ONU prevê mais cem mil refugiados em já superlotado campo no Quênia

‘Ninguém se importa com a África. Há promessas, mas não passa disso’, diz Jeroen Matthis, um dos executivos da organização Médico Sem Fronteiras

Por Amelia Gonzalez | ODS 1 • Publicada em 20 de janeiro de 2023 - 09:59 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:43

O campo de refugiados de Dadaab, que começou a ser instalado em 1992, hoje é um complexo, já se dividiu em três, chegando a cerca de 400 mil pessoas com registro oficial (Foto: Paul Odingo/MSF)

Em 1992 o meio ambiente ganhou uma enorme vitrine mundial. No mês de junho daquele ano, no Rio de Janeiro, líderes de quase 200 nações se reuniram para acertar acordos e tentar diminuir os impactos ao meio ambiente provocados pelo excesso do uso de combustíveis fósseis. Cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima (IPCC na sigla em inglês) lançaram seu primeiro relatório dois anos antes, em que ficava claro que as mudanças climáticas eram uma questão global que exigia uma cooperação internacional.

Naquele mesmo 1992, no Quênia, nação africana, começava a se formar um campo para abrigar pessoas que fugiam do país vizinho, a Somália, em grande parte por causa de uma seca severa. A falta de chuva, um dos eventos causados pelas mudanças climáticas, mostrava ali, na prática, o que estava sendo debatido teoricamente no Rio de Janeiro. A seca impossibilita a agricultura. Sem agricultura, sem alimentos. E a fome mata.

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O campo de refugiados que começou a ser instalado em 1992 hoje é um complexo, já se dividiu em três, chegando a cerca de 400 mil pessoas com registro oficial. E não para de chegar gente. A projeção da Acnur, agência da ONU para os refugiados, é que até abril de 2023 cheguem mais de cem mil pessoas em Dadaab, um dos campos, distante quase mil quilômetros de Kakuma, o outro campo. São pessoas vindas da Somália, do Congo, do Sudão do Sul. Porque a seca continua severa na região, além da violência entre tribos rivais.

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Mandam bilhões de dólares para a Ucrânia com facilidade, mas não conseguem mandar cem mil dólares para cá, ou seja, 1% disso. As prioridades são políticas. O dinheiro vai para a crise escolhida pelo jogo da política. Ninguém se importa com a África

Jeroen Matthis
Executivo do Médico Sem Fronteiras

Isto faz com que o governo do Quênia, que este ano passou para as mãos de William Ruto, fique numa situação muito difícil. O país abre suas portas para receber os refugiados, mas também precisa lidar com suas próprias privações, que não são poucas. Dos cerca de 50 milhões de habitantes, há quatro milhões em situação de insegurança alimentar.  É preciso, portanto, um fundo maior do que o atual  para ajudar as pessoas que batem em suas fronteiras pedindo asilo. Mas a resposta ao seu pedido é que o fundo da ONU para o programa de refugiados está minguando ano a ano.

Ao seu lado na trincheira dessa batalha, o governo de Ruto tem as organizações que trazem ajuda humanitária, entre elas o Médico Sem Fronteiras. Conversamos com Jeroen Matthis, um dos executivos do MSF, que há três anos coordena o projeto em Dadaab.

Matthis é belga, tem cidadania também de Ruanda, e  vive em Nairobi, capital do Quênia, com a família. Duas semanas ao mês ele fica em Dadaab. No sábado em que conversou com o #Colabora, Matthis deveria estar no campo, mas a equipe de lá desaconselhou sua ida porque extremistas al-Shabab foram vistos muito próximos aos 60 quilômetros de fronteira do campo. E Matthis, de pele e olhos claros, é um alvo.

“Já tivemos um caso muito grave, quando em 2011 os al-Shabab sequestraram um casal de companheiros nossos aqui do MSF. Passaram dois anos com eles e depois os libertaram vivos, felizmente. Mas não queremos correr mais riscos como esse”, disse Matthis.

Dadaab, hoje, é o terceiro maior campo de refugiados do mundo. Segundo a Acnur, há cerca de cem milhões de pessoas em situação de refugiados globalmente. Foto Paul Odingo/MSF
Dadaab, hoje, é o terceiro maior campo de refugiados do mundo. Segundo a Acnur, há cerca de cem milhões de pessoas em situação de refugiados globalmente (Foto Paul Odingo/MSF)

Governo ameaçou fechar campos

O executivo da MSF é uma das mais de 200 pessoas que fazem parte da equipe da organização em Dadaab. Instado a falar sobre os desafios que enfrentam, ele aponta vários, mas foca, com tristeza, a decisão das lideranças políticas de financiarem com bilhões de dólares  a guerra na Ucrânia, enquanto há tantas pessoas vivendo em situação tão precária nos campos de refugiados na África.

“Mandam bilhões de dólares para a Ucrânia com facilidade, mas não conseguem mandar cem mil dólares para cá, ou seja, 1% disso. As prioridades são políticas. O dinheiro vai para a crise escolhida pelo jogo da política. Ninguém se importa com a África. O Quênia, a Somália, não estão na agenda dos países europeus ou dos Estados Unidos. Mesmo agora, na crise atual, com a nova chegada de refugiados, há um apelo para mais fundos e não há fundos. Há promessas, mas não passa disso”, disse ele.

A Somália é um dos países mais empobrecidos do mundo, um estado falido. Há uma enorme incapacidade para lidar com as questões climáticas, e a seca vai tomando conta

Jeroen Mathes
Executivo do Médico Sem Fronteiras

No ano passado, o então presidente do Quênia Uhuru Kenyatta fez uma declaração que encheu de pavor os refugiados e causou rebuliço entre as agências de ajuda humanitária. Ele iria fechar os campos e mandar cada um de volta para seus países. Algum tempo depois, no entanto, Kenyatta voltou atrás.

“O presidente foi muito criticado por isso, mas hoje eu entendo o que ele fez, foi uma jogada estratégica. Ao anunciar o fechamento dos campos, Kenyatta estava pedindo ajuda, estava dizendo: ‘Se vocês não nos ajudarem, eu não tenho como manter esses campos’. Como ela não fechou os campos, deve ter surtido algum efeito”, disse Matthis.

Mas o problema está crescendo, afirma o executivo da MSF. Há dez anos, Dadaab era o maior campo de refugiados do mundo. Houve um progresso nesse sentido, políticas foram implementadas para ajudar pessoas a retornarem, e houve uma redução no número de refugiados. Mas, ao mesmo tempo, outros campos foram surgindo no mundo, como o que abriga os rohingyas, em Bangladesh. Fato é que Dadaab, hoje, é o terceiro maior campo de refugiados do mundo. Segundo a Acnur, há cerca de cem milhões de pessoas em situação de refugiados globalmente.

Emissões de carbono e crise humanitária

Todos os países em desenvolvimento estão na categoria de “particularmente vulneráveis”, termo que está inscrito no documento final da COP27 e que serve como uma senha para que estejam na lista daqueles que deveriam receber fundos para lidar com as perdas e danos causados pela crise climática. A Somália e o Quenia, que fazem parte do G77 (grupo de nações em desenvolvimento) certamente têm as credenciais necessárias para estarem entre os beneficiados. Mas, por enquanto, são só acordos.

Jeroen Matthis lembra que nos anos 80 houve uma comoção forte por causa da fome na Etiópia, a ponto de ter sido organizado um concerto com artistas internacionais, o Live Aid. Hoje, porém, quando a situação está ainda pior, por causa das mudanças climáticas, a comoção não é tão forte:

“A Somália é um dos países mais empobrecidos do mundo, um estado falido (o último relatório do Pnud não conseguiu dados para qualificar o nível de desenvolvimento do país). Há um governo federal, mas ele não tem controle sobre diversas regiões do país, que ficam nas mãos dos al-Shabab. Por conta disso, é claro que há uma enorme incapacidade para lidar com as questões climáticas, e a seca vai tomando conta. Muitas áreas da Somália são extremamente dependentes de ajuda humanitária para prover necessidades básicas, como a saúde”, disse Jeroen Matthis.

Incapazes de garantir a própria sobrevivência, resta aos somalis mais fortes a fuga para o país vizinho. Nos últimos meses, cerca de 700 mil pessoas foram deslocadas naquele país. E é claro que Dadaab é uma chance, talvez a única, de continuarem a viver. Famílias se formam no campo, há gerações de 30 e de 20 anos. Pessoas que nunca romperam as fronteiras de Dadaab, e que sequer conhecem uma cidade grande como Nairobi, a capital queniana.

Novos refugiados não têm direito a registro

Se os primeiros refugiados amparados pelo Quênia  há trinta anos tiveram alguma sorte, hoje a situação está muito mais difícil. Os campos estão superlotados, no lugar das barracas que a ONU distribuía, muitas pessoas constróem choupanas improvisadas com qualquer tipo de material que encontram.

Nos últimos seis meses foram registrados, não oficialmente, 60 mil novos membros. É que, para tentar desestimular mais pessoas a buscarem abrigo, o governo queniano decretou, em 2017, a proibição de fazer novos registros.

Quem chega, portanto, é recebido mas não recebe seu registro oficial como refugiado. Há um registro informal feito pelas agências humanitárias para garantir-lhe a sobrevivência, e só. A pessoa se torna, assim, uma espécie de prisioneiro de um território que lhes garante viver.

Fica a pergunta: que tipo de vida está reservada a essas pessoas?

Jeroen Matthis conta que as agências humanitárias, como o MSF, contribuem para que haja vacinação, embora não tenham conseguido conter, por exemplo, um surto de cólera, como o que está acontecendo agora. A cólera é uma doença endêmica, que se espalha por falta de higiene. Num campo superlotado, é difícil manter um nível de higiene aconselhável para evitar a doença. Houve 440 casos de cólera em 2022, mas só duas pessoas morreram.

Por outro lado, houve poucos casos de Covid, já que eles vivem isolados.  A cidade mais próxima do campo, Garissa, fica a cerca de cem quilômetros.

Há, portanto, cuidados de saúde para os doentes. E há também escolas, comida, água para todos.

“Mas é uma prisão aberta. Sim, tudo está agendado. Eles têm cuidados de saúde, eles têm escola, eles têm comida, eles não estão morrendo de fome, eles não estão morrendo de sede, eles não estão morrendo de doenças, mas o que mais? Há escolas no centro, mas são limitadas ao segundo ano e eles não são oficialmente liberados para sair diariamente para o trabalho.  Vida é mais do que isso. Você precisa poder fazer escolhas, ter liberdade, ter oportunidade de fazer alguma coisa na vida, de construir sua vida, ter sonhos, e eles não têm essa chance”, disse Jeroen Matthis.

Saúde mental, outro desafio

Sem ter rédeas sobre a própria vida, sobretudo os mais jovens se entregam às drogas. Usada legalmente na Somália e vendida em barraquinhas nas ruas dos principais centros do país, uma planta chamada Khat tem tido espaço entre os refugiados. Ela é mascada e acelera a concentração mental, mas é extremamente viciante e tem efeitos colaterais, como insônia, falta de apetite e, em alguns casos, pode tornar a pessoa violenta.

Para comprar o khat, os refugiados usam dinheiro que obtém com comércio ilegal (no campo é proibido ter lojas), já que alguns negociantes somalis continuam mantendo algum nível de comércio com seu país, movimentam um pouco essa economia. As organizações humanitárias costumam empregar pessoas do campo, pagando salários pequenos, outra forma de obter dinheiro.

“E a Acnur decidiu, há cerca de seis anos, além de dar comida, fazer o que é chamado de “transferência monetária” para os refugiados. Ou seja: a ONU acaba dando dinheiro para eles”, disse Jeroen Matthis.

Como se pode imaginar, num cenário desses, a saúde mental também é alvo de preocupação das agências humanitárias em Dadaab. Há muitos casos de suicídio, sobretudo entre homens jovens, já que a cultura somali é rígida quando diz que eles é que têm que sustentar a família. Às mulheres, resta se compadecer de sua própria dor. Os homens, então, se sentem impotentes e muitos tiram a própria vida.

O que esperar do futuro

Um Plano de Integração, prometido pelo governo passado, que ainda não foi absorvido pelo atual, é a esperança dos refugiados e das agências humanitárias. Segundo esse plano, que obviamente vai precisar de ajuda financeira das nações ricas, é possível promover, gradualmente, a integração dos refugiados à nação anfitriã. Juntando governo e agências da ONU, o desenvolvimento da área onde estão os refugiados envolveria mais escolas, hospitais, estradas, eletricidade, não só para os refugiados como para a comunidade que os está hospedando. Mas ainda é um processo muito inicial, precisa de investidores. E precisa que o governo não fique mandando recados de que vai querer fechar os campos.

“No início deste ano o governo fez uma nova lei para os refugiados que prevê mais independência com relação à educação, por exemplo, e mais liberdade para que eles possam andar pelo campo. Como o governo mudou em setembro, estamos na expectativa para saber se o novo governo vai continuar com a mesma disposição. Está parecendo que sim, mas é claro que há muita preocupação no sentido de abrir as portas do campo”, disse Matthis.

Fica a torcida para que os países ricos voltem suas vistas para a situação na África. Sem esquecer que é um continente com um solo rico, que tem sido muito explorado para obter bens que o Ocidente valoriza.

Amelia Gonzalez

Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.

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