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Blocos do Carnaval de rua acabam. E se multiplicam

Despedidas de tradicionais agremiações da retomada da folia após a ditadura revelam problemas no modelo

ODS 11 • Publicada em 11 de março de 2025 - 09:27 • Atualizada em 12 de março de 2025 - 09:41

No dia 8 de fevereiro de 2026, domingo anterior ao Carnaval, o Suvaco de Cristo percorrerá pela última vez ruas do Jardim Botânico – num desfile que servirá como fecho de uma era dos blocos do Rio de Janeiro. No ano que vem, o Suvaco completa 40 anos: é um dos pioneiros da geração de blocos nascida com o fim da ditadura, geração que comandou a retomada da rua como espaço democrático da folia, numa ocupação multiplicadora espalhada por todos os cantos da cidade.

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Neste 2025, o fim de blocos desta geração assustou alguns foliões – particularmente os mais antigos. Despediram-se das ruas o Meu Bem, Volto Já, mais de 35 anos de Leme, e o Imprensa que Eu Gamo, bloco de jornalistas que completou 30 anos em torno do Largo do Machado. Carnavais anteriores já haviam marcado a partida dos Escravos da Mauá – em 2022, após 30 anos de desfiles na Zona Portuária – e do Bloco de Segunda – em 2023, depois de 36 anos no Humaitá. Alarmistas falaram até em esvaziamento do Carnaval de rua; um tanto de exagero num ano em que estavam previstos, oficialmente, 482 desfiles de blocos de rua, 30 a mais do que em 2024.

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Penúltimo desfile do Suvaco de Cristo no Jardim Botânico: tradicional bloco do Carnaval de rua do Rio se despede em 2025 (Foto; Fernando Maia / Riotur)
Penúltimo desfile do Suvaco de Cristo no Jardim Botânico: tradicional bloco do Carnaval de rua do Rio se despede em 2025 (Foto; Fernando Maia / Riotur)

O Carnaval de rua do Rio de Janeiro antecede até mesmo o samba. Há registros, desde o Brasil colônia, de entrudos – festa de origem portuguesa em que se atiravam água, farinha, ovos e outras coisas na época carnavalesca, que antecede a Quaresma. Escravizados e trabalhadores braçais brincavam o entrudo nas ruas; as famílias mais ricas, inclusive da corte portuguesa que desembarcou aqui em 1808, jogavam água (e outras coisas) pela janela nos foliões. Na metade do século 19, enquanto as festas carnavalescas nos salões da corte se sofisticavam, copiando os carnavais da Europa, começou a repressão aos entrudos, considerados violentos.

E, enquanto polcas tomavam os salões do Império, batuques de origem africana passavam a fazer parte das manifestações carnavalescas de rua: zé pereiras, cucumbis, e, por fim, os cordões, grupos mais organizados de foliões fantasiados, considerados os antecessores dos blocos de carnaval. Na última década do século 19, os cordões – com instrumentos de percussão – se multiplicaram pelas ruas do Rio durante o Carnaval, dividindo espaços com ranchos e grandes sociedade, estes conduzidos, na maioria, por violões e flautas. Nos cordões, o ritmo dominante era das marchas lentas e ritmadas. mas também havia espaço para chulas, gênero vindo de Portugal.

Considerada a primeira marchinha carnavalesca, “Ô Abre-Alas”, de Chiquinha Gonzaga, é de 1899. Em 1902, 200 cordões foram licenciados pela polícia para desfilar no Rio de Janeiro. Naquela virada de século, Tia Ciata (a baiana Hilária Batista de Almeida) estava se mudando para o casarão na Zona Portuária do Rio, onde nasceria o samba urbano.

Dos cordões, viriam os blocos e as primeiras escolas de samba – que desfilavam, naturalmente, na rua. Agora, no século 21, parece que o desfile das escolas de samba – com suas alegorias e fantasias luxuosas e sua plateia que paga caro, até mais de R$ 1 mil por uma noite nos camarotes da Passarela – é o oposto do Carnaval de rua. Um século atrás, o oposto da rua estava nos bailes carnavalescos em clubes fechados – havia bailes de gala até no Theatro Municipal. A organização dos desfiles competitivos, a criação dos enredos e outras regras fizeram escolas de samba e blocos seguiram caminhos diferentes.

Multidão acompanha o Bola Preta no Centro do Rio: bloco com mais de 100 anos comprova vitalidade do Carnaval de rua (Foto: Walter Meier / Riotur)
Multidão acompanha o Bola Preta no Centro do Rio: bloco com mais de 100 anos comprova vitalidade do Carnaval de rua (Foto: Walter Meier / Riotur)

Os blocos se espalharam pela cidade: o mais antigo em atividade, o Cordão do Bola Preta, foi fundado em 1918 – em 2025, uma milhão de pessoas acompanharam o bloco pelas ruas do Centro, de acordo com os cálculos da prefeitura. Muitos mantiveram a tradição de desfilar nos bairros, com muito improviso e com menos regras; os mais famosos – e ainda atividade – são o Bafo de Onça, de 1956, o Cacique de Ramos, de 1961, e o Boêmios de Irajá, de 1967, que, com a fama e a popularidade, passaram a desfilar na Rio Branco. Outros viraram blocos de enredo que passaram a participar de desfiles competitivos, nos moldes das escolas de samba, a partir de 1965.

O golpe militar de 1964 e os anos da ditadura – esses, sim – esvaziaram o Carnaval de rua do Rio de Janeiro; a fundação da Banda de Ipanema, em 1965, por inimigos do regime, foi uma exceção. Nos bairros, blocos permaneceram ativos, mas a participação dos foliões minguou. Os militares acompanhavam de perto os desfiles do Cacique de Ramos e do Bafo da Onça; a censura monitorava enredos de escolas de samba; a Banda de Ipanema – apontada como “subversiva” em documentos da ditadura – era vigiada pelo Dops.

Foi a volta da democracia que levou essa folia de volta às ruas e provocou a multiplicação dos blocos. O Simpatia é Quase Amor nasceu em 1984, o Suvaco e o Bloco do Barbas em 1985, o Meu Bem Volto e o Bloco de Segunda em 1987 – eram todos amadores, criados por amigos de vizinhanças, de afinidades, de folias: valorizavam a irreverência, a liberdade e a democracia. Até a década seguinte, os blocos de rua não apenas se multiplicaram como cresceram. E foram tentando se adaptar e se profissionalizar: promover eventos, vender camisetas, conseguir patrocínios.

O Suvaco chegou a arrastar 50 mil pessoas pelas ruas do Jardim Botânico – o crescimento incontrolável fez o bloco mudar o horário do desfile de 17h para 8h da manhã em 2001. Com mais e mais gente na rua atrás dos blocos, as autoridades municipais – na última gestão de Cesar Maia e na primeira de Eduardo Paes – começaram a tentar dar mais ordem na folia, estabelecendo regras e horários; desfiles do Simpatia pelas ruas de Ipanema, com dezenas de milhares de foliões, chegavam a levar oito horas (eu sou testemunha).

Carnaval sem anistia do Simpatia é Quase Amor: primeira geração de blocos após a ditadura celebrava a irreverência e a democracia (Foto: Alexandre Macieira / Riotur)
Carnaval sem anistia do Simpatia é Quase Amor: primeira geração de blocos após a ditadura celebrava a irreverência e a democracia (Foto: Alexandre Macieira / Riotur)

As regras e exigências do poder público estão entre os fatores para alguns blocos se despedirem do Carnaval: a burocracia aumentou, os custos subiram, há necessidade de mais gente trabalhando na organização da folia. Esses blocos da primeira geração da retomada do Carnaval começaram com sambas próprios e camisetas, incorporaram baterias e carros de som: ficou mais caro e complicado manter esse formato.

E os organizadores reclamam da prefeitura: este ano, os blocos Escangalha, desde 2008 no Jardim Botânico, e Bangalafumenga, que apresentava-se no Aterro, desistiram de desfilar às vésperas da folia. “Há uma subversão na lógica do carnaval de rua. É lamentável que o carnaval de rua esteja em crise”, protestou o Escangalha em nota: o bloco reclama de exigência da PM, após a liberação de outras instâncias públicas.

O Bangalafumenga atacou o modelo – “asfixiante e insustentável – imposto pela Prefeitura do Rio. “Cidade e empresa limitam e sufocam as possibilidades de ativação de marcas que não fazem negócio com elas e que patrocinam o bloco, o artista. Não pode isso, não pode aquilo. Qual o resultado? Marcas afugentadas, com receio de multas por suas ativações nas ruas, tentam proteger sua reputação comprando o patrocínio oferecido então pelo caminho que lhes resta. Caminho que passa longe dos donos e protagonistas da festa, os blocos”, reclamou o texto publicado nas redes sociais.

A Charanga Talismã desfila pelas ruas da Vila Kosmos na Zona Norte no Carnaval 2025: multiplicação dos blocos paralela às despedidas (Foto: Fernando Maia / Riotur)
A Charanga Talismã desfila pelas ruas da Vila Kosmos na Zona Norte no Carnaval 2025: multiplicação dos blocos paralela às despedidas (Foto: Fernando Maia / Riotur)

Os dois blocos, entretanto, garantem que voltam – o Bangalafumenga em novo modelo. Apesar de despedidas e reclamações, não há razão para falar em crise do Carnaval de rua. Em 2014, o jornalista Aydano André Motta publicou um livro com perfis de 29 blocos: 23 desfilaram em 2025. E surgiram outras dezenas autorizados a botar a folia na rua – e, em qualquer conta, nunca estão listados blocos organizados que saem clandestinamente por opção – e pequenos blocos, com poucos instrumentos de percussão (e, às vezes, de sopro), que ocupam ruas dos subúrbios e da Zona Oeste e quadras e outros espaços das favelas.

Sinto falta dos Escravos da Mauá, provavelmente sentirei falta do Imprensa Que Eu Gamo – como também sinto de amigos que também vão se aposentando da folia por uma razão ou outra. Mas novas gerações do Carnaval de rua me recomendam a Charanga Talismã, o Independente do Morro do Ponto, o Vagalume o Verde, os Ordinários Elétricos. Em 2026, talvez eu esteja lá na saideira do Suvaco, talvez teste alguma novidade e, certamente, estarei no desfile do Simpatia – que, aliás, em 2025, desfilou com o oportuno samba ‘Carnaval sem Anistia’.

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