ODS 1
Deputados conservadores e organizações religiosas se unem contra o aborto legal
Parlamentares usam emendas impositivas e títulos de utilidade pública para fortalecer a fatia da sociedade civil organizada antiaborto
(Jane Fernandes*) – Os posts nas redes sociais não deixam dúvidas: a Casa Mãe Oásis da Imaculada, em Belo Horizonte, é contra o direito ao aborto. Um dos vídeos no Instagram diz: “Aborto – Cena do demônio sobre o mal do mundo moderno”. Em seu site, a Casa diz que tem como missão “atender e acompanhar as gestantes e puérperas em situação de vulnerabilidade ou risco social”. Mas, no dia a dia, no atendimento por telefone, não fica claro às mulheres que buscam ajuda se a Casa está disposta ou não a auxiliá-las em seu direito ao aborto nos casos garantidos por lei.
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Quando abordada por uma mulher que procura auxílio para uma amiga que engravidou após estupro e deseja abortar, a atendente da organização insistiu em conseguir o contato da vítima, dando a entender que poderia ajudar. Ao ser questionada: “Mas se ela (a gestante) decidir tirar (fazer o aborto), vocês ajudam?”. A atendente respondeu: “Nós ajudamos, sim, mas a gente tem que conversar com ela”.
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Veja o que já enviamosA estratégia se repete em outras organizações. Em meio a dezenas de postagens sobre o acolhimento a mulheres que estão vivendo uma gravidez indesejada ou gestantes em situação de vulnerabilidade, algumas deixam explícita sua real vocação: a luta antiaborto.
Várias organizações usam táticas questionáveis para dificultar o acesso de mulheres a seus direitos sexuais e reprodutivos, muitas vezes levando-as a crer que receberão apoio para o aborto legal enquanto, na verdade, tentam dissuadi-la da decisão. E algumas entidades ainda recebem suporte e visibilidade de parlamentares nas esferas federal, estadual e municipal. O apoio ocorre, com frequência, por meio da destinação de emendas ou na facilitação de processos para que elas recebam dinheiro público.
Apoio financeiro para as organizações
O atual deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) destinou R$ 150 mil à Casa Mãe Oásis da Imaculada (Razão social: Associação Pró Vida Oásis da Imaculada – Centro de Defesa do Nascituro), por meio de emenda impositiva, em 2022, no último ano de mandato dele como vereador em Belo Horizonte. A associação está registrada como Organização da Sociedade Civil sem Fins Lucrativos (OSC).
Emenda impositiva é aquela “que deve ter execução orçamentária (empenho e liquidação) e financeira (pagamento) obrigatórias, exceto nos casos de impedimento de ordem técnica”, segundo glossário do Congresso Nacional. As emendas individuais dos parlamentares são impositivas desde 2015.
O dinheiro foi usado no Projeto “Mamãe Oásis”, de acordo com documentos da Prefeitura de Belo Horizonte. A dispensa de chamamento público informa que o projeto “visa realizar ações coletivas e socioassistenciais, para mulheres em situação de vulnerabilidade e risco social, em decorrência de violência doméstica”. Já no site da organização, o programa é descrito como “educação e promoção da saúde da mulher, a partir da ótica da defesa da vida e da família” – discurso recorrente nas estratégias do lobby antiaborto.
Em 2023, já como deputado no Congresso Nacional, Nikolas direcionou R$76.266 ao Projeto “Casa Mãe” da mesma associação, “para aprimorar a estrutura e a provisão do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, garantindo condições de acolhida, funcionamento, atendimento e realização de atividades socioassistenciais coletivas (palestras e oficinas) com mulheres gestantes ou não, puérperas e crianças de 0 a 6 anos”. Em ambos os casos (em 2022 e 2023), o termo de fomento foi celebrado com a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania (SMASAC) de BH.
Apesar do apoio através das emendas, e de estar marcado em diversas postagens da ‘Oásis da Imaculada’ nas redes sociais, Nikolas Ferreira não seguia as páginas da entidade, nem se manifestava nas publicações, no período analisado por AzMina.
O deputado também não interage com as postagens da Associação Servindo e Protegendo (Assep), para a qual ele destinou emenda no valor de R$ 70 mil em 2023. No site, a entidade informa que sua missão “é promover a cidadania com base em valores cristãos”. Um dos projetos de destaque é o Apoio a Mulher – Gravidez Integral (AMGI), para acolher “mulheres vítimas de (…) rejeições, medo, angústia, abusos, gravidez não planejada, entre outras e estão vulneráveis em seu período de gestação”.
Conforme dados da Prefeitura de Belo Horizonte, no ano passado, a Assep recebeu o montante para execução de atividades socioassistenciais no município. O recurso foi repassado em termo de parceria com a SMASAC.
Antifeminismo como causa
A deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) é, provavelmente, a campeã nas relações com os grupos autointitulados pró-vida. Ela centra sua plataforma em discursos antifeministas e ataques à autonomia reprodutiva das mulheres. Em 2020, durante seu primeiro mandato, Chris endereçou emendas para a Associação Virgem de Guadalupe e o Centro de Reestruturação para a Vida (Cervi), sediadas em São José dos Campos e São Paulo, respectivamente.
Cada entidade recebeu R$ 100 mil através do Ministério das Mulheres. Conforme documentos do Portal da Transparência, a Virgem de Guadalupe recebeu por um convênio para o projeto Futuras Mães, de assistência a gestantes em vulnerabilidade social. O pagamento do Cervi é atribuído à capacitação de mulheres com oficinas diversas, incluindo terapia comunitária.
A parlamentar segue apenas 212 perfis no Instagram, incluindo as páginas da Virgem de Guadalupe e do Cervi. Ela também marca presença nas redes sociais das entidades, elogiando a presidente da associação na Câmara dos Deputados, e num encontro onde integrantes do Cervi agradecem a destinação da emenda.
Chris Tonietto gravou um chamado à elaboração de moções de repúdio à ação para descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação (ADPF 442) no Supremo Tribunal Federal (STF), e foi repostada pela Associação Virgem de Guadalupe.
Uma atendente da Virgem de Guadalupe, ao ser questionada por telefone sobre a oferta de ajuda se uma mulher quisesse interromper a gestação, respondeu: “A senhora conversa com ela (a coordenadora), entendeu? Eu não posso dar muito detalhe”.
Outra parlamentar próxima da associação é a deputada estadual Letícia Aguiar (PP), mostrada nas redes sociais em eventos realizados na entidade. Em 2019 e 2020, durante seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo, ela propôs emendas ao Projeto de Lei do Orçamento visando remanejar recursos para ações desenvolvidas pela Virgem de Guadalupe.
Utilidade pública
A deputada Letícia apresentou dois Projetos de Lei para conferir título de utilidade pública à Virgem de Guadalupe, em 2020 e 2023. A declaração foi concedida no ano passado por meio da proposição apresentada em 2022 pelo então deputado Sérgio Victor (Novo).
Em 2019, a prefeitura de São José dos Campos deu à Virgem de Guadalupe, que tem sede na cidade, a permissão de uso de uma área de domínio municipal com área de 3,2 mil m². No final de 2021, o município autorizou a doação do terreno para a associação.
Quando não apoiadas com emendas parlamentares, ou seja, financeiramente, essas organizações recebem suporte de parlamentares interessados em transformá-las em organizações de “utilidade pública”. Cumprir critérios para assinar contratos públicos é uma das vantagens desse ‘título’, comenta Aline Viotto, advogada especialista em terceiro setor. Há ainda a possibilidade dessas entidades obterem benefícios fiscais, mas isso depende da legislação local.
O Lar Preservação da Vida, em Maringá (PR), recebeu declarações de utilidade pública nas esferas municipal, estadual e federal – título que pode favorecer o repasse de dinheiro público sem licitação. A Lei Municipal de Maringá 8548/2009 autoriza o poder executivo a firmar “convênios, acordos, ajustes e termos de cooperação” com uma série de entidades, incluindo o Lar. A declaração de utilidade pública é uma das exigências para possibilitar essas parcerias.
Atualmente em seu segundo mandato no Rio de Janeiro, o deputado estadual Márcio Gualberto (PL) apresentou proposta para conferir o título à Casa da Gestante Pró-Vida São Frei Galvão. A repostagem de publicações do deputado sobre projetos contrários à vacinação contra Covid-19 e o uso do gênero neutro evidenciam o compartilhamento da pauta conservadora. Já a temática do aborto aparece na republicação que ele faz de conteúdos da deputada federal Chris Tonietto.
Na esfera federal, as declarações de utilidade pública foram revogadas pelo Decreto 8726/2016, que regulamentou novas regras para parcerias com organizações da sociedade civil. As variações na legislação dificultam medir os impactos efetivos dessas declarações.
Falso acolhimento
O Lar Preservação da Vida de Maringá (PR) publicou um vídeo do Movimento Brasil Sem Aborto, contrário à interrupção voluntária da gestação em qualquer situação, incluindo os casos autorizados na legislação brasileira.
O vídeo fixado no Instagram da entidade traz imagens de choro, desespero e uma narrativa apelativa. “Se você não teve o amparo que gostaria, agora terá o amparo que você merece”. A promessa de apoio irrestrito e sem julgamentos não se confirma na conversa por telefone com a reportagem.
Quem entra em contato pedindo ajuda para um aborto legal após uma gestação fruto de violência sexual ouve o espanto da atendente: “você quer tirar o bebê?”. A funcionária diz ainda que “o aborto deixa marcas irreversíveis na mulher”.
Terror psicológico
Gerar medo de sequelas físicas e psicológicas é uma estratégia comum de grupos antidireitos reprodutivos. A desinformação sobre Síndrome Pós-aborto – suposto conjunto de prejuízos psicológicos pós-abortamento não reconhecido pela comunidade médica – aparece com frequência, mas as evidências científicas mostram o contrário.
Laura Molinari, cofundadora da campanha Nem Presa Nem Morta, ressalta o sofrimento mental identificado nas pessoas impedidas de acessar o aborto. Ela cita o maior estudo já realizado sobre o estado psicológico e a saúde mental de quem interrompe a gravidez – The Turnaway Study. O estudo mostra ainda maior vulnerabilidade econômica das mulheres sem o direito ao procedimento.
“Elas querem interromper a gestação e chegam nesses lugares pedindo esse tipo de apoio. Lá, são convencidas à base de muita desinformação e terrorismo psicológico a não abortar. Isso é muito violento”, afirma Laura. Muitas vezes, a argumentação contrária ao aborto inclui associações infundadas entre o procedimento e infertilidade, e até câncer de mama e do colo do útero.
O uso de desinformação para demover uma pessoa que busca o aborto legal viola direitos fundamentais, a exemplo dos direitos à informação e à saúde, como explica a advogada Letícia Ueda, do Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade. “Poderemos até pensar em direito à dignidade, à não exposição dessa pessoa à tortura”.
Em 2023, a Defensoria Pública de São Paulo moveu uma ação contra a ONG Filhos da Luz por assediar uma mulher com autorização judicial para abortar. A vítima não procurou a entidade, mas seus dados pessoais chegaram à equipe, que ligou diversas vezes pressionando para que ela desistisse do procedimento. Os telefonemas começaram no dia seguinte à decisão da Justiça.
Projeção e visibilidade contra direitos
Parlamentares antiaborto ainda ‘presenteiam’ essas organizações com projeção e visibilidade. Em junho de 2024, uma homenagem ao Movimento Pró Vida do Brasil aconteceu na Câmara dos Deputados. A iniciativa foi da deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ). Na mesa estava o vice-presidente da Associação Pró Vida de Anápolis (GO), o padre Lodi. Em 2020, ele foi condenado a indenizar uma mulher em R$ 398 mil por impedi-la de acessar o aborto legal.
A decisão contra o religioso foi tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta à ação de Tatielle Gomes e José Ricardo Dias. Exames mostraram que uma anomalia impediria a vida do feto fora do útero, e o casal buscou autorização judicial para realizar o aborto. Mas o procedimento foi interrompido por um habeas corpus obtido pelo padre Lodi.
Durante a pandemia da Covid-19, o religioso fez lives no canal da entidade no YouTube. Em uma delas, padre Lodi, que é bacharel em Direito, nega a existência do aborto legal no Brasil, argumentando que a legislação apenas preveria escusas absolutórias (razões para não punição).
Com esse discurso, as entidades e movimentos antidireitos reprodutivos reforçam o estigma em torno do aborto legal. “O que a gente tem no Código Penal é uma possibilidade autorizativa de realização”, explica a advogada Letícia Ueda. Legalmente, a interrupção da gestação não pode ser criminalizada nas hipóteses previstas no artigo 128 do Código, nem naquela caracterizada pela ADPF 54.
E a vida da criança estuprada?
O pânico moral e religioso foi usado pela associação de Anápolis (GO) na conversa com a nossa reportagem. “O que o inimigo (demônio) põe na nossa cabeça é que não tem jeito: ‘a única saída que eu encontro é matar o meu filho, é o aborto’”, disse, explicando que “compreendia” o desespero da mulher estuprada.
A atendente contou ter recebido uma mulher que não percebeu todos os símbolos religiosos presentes na sede da associação: “Entrou uma senhora aqui, tão cega, tão cega para matar o filho dela, que ela não viu nada disso”.
Mesmo em caso de crianças violentadas sexualmente, as entidades “pró-vida” defendem que as gestações devem continuar, colocando em xeque o próprio discurso, pois os riscos à saúde e à vida da menina são ignorados.
As chances de rompimento precoce da bolsa e pré-eclâmpsia são aumentadas em crianças e adolescentes. “Há maior risco de hemorragia pós-parto porque o útero ainda não está com a formação adequada para reprodução”, ressalta a ginecologista Halana Faria, mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo. Aí, sim, existem riscos de infertilidade permanente.
Além dos impactos físicos, a saúde mental tende a ser abalada, com elevação das taxas de ansiedade e depressão. Halana enfatiza o agravamento do problema quando a gravidez é resultado de estupro, com aumento da ocorrência de transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).
A dimensão do problema deixado de lado pelas entidades antidireitos reprodutivos é evidenciada pelos dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública: mais de 51 mil crianças de 0 a 13 anos foram estupradas em 2023.
Conforme o Código Penal, relação sexual com menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Em caso de gravidez, a lei garante o direito ao aborto legal, mas o acesso nos serviços de saúde é restrito e difícil, incluindo aqui as tentativas de obstrução por grupos autointitulados “pró-vida”. Entre 2015 e 2023, o DataSUS, do Governo Federal, registrou em média 1.900 procedimentos de aborto legal por ano, enquanto cerca de 19 mil meninas de até 14 anos tiveram filhos.
*Jane Fernandes, editora assistente da Revista AZMina, é jornalista formada pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom-UFBA) e pós-graduada em Marketing pela Unifacs. Na mídia impressa, atuou como repórter, chefe de reportagem e editora, dividindo sua trajetória entre os jornais A Tarde e Correio*
**Esta reportagem foi realizada com apoio do International Women’s Media Foundation (IWMF) e do Women’s Equality Center (WEC) através do programa Saúde reprodutiva, direitos e justiça nas Américas.
***Os Direitos Sexuais e Reprodutivos na Revista AzMina são uma pauta transversal. Essa matéria faz parte de uma série de reportagens especiais sobre o Lobby Antiaborto no Brasil.
**** A jornalista d’AzMina entrou em contato com as entidades mencionadas, por telefone, pedindo auxílio para uma amiga grávida após estupro ou se apresentando como uma gestante nesta situação. O desejo de realizar um aborto, que se enquadrava nos critérios para aborto legal, foi explicitado em todas as conversas. Os diálogos estão gravados.
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