior rainha de bateria da história da Mangueira, Bisteka foi a cozinheira da montanha de proteína. Cruzou o sábado pilotando o fogão e terminou a missão no início da madrugada de domingo. Na manhã seguinte, ela e Lígia pegaram emprestado na verde e rosa os 40 jogos de mesas e cadeiras plásticas para o povo aproveitar a festa. E a chuva? “Fizemos uma vaquinha para alugar um toldo; o outro pedimos emprestado a um amigo”, listou a passista lendária.

O grupo de bambas animou a festa. Foto de Claudia Silva
O grupo de bambas animou a festa. Foto de Claudia Silva

Tudo com a mesma moldura – generosidade e tolerância. No endereço do evento, mora um ex-namorado de Lígia. Eles terminaram ano passado, mas tudo bem, Jorge merece a festa. Na entrada da rua, ficou o carro de som da Rick’s Sound, que, no Carnaval, embala os ensaios técnicos da Sapucaí. O dono, Ricardo, é irmão de Lígia, e, você aí já entendeu, enviou o equipamento de graça, para turbinar o som do grupo de bambas que desfilou os hits do samba e do pagode.

Bem ao lado da mesa dos músicos, estava o rei da festa. São Jorge, numa gigantesca imagem, bem tradicional, em vermelho e branco, reprodução do momento da vitória sobre o dragão. A peça, aliás, era a grande atração do ano. Foi comprada na véspera, e fiado. “Soubemos que a dona queria vender, porque precisava de espaço em casa”, explicou Bisteka. “Estivemos lá para comprar, mas não tínhamos dinheiro. Ficamos de pagar no mês que vem”, acrescenta ela, falando do prazo para honrar os R$ 200 cobrados pela imagem.

As duas anfitriãs, aliás, interromperam a preparação da festa, no sábado, para buscar a escultura. Quando um sobrinho de Bisteka, um pouco mais cético, viu o tamanho, perguntou se elas tinham enlouquecido, iam pagar com que dinheiro etc. “Não mexe com a nossa devoção!”, ouviu de volta, num brado veemente.

Choveu quase a tarde inteira de domingo, para tornar tudo mais emocionante. Lígia e Bisteka revezavam-se no comando da festa e no samba entre cervejas, embrulhadas em vestidos iguais, brilhosos, a imagem de Jorge imensa na frente. Num canto do traje, o “2017” precisou ser improvisado – a roupa foi reaproveitada do ano anterior. “Pedi a um aderecista da Mangueira para dar um jeito”, revelou Bisteka. “Ficou ótimo, né não?”

Como a tarde inesquecível, vivida numa cidade incrível, muito melhor do que a de todo dia. Por isso e por tudo, salve Jorge!

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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