Mulheres desafiam as correntezas e aquecem a economia do Pantanal

Submersas nos rios pantaneiros, isqueiras realizam um trabalho arriscado e garantem o turismo de pesca na região

Por Júlia Moa | ODS 8 • Publicada em 4 de junho de 2024 - 09:47 • Atualizada em 15 de agosto de 2024 - 07:57

O crescente turismo de pesca no Pantanal, esporte majoritariamente masculino, não poderia existir se não fosse o trabalho braçal dessas corajosas ribeirinhas. Foto Raquel Alves

Na natureza selvagem do Pantanal, as mulheres desafiam as correntezas e os perigos ocultos das águas doces à procura do que mantém viva a economia ribeirinha no Mato Grosso do Sul (MS). Protagonistas de um cotidiano anônimo, pouco conhecido no resto do país, as habilidosas isqueiras são as coletoras das iscas vivas vendidas no turismo de pesca pantaneiro. Durante horas submersas nas margens dos rios, elas são responsáveis por colher, um por um, caranguejos, tuviras, lambaris, caramujos etc. O crescente turismo de pesca, esporte ainda majoritariamente masculino, não poderia existir se não fosse o trabalho braçal dessas corajosas ribeirinhas.

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“Nosso dia é arriscado: sucuri, jacaré, onça e tempestades fazem parte dos perigos que enfrentamos. Cada dia é único, não temos como prever o que vai acontecer. Saímos de casa com o sol e voltamos embaixo de chuva, não temos controle. Pulamos dentro d’água e não temos noção do que está nos sondando, acredito que essa seja a mais perigosa de todas as profissões. Somos isqueiras por necessidade, não porque queremos”, argumenta Neuzilene Conceição de Arruda, da comunidade da Barra do São Francisco, no município de Corumbá (MS). A isqueira atua há 23 anos, e, no caso dela, sempre na companhia do marido ou de outras mulheres. Filha de isqueiros, ela aprendeu desde cedo observando os pais na atividade.

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De acordo com dados da ONG Ecoa – Ecologia e Ação, a estimativa é de que 90% do time de isqueiras no Pantanal seja feminino. Entretanto, muitas mulheres desistem desse trabalho, pois o consideram muito desafiador. As indígenas guató, da região da Serra do Amolar, por exemplo, decidiram investir nos artesanatos feitos com a planta aguapé para substituir o manejo com as iscas.

O “telar”, nome dado pelas trabalhadoras, consiste basicamente numa dupla dentro do rio, cada pessoa segurando de um lado a ponta de uma tela. No caso de pegar caranguejos, elas afundam a tela embaixo do aguapé (espécie de planta aquática denominada camalote, similar a um enorme tapete verde flutuante), suspendem a planta, abaixam a tela e recolhem delicadamente os animais: caranguejos, lambaris e cascudos também costumam aparecer na coleta. Já para a tuvira (também conhecida como peixe espada), a técnica é mais complexa e consiste em utilizar o cupim como isca além de uma lona sob o rio; este procedimento é feito no turno da noite.

A rotina da maioria segue os mesmos moldes: de segunda a sexta-feira, às vezes sábado e domingo, em longas jornadas de 10 horas dentro da água dos rios, açudes, lagos e baías. As telagens noturnas rendem até “onde nós aguentamos”, podendo estender-se pela madrugada. Lembrando que elas trabalham apenas no período que não inclui a piracema, momento em que os cardumes nadam contra as correntes para se reproduzirem. A temporada de pesca nos rios e lagos, em 18 estados brasileiros, está liberada de 29 de fevereiro até novembro de 2024.

O melhor amigo dessa mulherada é o macacão impermeável – um equipamento de proteção individual (EPI) – para melhorar a condição no dia a dia das profissionais. Além de preveni-las de doenças ginecológicas causadas pela exposição à umidade, o macacão feito de PVC, com uma bota acoplada, evita ataques de animais como aranhas, sanguessugas, arraias, cobras e jacarés.

“Desde 2012, e a pedido da Procuradoria Regional do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT/MS), nós firmamos um acordo não apenas na distribuição desses macacões para os isqueiros em geral como na geração de renda focada no empoderamento das mulheres ribeirinhas, mas já sabíamos da necessidade dos EPIs lá em 2005; foi uma caminhada longa. Tornou-se algo insubstituível principalmente por conta da característica do órgão sexual feminino e os problemas decorrentes de ficarem imersas nas águas por horas”, analisa André Luiz Siqueira, diretor geral de projetos e programas da Ecoa. Ele conclui que as águas das baías, com temperaturas beirando 45°C, muitas vezes são o espaço ideal para a proliferação de diversos fungos e bactérias. A organização distribuiu centenas de macacões em todas as comunidades ribeirinhas do Pantanal.

A isqueira Elizete Garcia da Costa, a Dona Zezé, moradora da comunidade Porto da Manga, em Corumbá, integra um time composto por 4 mulheres e 2 homens; já perdeu uma integrante devido à picada de cobra, e a onça pintada atacou dois colegas. Na beira do Rio Paraguai, um dos principais do Pantanal, Zezé afirma que a sobrevivência da maioria dali vem da coleta das iscas. Quanto ao valor pago, é relativo; em cada local é um preço, que gira em torno de R$ 24,00 a dúzia. Se eles vendem diretamente para o turista, recebem mais, porém quando é para os comerciantes, falta valorização. “É sofrido, não vou mentir. Já nos acostumamos com o trabalho braçal e repetitivo, percorremos longas distâncias carregando as iscas pesadas, essa é a nossa realidade. Temos muito cuidado e zelo no manejo, os bichos precisam estar vivos. Já aconteceu de [os revendedores] não pagarem pelo serviço porque, no deslocamento da nossa comunidade até a loja, eles justificaram que as iscas chegavam mortas. Isso não é culpa nossa, garantimos uma boa entrega”, argumenta Zezé.

Neuzilene relata não ter um dia fixo para receber o pagamento. De vez em quando é semanal ou mesmo mensal, a facilidade do PIX auxilia bastante. Faça chuva ou sol escaldante, elas entregam as iscas, e o mínimo que poderia ocorrer é os empresários não quererem baixar os preços durante as negociações, pagar o que as isqueiras consideram justo e ponto final.

Sucuri, jacaré, onça e tempestades fazem parte dos perigos enfrentados pelas isqueiras do Pantanal. Foto Andre Siqueira
Sucuri, jacaré, onça e tempestades fazem parte dos perigos enfrentados pelas isqueiras do Pantanal. Foto André Luiz Siqueira

A atividade das isqueiras no Pantanal começou a ser reconhecida nos anos 1990. Antes disso, elas praticamente pagavam para trabalhar em uma visível situação de miséria, e o jogo só começou a virar nos anos 2000 com campanhas para melhorias através da Ecoa, MPT/MS, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa/Pantanal) e os empresários dos barcos-hotéis de Corumbá. O ex-governador do MS, Reinaldo Azambuja (PSDB), durante sua gestão entre 2015 e 2023, foi o responsável por emitir decretos que engessaram a pesca profissional e artesanal (e de toda a categoria) no estado. “Várias famílias tiveram prejuízos financeiros e emocionais, alguns irreparáveis, que extinguiram a possibilidade de alguns pescadores trabalharem em áreas específicas do Pantanal. Foi uma luta muito pesada. Somente em 2023, conseguimos a retomada do Conselho Estadual de Pesca, uma estratégia articulada desde 2020, que prevê na legislação da pesca critérios técnicos e científicos, unidos ao conhecimento dos pescadores, em prol de determinar novas leis, diferentes das anteriores que ignoravam e desvalorizavam qualquer especificidade dos diversos segmentos”, analisa André.

O diretor aponta que a classe média sul-mato-grossense possui preconceito contra os pescadores, sempre se referindo a eles como predadores, quando na realidade é exatamente o contrário. Eles recebem o nome de bioindicadores, profissionais (homens e mulheres) livres, fora da lógica coronelista de atuação na pecuária, que cuidam dos rios e sabem de tudo o que acontece na região. “O pescador esportivo não se preocupa com a qualidade dos rios; raramente você vai vê-lo questionar a construção de uma hidroelétrica nas imediações. Algo distinto dos pescadores que tiraram dali a sua subsistência e formam famílias, filhos médicos e professores. Quando você limita o pescador profissional ou ataca essa categoria, como vem acontecendo em Mato Grosso (MT), você igualmente perde o patrimônio histórico e cultural do Brasil”.

O estudo recente conduzido pela Embrapa Pantanal, Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e mais 21 instituições brasileiras, que monitorou a pesca profissional artesanal em toda a Bacia do Alto Paraguai (BAP) nos estados de MT e MS, entre 2016 e 2020, constatou que mais de 30 mil pessoas são diretamente dependentes dessa atividade, que movimenta cerca de 70 milhões de reais por ano no bioma.

Vale ressaltar que os incêndios no Pantanal, especialmente os de 2020 e 2021, afetaram a saúde das isqueiras com a alta poluição das fumaças. As mudanças climáticas e a crise hídrica têm atrapalhado a atividade, pois as baías e lagoas que se formam no entorno dessas áreas inundadas pelo Rio Paraguai secaram completamente, diminuindo a produtividade e renda das mulheres. Em alguns casos, os maridos que as acompanham foram trabalhar nas fazendas para o sustento da casa não ser brutalmente afetado.

De acordo com dados da ONG Ecoa - Ecologia e Ação, a estimativa é de que 90% do time de isqueiras no Pantanal seja feminino. Foto Raquel Alves
De acordo com dados da ONG Ecoa – Ecologia e Ação, a estimativa é de que 90% do time de isqueiras no Pantanal seja feminino. Foto Raquel Alves

Questões de gênero e direitos garantidos

 A isqueira Valeska Santos Apaim, de Miranda (MS), realiza seu ofício há 11 anos. Como uma mulher trans, ela não teve a oportunidade de alterar o seu nome nos documentos oficiais e nem no registro da carteira de pescadora profissional. A cidade não possui nenhuma associação ou órgão que agilize o processo. Tanto Valeska como Dona Zezé sabem que a dupla jornada trabalhista, donas de casa e isqueiras, é puxada, mas o tempo para cuidarem de si é sagrado. Zezé, que há 31 anos responde como isqueira nos seus 60 anos de vida, dá um jeito de reservar um momento para cuidar do visual. “Nos meses de telação nós, mulheres, ficamos acabadas; não podemos esquecer da gente. Quando dá, faço as unhas, passo um creme e cuido da minha aparência”.

As mulheres ribeirinhas sempre trabalharam em atividades ligadas à pesca, porém demoraram, em relação aos homens, para serem credenciadas no Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) como profissionais da área. Elas faziam esse trabalho como um apoio para os homens, não como profissionais com direitos garantidos.

A coordenadora executiva da REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano, Schuma Schumaher, acompanhou o processo de inclusão profissional das mulheres pescadoras marítimas em Alagoas. Em 1985, atuando no primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher no Brasil, ela recebeu a solicitação de um grupo de mulheres pescadoras alagoanas alegando discriminação em suas tarefas.

Na época, existia um decreto da Marinha, do período da ditadura militar (1964-1985), que proibia as mulheres de pescar em alto mar, fruto de uma cultura falaciosa que propagou a ideia de que quando a mulher estava menstruada ela afugentava os peixes. Schuma e sua equipe foram à Marinha averiguar a situação e descobriram que, na realidade, só podia pescar quem possuía a carteirinha de autorização. Contudo, para retirar o documento, era necessário apresentar o atestado de serviço militar, inexistente para a figura feminina. Resultado: nenhuma mulher conseguia a regularização exatamente por conta desses preconceitos.

“Nós fizemos o maior barulho e derrubamos o decreto em 1987. As mulheres sustentam a vida em trabalhos desprestigiados que não são contabilizados na economia do país, seja nos cuidados na limpeza, com as pessoas adoecidas, na educação, com as crianças etc. Isso precisa ser debatido na sociedade, que até agora é limitada pela hegemonia machista e racista”, contextualiza a feminista.

Hoje, no Pantanal, as mulheres têm acesso às colônias de pesca e são cadastradas como coletoras de isca. Foi uma conquista que demorou a acontecer. Sair da sombra masculina para exercer, mesmo com certa invisibilidade, o protagonismo profissional, exige fôlego e união feminina.

Júlia Moa

Júlia Moa é jornalista multimídia; vencedora do prêmio Respeito e Diversidade do MPF.

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