ODS 1
Famílias indígenas da Aldeia Maracanã temem despejo em meio à pandemia
Oito famílias ainda moram em área considerada sagrada na Zona Norte do Rio, onde pesquisadores reivindicam criação de Universidade Indígena
Oito anos após uma ação de desocupação envolvendo violência policial e, mesmo diante de um dos momentos de maior gravidade da pandemia da Covid-19, oito famílias de várias etnias residentes na Aldeia Maracanã temem pelo despejo dessa área reocupada desde 2016, nas imediações do estádio do Maracanã, na Zona Norte do Rio. O motivo de apreensão envolve uma decisão do desembargador Alcides Martins, do Tribunal Regional Federal – 2ª região (TRF-2), determinando no dia 10 de março, a intimação do Governo do Estado a informar sobre “condições necessárias à efetivação do julgado”, o que, na prática, se refere à reintegração de posse no âmbito de um conturbado processo judicial.
Mas essa batalha jurídica pode mudar de rumo. Pelo menos essa é a expectativa do advogado Arão da Providência Araújo Filho. Por um lado, ele afirma que já ingressou com um mandado de segurança, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no dia 16 de março, solicitando a anulação do processo movido pelo Governo do Estado contra 23 indígenas, em 2013. Segundo as suas alegações, nem todos os réus foram citados para conhecimento das questões relacionadas à ação. Além disso, não houve a participação da Fundação Nacional do Índio (Funai), embora o caso envolvesse indígenas.
Em contrapartida, o advogado acrescenta já ter informado, em petição à Justiça Federal, que o Estado pode tomar posse da área de 1.500 metros quadrados, onde se localiza o antigo Museu do Índio – um bem tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), cujos compromissos governamentais de restauração para funcionamento como Centro de Referência de Cultura Indígena, mesmo protocolados desde a gestão do governador Sérgio Cabral, ainda não foram cumpridos.
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Veja o que já enviamosPelo entendimento do advogado, o processo judicial não envolve todo o terreno localizado no bairro do Maracanã, que se estende por 14.300 metros quadrados. “Entendo que a extensão de 1.500 metros quadrados é a área reivindicada no processo. Por isso, ressaltei na petição que ela está inteiramente desocupada. Não há qualquer impedimento para que o Estado tome posse, recupere as instalações que há tempos estão altamente deterioradas, correndo riscos de desabamento, e destine esse espaço para fins culturais indígenas”, observa Araújo Filho.
O advogado argumenta que, nesse caso, não haveria risco de desalojamento da Aldeia Maracanã já que as famílias não moram no antigo prédio do Museu do Índio e sim nas áreas livres do terreno. E adianta que, se a Justiça Federal entender que toda a extensão do imóvel é passível de reintegração de posse pelo Estado, o caso tende a se tornar alvo de mais recursos.
Araújo Filho afirma, ainda, que não se pode desconsiderar que existe forte pressão da especulação imobiliária sob a área alvo dessa ação judicial. O advogado se refere à ideia de integrá-la a um shopping center e a um estacionamento que fariam parte do chamado Complexo do Maracanã. A proposta foi cogitada na época de preparativos para a Copa do Mundo de Futebol, de 2014, e dos Jogos Olímpicos de 2016, megaeventos que motivaram a controversa reforma do estádio.
A reportagem do #Colabora entrou em contato com profissionais de comunicação do Governo do Estado, solicitando informações sobre as questões judiciais envolvendo a área da Aldeia Maracanã, além dos compromissos de restauração do antigo Museu do Índio para fins de valorização da cultura indígena e, ainda, sobre a proposta de transformação da área em parte do Complexo do Maracanã.
Em resposta resumida, foi informada que a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa “não foi notificada da suposta decisão judicial de reintegração de posse do imóvel do antigo Museu do Índio, no Maracanã”. Posteriormente, foi solicitada uma informação complementar sobre o projeto de recuperação do antigo prédio do Museu do Índio à qual foi acrescentada que “a proposta não foi descartada, mas não há previsão para a execução de um projeto desse porte no momento”.
Já a assessoria de imprensa do STJ informou que “o processo está concluso ao relator, ministro Herman Benjamin.” Entretanto, esclareceu que “não há data para julgamento”.
Pesquisadores reivindicam Universidade indígena
“Queremos anunciar e mandar um recado que de lá não sairemos, como nunca saímos”, afirma a professora e pesquisadora Monica Lima, doutora em Química Biológica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutora pelo Departamento de Microbiologia da Universidade Estadual do Colorado (EUA).
Pertencente à etnia Manaú, do tronco Arawak, a professora denuncia que a área ocupada pela Aldeia Maracanã é alvo de especulação imobiliária, entre outras pressões econômicas e políticas. Ela recorda que já ocorreram várias ações de desalojamento da comunidade, assim como retomadas. “Nós honraremos os nossos ancestrais”, afirma.
No local, considerado sagrado, práticas de agroecologia, debates, visitas de estudantes e outros projetos educativos vinham sendo realizados, antes da pandemia, pelos pesquisadores de várias áreas do conhecimento que defendem a construção de uma Universidade Indígena, com um currículo diferenciado, baseado em saberes e práticas tradicionais.
Ao reafirmar resistência, a professora recorda que o local ainda representa um espaço verde fundamental e destaca que a própria comunidade reflorestou a área “estragada pela Odebrecht”. Monica se refere às obras de reforma do estádio do Maracanã realizadas pelo consórcio integrado pela construtora e outras empresas, quando parte do terreno onde se insere a Aldeia Maracanã foi asfaltado.
A pesquisadora destaca, ainda, a necessidade de ar puro, sobretudo, para o enfrentamento da grave crise de saúde pública provocada pela disseminação em massa do coronavírus, problemática cada vez mais associada ao desequilíbrio ecológico global. “Nós precisamos de árvores, de natureza, principalmente num momento de pandemia.” E reforça que “é vergonhoso” o que estão fazendo com essa comunidade indígena urbana. “Mas resistiremos”, promete.
O pesquisador Dilmar Puri, mestrando em Relações Étnico Raciais pelo Cefet-RJ, integra também o movimento de resistência que reivindica a criação da Universidade Indígena para formar pesquisadores que ainda enfrentam dificuldades de ingresso e adaptação nas universidades brasileiras. Puri destaca que, embora o Brasil seja um dos maiores países do mundo em população indígena, não conta com universidades com esse perfil, enquanto outros países menores na América Latina têm até mais de uma em funcionamento. “Lutamos por reconhecimento por parte da sociedade e do Estado da nossa aldeia como Universidade Indígena”, afirma. Nesse sentido, o pesquisador ressalta que poderiam ser asseguradas aulas sobre línguas e culturas indígenas, uma lacuna existente nos currículos universitários nacionais.
A proposta de criação da Universidade Indígena é apoiada ainda pelo historiador Nadson Nei Souza, docente do Cefet-RJ, onde atua como coordenador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e do Observatório de Histórias, Culturas e Literaturas Indígenas. Doutor em Ecologia Social pela UFRJ, ele faz questão de ressaltar que, a falta de valorização da luta dos povos indígenas, por uma parte da população brasileira, está fortemente relacionada ao distanciamento historicamente existente entre sociedade e natureza. “Essa visão é totalmente diferente do que ocorre com os povos indígenas que se reconhecem como parte da natureza”, observa.
Para o historiador, apoiar os objetivos educacionais e culturais da Aldeia Maracanã tem importância central. “Essa pauta representa considerar que além da salvaguarda do território, por parte de todos nós, é preciso recuperar o que os nossos ancestrais nos ensinaram”. Por isso, desde 2017, ele vem se envolvendo com esse debate, já tendo conseguido montar um grupo de pesquisa sobre a Universidade Indígena, por meio de uma parceria do Núcleo de Estudos e do Observatório que coordena no Cefet-RJ.
Essa experiência conta com a participação do pesquisador Dilmar Puri, mestrando na instituição e de outros estudiosos dedicados às culturas indígenas. “Pegamos materiais dos exemplos de Universidades Indígenas da América Latina, principalmente do modelo do Equador que tem como inspiração o bem viver [filosofia fortemente=”” centrada=”” nos=”” conhecimentos=”” e=”” práticas=”” ancestrais=”” das=”” comunidades=”” tradicionais=”” na=”” sua=”” relação=”” com=”” a=”” natureza=””][/filosofia]”, explica o historiador.
O trabalho de pesquisa também envolve conhecimentos tradicionais sobre o cultivo de ervas medicinais, além de técnicas agroecológicas de produção de alimentos. “Foi muito difícil no começo porque ali estava tudo asfaltado e pintado para virar estacionamento. Foi preciso quebrar o asfalto para que todos os grupos étnicos que ali residem pudessem voltar a pisar na terra”, recorda. Além disso, ressalta que o pesquisador José Urutau Guajajara trabalha com o resgate de línguas maternas a partir de cursos e ações de orientação e pesquisa sobre o tema na Aldeia Maracanã.
“A Universidade Indígena tem um direcionamento totalmente diferenciado desse modelo cartesiano e eurocêntrico que nós vivenciamos nas nossas universidades brasileiras. Pela proposta que defendemos, através de cursos, chegaria o momento em que os estudantes indígenas teriam uma carga horária em disciplinas, baseadas nas cosmovisões indígenas, sem amarras a uma grade curricular fechada”, explica. “Defendemos um currículo dinâmico, que recupere aquilo que ficou muito distante ao longo do tempo, com o processo de colonização do saber”.
Nesse contexto, “a nota não seria critério de avaliação e as práticas e vivências tradicionais seriam valorizadas como conhecimento, reconhecendo o que cada um faz de melhor”, argumenta o historiador, destacando, ainda, que essa proposta esbarra na burocracia do sistema educacional nacional, tema para o qual defende um amplo debate, além de mudanças estruturais.
Área se tornou alvo de disputas e dividiu grupos indígenas
A área onde se insere a Aldeia Maracanã tem importância histórica para os povos indígenas. Segundo o pesquisador Dilmar Puri, desde a época do Império, “o imóvel já havia sido doado para causas indígenas e para a seleção de sementes que, historicamente, também é uma tarefa indígena”.
Ele recorda que o Duque de Saxe (genro de Dom Pedro II) doou o casarão e o terreno à União, bens que havia recebido como dote. Isso ocorreu em 1865, quando a ideia já era orientada à construção de um centro de pesquisa em cultura indígena. Até que em 1910, o Marechal Rondon instituiu no local o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão que antecedeu à atual Funai, criada em 1967, cuja sede lá funcionou até ser transferida para Brasília. Fundado em 1953, o Museu do Índio (o primeiro da América Latina), subordinado ao SPI e depois à Funai, passou a funcionar no mesmo lugar até a década de 1970, quando foi transferido para o bairro de Botafogo, após a mudança da sede da Funai para o Distrito Federal.
Desde então, as antigas instalações do museu, no Maracanã, foram abandonadas pelo governo federal. Puri recorda que, em 2006, o movimento indígena resolveu reocupar a área para “que fosse cumprida a sua função original de servir às causas indígenas”. Mas, desde 2012, quando o imóvel foi adquirido pelo Governo do Estado se acirraram as disputas jurídicas pela reintegração de posse. Embora com essa mobilização tenha sido impedida a demolição do prédio histórico, posteriormente tombado, houve uma divisão dos grupos indígenas que originalmente ocuparam esse espaço.
Uma parte aceitou um acordo para saída da área em disputa judicial. O cacique Carlos Tukano, presidente do Conselho Estadual de Direitos Indígenas do Rio de Janeiro (CEDIND), conta ter participado desse diálogo que promoveu a mudança de cerca de 20 famílias, alojadas em imóveis do Programa Minha Casa Minha Vida, na rua Frei Caneca, Centro do Rio, depois de terem tido uma experiência de moradia em Jacarepaguá, que não deu certo.
Já a outra parte do grupo manteve o objetivo de construir uma Universidade Indígena no local que passou a ser denominado de Aldeia Maracanã. Esse foi o motivo que levou à reocupação da área em 2016, depois das operações de despejo marcadas pela violência policial em 2013. Naquela época, até equipes do Ministério Público Federal e de outras instituições que acompanhavam o processo foram atingidas por spray de pimenta.
Um episódio ganhou repercussão internacional naquele ano, como recorda o pesquisador Dilmar Puri: “o cacique José Urutau Guajajara ficou 48 horas em cima de uma árvore, uma jenipapeira, para se fazer cumprir a lei diante de uma reintegração de posse sem mandado judicial”. Embora esse tenha sido considerado um momento histórico, Puri ressalta que não foi possível continuar na Aldeia Maracanã naquele período de preparativos para a Copa do Mundo de Futebol de 2014.
“A Odebrecht destruiu os prédios onde a gente pretendia construir as salas de aulas da Universidade Indígena, onde funcionava o Lanagro (Laboratório Nacional Agropecuário), órgão do Ministério da Agricultura que cuidava da seleção de sementes”, recorda Puri. Depois disso, a reocupação da área aconteceu em 2016, onde o grupo de resistência permanece, “mas sempre sofrendo ameaças de despejo”.
Puri compara a situação da aldeia urbana à das Terras Indígenas, de uma forma mais ampla: “Como dizem os nossos líderes, um deles, Ailton Krenak, a descoberta do Brasil, a invasão, não foi só em 1500. Ela continua acontecendo diariamente”. E conclui: “O mesmo massacre lá de trás continua acontecendo, seja na Aldeia Maracanã; no Mato Grosso, nos latifúndios que plantam soja e algodão para exportação ou criam bois; seja com a devastação da Amazônia pelos garimpos dentro de Terras Indígenas homologadas. Enfim, é tudo uma luta só que já dura mais de 500 anos e a Aldeia Maracanã é parte dessa luta”.
Ainda que separados pela acirrada disputa jurídica que dividiu os próprios indígenas, a ideia de que a área ocupada seja destinada para fins de fortalecimento e difusão da cultura indígena parece permanecer como um objetivo comum entre os dois grupos. Nesse sentido, o cacique Tukano lamenta que a promessa de recuperação do antigo Museu do Índio não tenha “saído do papel”, nem mesmo com os preparativos para os megaeventos esportivos de 2014 e 2016, quando se esperava que o prédio seria realmente transformado em um Centro de Referência da Cultura Indígena.
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Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.
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