Trajetória de Aécio Neves é decepção anunciada

O senador Aécio Neves na cerimônia de posse do Ministro Alexandre de Moraes no STF. Foto Mateus Bonomi/AGIF

Herdeiro teve avô Tancredo Neves como tutor inicial, mas amarfanhou-se com a camarilha que trava a consciência das elites

Por Plínio Fraga | ArtigoODS 4 • Publicada em 24 de maio de 2017 - 10:06 • Atualizada em 4 de junho de 2017 - 13:43

O senador Aécio Neves na cerimônia de posse do Ministro Alexandre de Moraes no STF. Foto Mateus Bonomi/AGIF
O senador Aécio Neves na cerimônia de posse do Ministro Alexandre de Moraes no STF. Foto Mateus Bonomi/AGIF
O senador Aécio Neves na cerimônia de posse do Ministro Alexandre de Moraes no STF. Foto Mateus Bonomi/AGIF

Tancredo Neves (1910-1985) costumava dizer que não existia mineiro radical. Político conservador, admitia-se reformista, mas nunca revolucionário. Tinha visão social e profunda crença no valor essencial da democracia. Repetia que as transformações no país ocorriam mais em razão da persistência do povo do que da consciência das elites. De certo modo, adaptava frase que ouviu do amigo San Tiago Dantas, estirpe de político e diplomata: “No Brasil, o povo, enquanto povo, é melhor do que a elite, enquanto elite”.

Como herdeiro na política, Tancredo via talento nato em Andrea, a neta predileta, mas achava que mulher não tinha vez entre os tantos varões dos gabinetes e dos corredores do poder

Achava que a confrontação não fazia parte da mineiridade. Esta carregava toda em si: cultivava os modos cordiais no trato, certa graça brejeira na conversa, gabava-se da formação moral-  conservadora e religiosa – e portava-se na defesa do rigor nos costumes. A licenciosidade, no entanto, volta e meia penetrava em suas relações com o sexo oposto, por vezes condimentadas com comportamentos machistas.

Aécio (à direita), com o presidente Michel Temer: exemplos comprovados de relações viciosas capazes de abarrotar malas e malas. Foto: Andressa Anholete/AFP Photo

Tancredo tinha em si as marcas do tempo em que se formou. Sua longeva atuação política se estendeu por mais de meio século –  de 1934, quando se elegeu vereador, até 1985, quando morreu sem ter sido empossado presidente da República. Como herdeiro na política, via talento nato em Andrea, a neta predileta, mas achava que mulher não tinha vez entre os tantos varões dos gabinetes e dos corredores do poder.

Restou-lhe ser o tutor do neto varão. Passou os sete últimos anos da vida em convivência intensa com Aécio. Fez dele assessor particular, tentando ministrar lições práticas do que acreditava ser uma forma de arte: a política.

Aos 18 anos, Aécio começou sua iniciação com o avô. Em 1978, Tancredo era candidato a senador pelo MDB; Aécio Cunha, pai de Aécio, era candidato a deputado federal pela Arena. Não existiriam concorrentes mais ternos. O patriarca dividia apartamento com o genro e o neto. O imóvel, bem simples, era alugado. Tinha dois quartos, localizado na agitada avenida Afonso Pena, uma das principais de Belo Horizonte. Tancredo dormia no quarto maior; Aécio Cunha no menor. Restava a Aécio o sofá da sala.

Aécio havia acabado de retornar de um programa de intercâmbio nos Estados Unidos. Na temporada no exterior, preocupara-se mais com o Carnaval do que com a política. Chegou a conceder entrevista a um pequeno jornal de Middlebush, em Nova Jersey, na costa leste dos Estados Unidos, lamentando estar em terras americanas durante o Carnaval brasileiro. “É a única época em que a classe baixa e a classe alta se reúnem”, explicou. Expressou sua paixão por Bob Dylan, opinou que as mulheres brasileiras eram diferentes das americanas porque não precisavam trabalhar e afirmou que, no Brasil, nunca arrumara a própria cama como era obrigado a fazer nos Estados Unidos.

Os sete anos em que teve Tancredo como tutor foram suplantados pela convivência com a camarilha brasiliense, uma confraria historicamente avessa a regras, limites e lições nobres. É essa camarilha que atrofia a consciência das elites, às quais o povo persiste em combater, como notou Tancredo.

Ao final do verão de 1982, Aécio completara 22 anos e sua cama já estava arrumada. Estudava economia na PUC do Rio e direito na Universidade Cândido Mendes. Gostava mais de surfar e de namorar do que de estudar. Depois de um domingo de sol, Aécio dirigiu-se ao apartamento do avô, na avenida Atlântica, para o almoço em família. Na hora do licor, Tancredo virou-se para o neto e perguntou:

― Já não está na hora de largar esta vida boa de surfista do Rio de Janeiro e conhecer a sua terra?

Emendou o questionamento, que tinha ares de repreensão, com o convite para que o auxiliasse na campanha para o governo do estado de Minas Gerais em 1982. Aécio trancou as matrículas dos cursos de economia e direito e mudou-se para Belo Horizonte. Dessa vez, dividia com avô o confortável apartamento no edifício Niemeyer, uma das obras-primas do arquiteto modernista erguida na praça da Liberdade, em frente à sede do governo mineiro.

A vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Foto: Celio Azevedo

Eleito governador de Minas Gerais, Tancredo levou Aécio para morar com ele no Palácio das Mangabeiras. Tancredo dormia tarde e acordava cedo. Às seis e meia da manhã, batia à porta do neto. Contra a sonolência, prescrevia a fórmula do seu tempo de colégio: banho frio.

Na primeira reunião do secretariado mineiro, Aécio, como auxiliar pessoal, organizou os postos de cada secretário e escolheu para si a cadeira oposta à da cabeceira, que seria ocupada pelo governador. Quando Tancredo chegou à sala de reunião, mediu Aécio da cabeça aos pés e anunciou em público.

― Vamos começar a reunião. Antes gostaria de solicitar que o secretário Aécio se retirasse da sala e retornasse quando estivesse devidamente composto.

Aécio vestia um blazer azul-marinho sem gravata. Para quem passara a adolescência de bermuda no Rio de Janeiro, era um traje formalíssimo. Retornou à reunião graças à gravata emprestada de um segurança.

Aécio comandou a Juventude Tancredista, caravana que saiu pelo país em defesa da candidatura indireta do avô à Presidência da República. Vencida a disputa no colégio eleitoral, sepultada a ditadura, Tancredo adoeceu, agonizou e morreu.

Aécio tinha acabado de completar 25 anos quando Tancredo, seu avô por parte de mãe, entrou para história como mártir _ não cuidou da doença que tinha com medo de não completar a transição para a democracia.

Aécio Neves quebrou seu fiador, cujo maior bem era a memória da promessa de uma Nova República, em que o interesse público e o bem geral estivessem acima da acumulação pessoal de fortuna, de interesses escusos de agentes públicos e da privatização pirateada de nacos do Estado

O primeiro emprego político de Aécio foi apadrinhado por José Sarney, o vice do presidente que não tomara posse. Sarney nomeou vice-presidente de loterias da Caixa Econômica Federal aquele jovem que a partir de então assinaria como Aécio Neves. Descartaria o Cunha paterno e tiraria a sorte grande na sua entrada no mundo dos varões de Brasília, com direito a gabinete e secretária.

Aécio Neves elegeu-se deputado, governador, senador, disputou a Presidência da República. Em todas as campanhas, apresentou o legado do avô como seu fiador.

De lá para cá, 32 anos se passaram. Os sete anos em que teve Tancredo como tutor foram suplantados pela convivência com a camarilha brasiliense, uma confraria historicamente avessa a regras, limites e lições nobres. É essa camarilha que atrofia a consciência das elites, às quais o povo persiste em combater, como notou Tancredo.

Uma série de delatores colocou a Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal no encalço de Aécio Neves. Foi afastado do Senado por decisão do Supremo Tribunal Federal. Viu a irmã – aquela com talento nato para a política – vestir o uniforme da penitenciária que ele reformou no governo de Minas Gerais; governo do qual Andrea era o cérebro.

Aécio Neves tenta justificar o que até agora parece injustificável: acumula exemplos comprovados de relações viciosas capazes de abarrotar malas e malas.

Quebrou seu fiador, cujo maior bem era a memória da promessa de uma Nova República, em que o interesse público e o bem geral estivessem acima da acumulação pessoal de fortuna, de interesses escusos de agentes públicos e da privatização pirateada de nacos do Estado.

Cumpriu assim a profecia do poeta Torquato Neto. O   artista que amalgamou a geleia geral brasileira dizia que uma geração só tem um compromisso com aquela que a antecedeu: trair os ideais com as quais foi formada. Em termos estéticos, é uma revolução. Em termos políticos, uma decepção anunciada.

Plínio Fraga

Jornalista com passagem por Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e revista Piauí, Plínio Fraga é autor da biografia "Tancredo Neves - O princípe civil" (editora Objetiva, 2017) e doutorando em mídia e mediações culturais na Escola de Comunicação da UFRJ

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