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Todo Carnaval também tem seu começo

Em 2024, finalmente me permiti viver um Carnaval raiz: inventei uma fantasia qualquer, juntei adereços descombinados em cores e temas, e fui às ruas da capital federal

ODS 11 • Publicada em 14 de fevereiro de 2024 - 12:01 • Atualizada em 15 de fevereiro de 2024 - 09:39

Cresci na igreja evangélica. Em outras palavras: fui criada bem longe de qualquer sombra de Carnaval. Retiros eram planejados com bastante antecedência para garantir que estaríamos protegidos dos perigos urbanos e tentações carnavalescas. Por muitos anos, eu nunca soube o que realmente era um Carnaval de rua. Logo, sempre julguei como algo fora do meu campo de interesse. Não tinha repertório, nem experiência corpórea, tampouco capital cultural e político.

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Dentro do movimento evangélico, há uma tradição que se distancia do Carnaval. Como se não bastasse a demonização de tudo o que envolve a época festiva, há uma narrativa dominante sobre a pecaminosidade dos ritos e signos da cultura brasileira. O que, fatalmente, traz prejuízos à construção político-ideológica de cristãos diante de tudo o que envolve esse universo. 

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Para mim, Carnaval sempre foi sinônimo de fuga. Junto a minha família nuclear, a gente fazia o que podia (e o que não podia) para sair da cidade. O plano era garantir que estaríamos longe de barulhos, do trânsito confuso, da programação televisiva, do índice de violência durante o período, além dos riscos de acidentes de carro. Os retiros, os quais tenho boas lembranças, tinham programações específicas para jovens e adolescentes. Geralmente, discursos mais incisivos envolviam críticas a toda representação do Carnaval e suas consequências na vida de quem se rendia aos excessos: gravidez na adolescência, aids e morte precoce. E aqui escolhi apenas alguns dentre os exemplos atrozes. 

Carnaval de rua no Rio de Janeiro: colunista, de formação cristã, se permite viver, em 2024, um Carnaval raiz (Foto: Gustavo Stephan / Riotur)
Carnaval de rua no Rio de Janeiro: colunista, de formação cristã, se permite viver, em 2024, um Carnaval raiz (Foto: Gustavo Stephan / Riotur)

Confesso que sinto um pouco de constrangimento enquanto escrevo. Em meio à construção de valores da tradição cristã fundamentalista, cria-se um alicerce de curiosidades reprimidas e culpa opressora. Não era correto, não era santo  

Era proibido gostar de Carnaval. Uma vez que a proibição era consentida, era muito difícil romper com esse ciclo de culpa-curiosidade-tentativas. Quando a mente está aprisionada, não é sempre que o nosso corpo nos autoriza. E isso é o mais cruel do moralismo cristão. 

Independentemente de religiosidades, há muitas formas de experienciar um Carnaval. Planejar viagens para lugares de plena natureza não é nenhuma ideia exclusiva e revolucionária da igreja evangélica. Famílias, em suas mais diversas configurações, também se retiram para desafogar e descansar. Há juventudes geracionais que se entregam à folia dos blocos de rua com muita música, ritmos e tambores. Há também quem se assuma como fanático por escolas de samba e seus desfiles faraônicos. Há quem aproveite para estudar, trabalhar em projetos paralelos e ler muito. E há quem se dedique ao ócio absoluto, uma vez que é um feriado curto e, a depender da programação, são dias efêmeros. 

Em 2024, finalmente me permiti viver um Carnaval raiz. Embora eu reconheça certas limitações com minha sensibilidade auditiva e lugares tumultuados, foi como se eu precisasse encontrar outra resposta para a voz que afirmava o tal do “mas você não gosta de Carnaval“. Para mim, ressignificá-lo não tem relação alguma com romper com a minha fé cristã. Apenas olho para trás e me vejo diante de uma demanda gritante de muitas releituras de como a relação com o mundo foi estabelecida. Se você cresce ouvindo — repetidamente — que é errado se entregar de corpo e alma à folia, ainda que eu tenha sido uma criança muito questionadora, não é do dia para noite que vou desacreditar no que sempre acreditei. 

Inventei uma fantasia qualquer, juntei adereços descombinados em cores e temas, e fui às ruas da capital federal. Ora me sentia num experimento de observação participante, ora em reality show diante da pluralidade de possibilidades de ser parte de um Carnaval de rua. Desapeguei das linearidades e de qualquer expectativa comportamental. Eu não queria performar que era parte daquele universo. Eu só precisei me permitir ser e estar. Eu queria ser, eu queria estar. 

Encerrei minha breve aventura de foliã iniciante com o tradicional bloco intitulado “cansadas & gostosas”. Fechei os olhos enquanto dançava e uma onda de memórias me invadiu. O que a Andréia de hoje tem a dizer para a Andréia do passado? Tantas coisas. Uma delas é que a passagem bíblica de Filipenses 4.8, no Novo Testamento, também cabe facilmente na vivência do Carnaval. “Tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas”. Nada como, finalmente, encontrar um olhar mais acolhedor sobre a nossa própria capacidade de perceber o novo. Afinal, todo Carnaval também tem seu começo. Feliz quarta-feira de cinzas!

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