O #RonaldoRacista e a polícia que chama racismo de bullying

Cabelo contra o preconceito (Foto Caia Image / Science Photo Library/AFP)

Agredido por carta por conta de seu cabelo black, estudante da PUC-Rio denuncia o preconceito sofrido até numa delegacia

Por Leonne Gabriel | ODS 1 • Publicada em 16 de março de 2018 - 10:40 • Atualizada em 16 de março de 2018 - 16:48

Cabelo contra o preconceito (Foto Caia Image / Science Photo Library/AFP)
Cabelo contra o preconceito (Foto Caia Image / Science Photo Library/AFP)
Cabelo contra o preconceito (Foto Caia Image / Science Photo Library/AFP)

#RonaldoRacista, infelizmente, ainda existem centenas como ele por aí. São nossos amigos, parentes ou nós mesmos. O racista não é o monstro que inventamos. Ele está sentado na mesa do bar com a gente, rindo e dividindo uma cerveja bem gelada.  Às vezes fingimos não escutar as “brincadeiras” de mau gosto, até um dos nossos ser o alvo. O racismo manda carta registada e revela mais uma vez a sua face.

#RonaldoRacista recebeu o jornal “O Globo” bem cedinho, viu minha entrevista sobre as dificuldades de um universitário negro e bolsista na PUC-Rio, recortou, marcou com caneta Bic azul a frase “seja pelas piadinhas com o meu cabelo”, escreveu ‘sua opinião’ e finalmente teve a coragem de fazer o que muitos não fariam, me enviou uma carta.

Como se não bastasse esse ataque, ainda sou parado mais uma vez pelo racismo institucional do Estado brasileiro. Tive muitas dificuldades para registrar a ocorrência do ataque do #RonaldoRacista numa delegacia. O inspetor de polícia negligenciou o caso. Pediu que eu aguardasse enquanto fumava um cigarro. E, quando me ouviu, questionou se eu era negro. Disse que o ocorrido não é injúria racial e, muito menos, racismo. Registrou como injúria simples porque, segundo ele, foi bullying.

A aula já tinha começado quando a funcionária da PUC bateu na porta e me entregou o envelope. Acreditei que poderia ser algo bom porque nenhum aluno recebe uma carta com o endereço da universidade. Abri, vi o jornal, desdobrei curioso e recebi de peito aberto os golpes racistas. Fiquei em estado de choque e atordoado. Li e reli sem acreditar as seguintes frases: “Porra! Cara, com um cabelo desses queria o quê?” e, como se não bastasse, mais uma “Ser preto nenhum problema, mas esse cabelo? PQP!”.

A carta está assinada por um tal “Ronaldo Antunes” com endereço de rua Baronesa 162, Praça Seca,RJ, e foi postada  dia 26 de fevereiro no Correios, cinco dias depois da publicação da minha entrevista. Ela chegou às minhas mãos na última segunda feira.

Não vou negar que fiquei chocado com a atitude do #RonaldoRacista, mas, por outro lado, ele só deu mais um passo. Quantas pessoas, ainda hoje, sinceramente não compartilham do mesmo pensamento sobre o meu cabelo crespo e volumoso. O ataque racista por uma carta mostra ideias velhas que são muito atuais. Um museu de novidades; 130 anos depois da abolição da escravidão o corpo negro ainda é alvo de pedradas.

Ouvir de quem deveria fazer a nossa segurança que existem ocorrências muito mais importantes para dar conta é a verdadeira motivação do #RonaldoRacista. Eu vi profissionais despreparados para lidar com o crime que atinge 54% da população brasileira. Não sabem o que significa raça e cor, com isso perpetuam o racismo estrutural.

Qual é o problema do meu black? Para mim ele é power, identidade, ancestralidade, empoderamento, nunca um problema. Pessoas como #RonaldoRacista existem aos montes. Já tive um supervisor que, quando descobriu que eu morava na favela, perguntou se eu escondia drogas no meu cabelo. Não quero ser tachado como “perfil suspeito” e nem ser apontado como maconheiro por assumir a minha identidade negra. Acredito numa realidade em que a cor de pele e a fibra do cabelo não definam o potencial do ser humano. O #RonaldoRacista não é só um problema meu e, sim, da sociedade brasileira.

Racismo que vem pelo correio (Foto Leonne Gabriel)
Racismo que vem pelo correio (Foto Leonne Gabriel)

Como se não bastasse esse ataque, ainda sou parado mais uma vez pelo racismo institucional do Estado brasileiro. Tive muitas dificuldades para registrar a ocorrência do ataque do #RonaldoRacista numa delegacia. O inspetor de polícia negligenciou o caso. Pediu que eu aguardasse enquanto fumava um cigarro. E, quando me ouviu, questionou se eu era negro. Disse que o ocorrido não é injúria racial e, muito menos, racismo. Registrou como injúria simples porque, segundo ele, foi bullying.

Naquela delegacia de polícia me senti muito mais agredido do que quando li a carta. Foram quatro horas lutando contra essa estrutura, mas eu perdi. Não consigo lutar sozinho contra o sistema. Estou com mãos atadas, a única coisa que me restou foi a voz. Não vão me calar.

Ouvir de quem deveria fazer a nossa segurança que existem ocorrências muito mais importantes para dar conta é a verdadeira motivação do #RonaldoRacista. Eu vi profissionais despreparados para lidar com o crime que atinge 54% da população brasileira. Não sabem o que significa raça e cor, com isso perpetuam o racismo estrutural.

Em pesquisa realizada Datafolha, do jornal Folha de S. Paulo, 89% dos brasileiros admitiram existir racismo no país, porém só 10% se consideraram racistas. Existe um hiato entre esses números, e é aí que mora o racismo velado, naturalizado, cordial. Somos uma sociedade que se reconhece, mas não se admite racista.

E a quem chama #RonaldoRacistas de  louco, psicopata, doente ou qualquer outro xingamento, como algumas pessoas comentaram no meu post no Facebook, é importante lembrar que ele, isso sim, é racista. Chamar #RonaldoRacista de qualquer outra coisa só o afasta da responsabilidade por seus atos. Racismo é crime. Sou porque somos. Ubuntu.

Leonne Gabriel

Leonne Gabriel é graduado em Comunicação Social jornalismo e publicidade e propaganda com ênfase em Tecnologias e Mídias Digitais na PUC-Rio. Atualmente integra o time de jornalismo do Canal Futura como apresentador. É ganhador do Prêmio ANF de Jornalismo 2019 na categoria melhor reportagem de educação e do Prêmio Ubuntu de Cultura 2019 na categoria jornalista revelação.

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