#RioéRua: de baleias e arpoadores a turistas e surfistas

Caminhada até a Pedra do Arpoador leva a um reencontro com a cidade e a parte da história de sua ocupação à beira-mar

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 9 de novembro de 2020 - 09:41 • Atualizada em 9 de novembro de 2020 - 09:42

Turistas aproveitam a vista do Morro Dois Irmãos e da Pedra da Gávea, meio encoberta pelas nuvens: atração para cariocas e visitantes (Foto: Oscar Valporto)

Um século atrás, a Pedra do Arpoador só era notícia nos jornais por conta da Estação Rádio-Telegráfica, montada ali. Em 1920, aquela ponta rochosa no meio do areal da então Villa Ipanema era frequentada por alguns pescadores e raros visitantes – o mar era considerado e há notícias de pelo menos quatro afogamentos naquele ano. Penso nisso enquanto olho para o mar numa tarde meio nublada nesta primavera de pandemia, enquanto ouço sotaques de outras partes do país e do mundo vindos dos outros visitantes da pedra. A maioria dos turistas está sem máscara, essa nova anormalidade: devoram a paisagem da Pedra da Gávea ao Pão de Açúcar. Ainda há pescadores e suas varas na paisagem do século 21.

Turistas na ponta da Pedra do Arpoador: lugar ganhou o nome por ser ponto de encontro de caçadores de baleias quase dois séculos atrás (Foto: Oscar Valporto)
Turistas na ponta da Pedra do Arpoador: lugar ganhou o nome por ser ponto de encontro de caçadores de baleias quase dois séculos atrás (Foto: Oscar Valporto)

O que não há mais são baleias que originaram o nome da ponta, da pedra e da praia. Em 1841, o francês Charles Leblon, que batiza o bairro vizinho, tinha uma empresa de pesca de baleia; o óleo de baleia era o combustível da iluminação da capital do Império do Brasil.  Muitos afirmam que os pescadores subiam na pedra com arpões para atacar as baleias, como teriam feito, antes deles, os tamoios. Há controvérsias: a Pedra do Arpoador pode ter ganho esse nome por ser ponto de encontro dos arpoadores das baleeiras importadas por Leblon. A caça à baleia foi um negócio próspero por, pelo menos, 15 anos, até a cidade começar a ganhar iluminação a gás e Leblon fechar sua empresa, vender as terras e as embarcações. Arpoadores deixaram de ser vistos no mar ou na praia.

Surfistas na Praia do Diabo, onde a vista da pedra alcança o Forte Copacabana e o Pão de Açúcar: pranchas no mar são parte do cenário há 60 anos (Foto: Oscar Valporto)
Surfistas na Praia do Diabo, onde a vista da pedra alcança o Forte Copacabana e o Pão de Açúcar: pranchas no mar são parte do cenário há 60 anos (Foto: Oscar Valporto)

Estação de Rádio-Telégrafo do Arpoador durou muito mais tempo: A casa, em estilo  art-déco, foi construída sobre uma plataforma que avançava nas areias da Praia do Diabo, do Arpoador. Quando foi desativada, em 1967, o Arpoador já havia mudado muito. Os pescadores permaneciam, mas a moda entre a juventude à beira-mar havia passado da pesca submarina, dos anos 1950, para o surfe – em 1967, inclusive, os surfistas resistiram a uma tentativa do Corpo de Bombeiros de limitar o horário para o esporte na Praia do Arpoador e na vizinha Praia do Diabo. O prédio da estação, abandonado, já era então palco de disputa judicial entre a Prefeitura do Rio e a EBCT desde que Marcos Tamoyo, prefeito da capital do Estado da Guanabara, baixou decreto impedindo construções na pedra. A empresa dos Correios queria vender o terreno da estação.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

A especulação imobiliária perdeu essa. O imóvel em ruínas foi testemunha da montagem (e desmontagem) do Circo Voador, no verão de 1982, da implantação do Parque Garota de Ipanema, da reforma do calçadão da rua Francisco Bhering: a prefeitura só conseguiu demolir a casa mais de três décadas depois da desativação da estação de rádio-telégrafo, quando a Pedra do Arpoador já havia sido, inclusive, tombada como Patrimônio Natural do Rio. A pedra ganhou algumas escadas de pedra, mas nada que interfira no patrimônio natural que prossegue atraindo os turistas pela vista toda exuberante e os cariocas que, desde os anos 1960, se aglomeram na Pedra do Arpoador para aplaudir o pôr do sol.

Estátua de Tom Jobim no começo do calçadão do Arpoador: praia estreita com público variado (Foto: Oscar Valporto)
Estátua de Tom Jobim no começo do calçadão do Arpoador: praia estreita com público variado (Foto: Oscar Valporto)

O Arpoador pode ser considerado um sub-bairro de Ipanema. São, na verdade, 500 metros de praia, ao longo da Rua Francisco Bhering, que agora tem a sua entrada guardada pela estátua de Tom Jobim, com seu violão sobre o ombro. Em 1967, quando foi desativada a estação, era um point moderninho, frequentado por artistas e surfistas, onde a tradição de aplaudir o pôr do sol recentemente tinha começado. Ainda havia quem morasse em casas em frente ao mar, substituídas por edifício baixos, com enormes – e caros – apartamentos com vista para o mar.  Agora é um dos pontos com maior mistura da praia: moradores dos prédios luxuosos em frente ao mar, vizinhos de Ipanema com crianças atrás de um mar mais calmo, moradores das favelas do Cantagalo e do Pavãozinho. E os surfistas, naturalmente, que ainda buscam as ondas especiais do canto próximo à pedra.

Baleias - indiretamente responsáveis pelo batismo da Pedra do Arpoador no século 19 - são agora muito raras neste trecho de mar até as Ilhas Cagarras (Foto: Oscar Valporto)
Baleias – indiretamente responsáveis pelo batismo da Pedra do Arpoador no século 19 – são agora muito raras neste trecho de mar até as Ilhas Cagarras (Foto: Oscar Valporto)

Na tarde meio nublada na primavera do ano da pandemia de 2020, o passeio até a Pedra do Arpoador é um reencontro com a cidade. Os surfistas cariocas estão lá: tanto na Praia do Arpoador, quanto na Praia do Diabo. Os pescadores, velhos frequentadores através dos séculos, estão por lá.  Há nuvens mas dá para ver, de um lado, a ponta do forte, a Praia de Copacabana e o Pão de Açúcar; do outro, a vista alcança Ipanema, Leblon, o Morro dos Irmãos e, um tanto encoberta, a Pedra da Gávea. Infelizmente (ou felizmente, devido às circunstâncias), não há aglomerações. Mas há turistas encantados com a vista; há cariocas olhando para o mar, buscando um sol, lendo um livro; tem ambulante vendendo mate e biscoito Globo. Faltam as baleias: bem que elas podiam aparecer para que a gente pudesse prometer que os arpoadores foram definitivamente aposentados e a cidade – e todo o resto – vai melhorar para todos.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *