A volta da miséria e o recorde histórico de desemprego

Brasil corre o risco de retornar ao Mapa da Fome e já tem mais desempregados do que na época da campanha do Betinho

Por Itala Maduell | ODS 1 • Publicada em 15 de maio de 2017 - 09:30 • Atualizada em 10 de julho de 2017 - 17:05

Mais de 20 anos após o lançamento da campanha contra a fome, de Betinho, país volta a ter índices alarmantes de desempregados e 3,6 milhões de pessoas estarão na miséria, até o fim do ano. Foto: Sippanont Samchai

(Colaboração de Marcelo Kischinhevsky) – Corria o ano de 1993. O Brasil acabava de sair de um processo de impeachment e enfrentava a maior recessão da história desde a República Velha. Foi quando o sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, lançou a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, um plano de ação para enfrentar duas tragédias nacionais: a fome e o desemprego. Para aplacar a fome e gerar postos de trabalho, Betinho propôs um pacto entre governos, mídia e sociedade para tomar a causa como prioridade absoluta.

Estas pessoas que estão com fome precisam trabalhar. Precisam viver. E nós precisamos de 9 milhões de empregos já. Empregos que paguem salários para que as pessoas, em troca do trabalho, possam comer, dormir, vestir, educar. Essa é a urgência, esta é a emergência

Formaram-se milhares de comitês por todo o país, promovendo distribuição de alimentos e cobrando a atuação do poder público em medidas concretas de políticas públicas. Jornais, rádios e TVs entraram na campanha. E qual era mesmo o retrato da calamidade então? Cerca de 32 milhões de brasileiros vivendo na miséria, e 9 milhões de desempregados.

Ao longo dos anos 1990, com ajuda decisiva do Plano Real, que domou a hiperinflação e impulsionou o consumo das famílias, quase 3,5 milhões de brasileiros deixaram de passar fome, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês). Apesar dos tropeços na virada da década, com os impactos da maxidesvalorização cambial entre 1999 e 2002, o avanço foi ainda mais importante nos anos 2000, quando 15,6 milhões de cidadãos se livraram da subalimentação. Nos anos 2010, o país alcançou as duas metas da ONU: cortar pela metade o número de pessoas passando fome e reduzir esse número para menos de 5% da população, deixando de figurar no Mapa da Fome.

O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criador da Ação da Cidadania contra a Miséria e a Fome. Foto Vanderlei Almeida/AFP
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criador da Ação da Cidadania contra a Miséria e a Fome. Foto: Vanderlei Almeida/AFP

Segundo a ONU, num intervalo de menos de uma década, entre 2004 e 2013, os índices de pobreza no país caíram de 20% para 9% da população, e de 7% para 4%, no caso da pobreza extrema. Mais de 28,6 milhões de brasileiros saíram da pobreza entre 2004 e 2014, resultado estreitamente ligado ao avanço da cobertura de programas sociais, que, com atraso de quase cinco décadas, instituiu no Brasil uma versão tropical do Estado do Bem-Estar Social.

Pois bem: agora, o país corre o risco de voltar ao Mapa da Fome, de acordo com relatório de um grupo de mais de 40 entidades da sociedade civil. Mais: estimativa divulgada em fins de abril pelo Banco Mundial indica que, até o fim de 2017, pelo menos 2,5 milhões e até 3,6 milhões de pessoas entrarão ou voltarão à condição de miséria, como resultado da prolongada crise econômica. Isso equivale a todo o contingente retirado da pobreza ao longo de toda a década de 1990. E esses “novos pobres”, segundo a pesquisa, são em sua maioria moradores de zonas urbanas, com menos de 40 anos, formados no Ensino Médio e ex-empregados, sobretudo no setor de serviços, que dá sinais claros de estagnação.

O que leva à outra calamidade apontada por Betinho. Há quase 25 anos, quando o sociólogo iniciou sua jornada de mobilização da cidadania, tínhamos 9 milhões de desempregados – 6,2% da população economicamente ativa. Para Betinho, tão urgente quanto distribuir pratos de comida era resolver o problema dos brasileiros sem emprego, condição intrinsecamente ligada ao avanço da miséria: “Estas pessoas que estão com fome precisam trabalhar. Precisam viver. E nós precisamos de 9 milhões de empregos já. Empregos que paguem salários para que as pessoas, em troca do trabalho, possam comer, dormir, vestir, educar. Essa é a urgência, esta é a emergência”, clamava Betinho no vídeo em que lançou as bases da Ação da Cidadania.

Pois o desemprego assombra, neste início de 2017, nada menos que 14,2 milhões de brasileiros – 13,7% de trabalhadores, o equivalente à população de um estado como a Bahia. É a maior taxa registrada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, realizada pelo IBGE desde 2012, e igualmente recorde em toda a história do trabalho no Brasil formalmente medida, sob qualquer critério – a antiga Pesquisa Mensal de Emprego, encerrada no início de 2016, limitava-se às seis principais regiões metropolitanas, e sempre esteve abaixo desse patamar.

No primeiro trimestre de 2014, estavam desempregados 6,6 milhões de brasileiros, menos da metade da atual força de trabalho desocupada três anos depois. De lá para cá, a taxa de desocupação só faz subir, resultado do esgotamento de um modelo de crescimento econômico ancorado no consumo, em investimentos em infraestrutura escandalosamente superfaturados e num câmbio sobrevalorizado, que mantinha as importações baratas, mas acirrava um processo de desindustrialização – já comparado por vários economistas ao chamado “mal holandês”.

Trabalhadores se servem num restaurante popular no Rio de Janeiro. Foto Antonio Scorza/AFP
Trabalhadores se servem em um restaurante popular no Rio de Janeiro. Foto: Antonio Scorza/AFP

A então presidente Dilma Rousseff tentou romper com a base que garantiu sua reeleição, afundando o pé no acelerador e desorganizando as contas públicas. O Congresso a defenestrou, mas o impeachment não tirou o país do rumo do abismo. Pelo contrário, a crise econômica se aprofunda com o receituário recessivo adotado pelo agora presidente Michel Temer, que, em um ano no cargo, assistiu a alta da taxa de desemprego, de 10,9%, em março de 2016, para os atuais 13,7%, um aumento de 3,087 milhões de desocupados. O mercado de trabalho perdeu nada menos que 1,225 milhão de vagas formais no período. E a taxa de desemprego só não piorou mais porque 574 mil brasileiros deixaram a população economicamente ativa, isto é, não estão mais procurando trabalho, passando a depender de auxílios ou da ajuda de parentes.

O governo Temer tem se desdobrado nos esforços de apontar sinais de recuperação econômica, mas o horizonte permanece nebuloso. No cenário mais otimista, de crescimento de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), previsto para este ano pelo Banco Mundial, o desemprego continuaria em ascensão, chegando aos 11,8% de média anual, frente aos 11,2% de desocupação média em 2016. Médias anuais são um parâmetro de comparação porque a taxa de emprego geralmente sobe no fim do ano, impulsionada por vagas temporárias, e cai no primeiro semestre. Na previsão mais pessimista, com o PIB caindo 1%, o desemprego alcançaria os 13,3% (a avaliação do Banco Mundial na íntegra aqui).

Quanto ao avanço nas áreas sociais, relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar no mundo destacou, em 2015, que milhões de brasileiros conseguiram sair do Mapa da Fome não apenas com programas de transferência de renda: também contribuíram para isso o aumento do poder aquisitivo das mulheres e a melhoria da renda dos mais pobres, ganhos que vêm sendo corroídos pela prolongada crise econômica.

É preciso lembrar que Betinho, em sua cruzada contra a fome e o desemprego, expôs uma terceira calamidade: a da naturalidade com que a sociedade aceitou que a situação chegasse àquele ponto: “Trata-se de não aceitar mais como natural que tudo isso aconteça. De mobilizar as consciências, de mobilizar a cidadania, de mobilizar cada pessoa para transformar esta questão não numa questão do governo, não numa questão do Estado, não numa questão do outro, mas numa questão de cada um. Num problema a ser resolvido por todos, solidariamente, e de forma concreta”.

Parecemos, uma vez mais, anestesiados e impotentes diante de interesses inconfessáveis que pautam a vida econômica e política. Só que o país, hoje, em vez de discutir a inclusão e o direito à cidadania dos mais pobres, inverte a equação e embarca em uma agenda privatista, que desmonta o serviço público e as redes de proteção social, precarizando as relações de trabalho e o direito à aposentadoria, sem mexer no vespeiro dos privilégios do Legislativo e do Judiciário, nem no toma-lá-dá-cá dos consórcios que comandam o Executivo numa perspectiva patrimonialista.

Evoca-se a figura de Betinho e sua frente suprapartidária e supraideológica para destacar que o governo tem responsabilidade, mas também a sociedade – e a mídia. Somos todos responsáveis.

Itala Maduell

Jornalista, doutora em Comunicação e professora de jornalismo na PUC-Rio

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