Admirável subúrbio novo

Gabi Monteiro posa para o livro Potência Popular Carioca. Foto: Divulgação

A moda suburbana se impõe, inspira livro e ganha cada vez mais força para vencer a barreira do preconceito de uma cidade partida

Por Gilberto Porcidonio | ODS 12 • Publicada em 6 de fevereiro de 2018 - 10:26 • Atualizada em 6 de fevereiro de 2018 - 19:30

Gabi Monteiro posa para o livro Potência Popular Carioca. Foto: Divulgação
Gabi Monteiro posa para o livro Potência Popular Carioca: moda do subúrbio invade a Zona Sul, e vice-versa. Foto: Divulgação

Corpos independentes do padrão de beleza cultuado nos instagrans e praias afora, valorizados por roupas justas que evidenciam o “capital corporal”. Sim, não é nenhuma novidade que o subúrbio se veste e se mexe de forma bem diferente dos cartões postais do Rio onde o cheiro de maresia chega. O curioso é como isso ainda é capaz de causar polêmica quando aparece exposto nas mídias, seja na internet ou na televisão, e sempre puxando para o clichê de uma pretensa vulgaridade nas comparações com uma tal estética “cool” da Zona Sul. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Anitta lançou seu clipe Vai Malandra, gravado na favela do Vidigal. E por quê?

A jornalista Márcia Disitzer tem os olhos bem atentos para essa clivagem construída entre os corpos e guarda-roupas das zonas Sul e Norte, e resolveu mostrar que há muito mais coisa acontecendo no subúrbio carioca do que nossa vã geografia deixa imaginar. Em seu novíssimo livro Potência Popular Carioca, lançado no fim de janeiro, a especialista em moda se debruça sobre a forma como o subúrbio “se monta”, apresentando os criativos que ditam e antecipam as tendências da cultura popular moderna, reunindo ensaios fotográficos e entrevistas com estilistas, dançarinos, artistas plásticos, grupos, como o Dream Team do Passinho, e outras mentes fervilhantes.

Anitta grava clipe em favela, expõe o corpo (e suas celulites) e causa polêmica. Foto: Divulgação

Os estilos se misturam. A ‘patricinha’ é influenciada pela ‘tchutchuca’ e vice-versa. Além disso, temos a internet, que mudou absolutamente tudo e atinge a todos. Bebe-se de tantas fontes, de tantos lugares… E isso vem impactando a moda, as ruas e as escolhas de cada um

A ideia do livro surgiu em janeiro de 2013, logo após o lançamento de “Um Mergulho no Rio – 100 anos de moda e comportamento na praia carioca”. Nessa época, Márcia foi capturada pelo universo do figurino que Marie Salles criou para a novela Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro, e produziu inúmeras matérias para o jornal O Dia, onde trabalhava. Assim, a busca pela moda genuína que vem da Zona Norte e das favelas do Rio virou a sua principal área de interesse. “Roupas justas e sensualidade fazem parte do visual que agrada grande parte das brasileiras. O estilo ‘tchutchuca’ ganha evidência com os bailes funk, que explodem nos anos 1990, traduzindo a realidade, o dia-a-dia  e os costumes de favelas e da Zona Norte da cidade. Assim como o samba, o funk sofreu (e sofre) muito preconceito. No fim dos anos 90, começo dos anos 2000, a calça da Gang torna-se símbolo da estética daquele momento e ganha até um funk para chamar de seu. A peça que, segundo a música, deixava a bunda em pé, também foi adotada por estrelas como Gisele Bündchen e Britney Spears”, diz a jornalista.

Numa cidade preconceituosa como o Rio de Janeiro, isso causa estranhamentos profundos. E a primeira reação de quem vê seu lugar de dominante sendo ameaçado é abraçar uma onda conservadora, que chega fragmentada e deixa cada vez mais à mostra esse cenário racial tenso

Em contrapartida à profusão de cores, decotes e roupas coladas ao corpo, da moda suburbana, nos anos 1990 surgem as “patricinhas do Leblon” – mulheres magras, brancas, de cabelo liso, que usam roupas mais sóbrias e grifadas. Márcia Disitzer explica que elas tiveram seu batismo quando os holofotes se voltaram para o estilo da socialite Patricia Leal, que casou-se com Antenor, filho de Carmen Mayrink Veiga, ícone do high society carioca. Patrícia passaria a ditar um estilo de se vestir mais “certinho”, arrumadinho e conservador, que combinava perfeitamente com os arautos da tradição que estavam em alta naquele momento.  “Hoje, ou melhor, já há algum tempo, os estilos se misturam. A ‘patricinha’ é influenciada pela ‘tchutchuca’ e vice-versa. Além disso, temos a internet, que mudou absolutamente tudo e atinge a todos. Bebe-se de tantas fontes, de tantos lugares. E isso vem impactando a moda, as ruas e as escolhas de cada um. Minha torcida é que os meios de comunicação retratem e valorizem cada vez mais a diversidade de estilos.”

Diogo Breguete, do Dream Team do Passinho: cheio de estilo. Foto: Potência Popular Carioca

A antropóloga Carolina Delgado, que assina um artigo no livro, mergulha fundo nessas questões. Planejadora, criadora e produtora de conteúdo de moda, publicidade e inovação social, a pesquisadora é enfática ao afirmar que racismo e sexismo precisam ser considerados elementos fundamentais quando se fala sobre a visibilidade dos corpos da cidade tidos como “periféricos”. “Numa cidade preconceituosa como o Rio de Janeiro, isso causa estranhamentos profundos. E a primeira reação de quem vê seu lugar de dominante sendo ameaçado é abraçar uma onda conservadora, que chega fragmentada e deixa cada vez mais à mostra esse cenário racial tenso”.

Carolina também destaca as mudanças provocadas pela democratização da produção audiovisual, no começo dos anos 2000, com o barateamento das câmeras digitais e o aumento do acesso à internet. O cenário ficou mais complexo e precisou afrouxar suas fronteiras para agregar novos personagens. Assim, de acordo com a antropóloga, os negros e periféricos (com menos poder aquisitivo) passaram a criar tendências das quais os brancos (com mais poder aquisitivo) se apropriam, para transformar em produtos que ganham reconhecimento e dão retorno financeiro. No fim desse processo, o que volta para o lugar de origem – a periferia – são criações que não cabem em todos os bolsos. Ou CEPs. “Assim, a cidade continua partida e os estereótipos seguem valendo, com a população média seguindo em busca de um glamour bossa nova ‘perdido’. Mas existe uma juventude negra e periférica que hackeia as fronteiras e aumenta seu poder de criação de visualidades, em conexão com as grandes metrópoles do mundo. Um exemplo lindíssimo disso é o Coolhunter Favela, que traz uma perspectiva única para a criação de imagem de moda”.

Gilberto Porcidonio

É repórter do jornal "O Globo" e sociólogo em formação pela PUC-Rio. Especializa-se em cultura e questões raciais. Como poeta, mantém o alter-ego Frederico Latrão e, como escritor, é um dos autores da coletânea "Larica Carioca", sobre os quitutes dos bares do Rio de Janeiro, além de manter o blog 'O Títere'.

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