Bela, recatada e do lar

“Depois do almoço, vou para um curso, uma boa esposa não pode ter a cabeça vazia

A dura rotina de uma esposa exemplar

Por Leo Aversa | ODS 9 • Publicada em 22 de abril de 2016 - 09:30 • Atualizada em 22 de abril de 2016 - 18:41

“Depois do almoço, vou para um curso, uma boa esposa não pode ter a cabeça vazia
"Depois do almoço, vou para um curso, uma boa esposa não pode ter a cabeça vazia
“Depois do almoço, vou para um curso, uma boa esposa não pode ter a cabeça vazia

Já são sete da manhã e Mimi ainda está na cama. Sempre acorda às 6:35 mas ontem dormiu tarde, anda muito nervoso com uma promoção no escritório. Diz que tá complicado de sair, tem muita gente de olho. Coisas de homens, só pensam em trabalho. Não me meto, uma boa esposa sabe o seu lugar.

Acordo às seis para aprontar o café da manhã do jeito que ele gosta: duas torradas com manteiga sem sal e um café com duas colheres de açúcar branco.  Deixo o jornal dele na mesa, já aberto na parte dos políticos. Mimi não gosta muito de falar do trabalho comigo, diz que uma moça como eu não precisa esquentar a cabecinha com coisas tão chatas. Tem razão, essa tal de política é mesmo muito complicada. Aliás, jornal só tem notícia ruim, só desgraça e corrupção, melhor nem ler. As oito ele vai para o serviço, nunca atrasa, dá gosto. É um marido de sonho, bem que mamãe me avisou.

No começo chamava Mimi de Mimimi, achava ainda mais carinhoso, mas depois que ele mandou uma carta pra chefe pediu pra parar, não entendi muito bem mas se pediu deve ter motivo, não devo discutir.

Depois que ele sai eu dou uma arrumada na casa e me apronto para o curso de informática. Mimi diz que é importante que eu saiba usar o computador, pode ser necessário numa emergência. Na verdade prefiro mesmo é a TV mas não é bom desagradar marido, mamãe também me avisou sobre isso. Sempre almoço com alguma amiga, ontem foi com a Cláudia, mulher de um colega de trabalho do Mimi, o Dudu. Adoro a Claudinha, é mulher viajada, conhece o mundo todo, está sempre indo pra Europa, acho que tem parentes na Suíça. Fala inglês como se fosse artista de Hollywood! Tão moderna que até trabalhou quando era mais nova. Mas só até conhecer Dudu, aí parou, mulher direita não fica na rua, tem que cuidar do maridinho, o que não falta é sirigaita tentando pegar o que é nosso. Ainda bem que Mimi não é como os outros, vive só para o trabalho. Outro dia chegou às três da manhã porque ficou ensaiando um discurso. De uns tempos pra cá Dudu está sempre lá em casa. Ficam no escritório falando baixinho e telefonando. Não atrapalho, só entro para servir cafezinho e biscoitos.

Depois do almoço, vou para um curso, uma boa esposa não pode ter a cabeça vazia. Às terças e quintas tem corte e costura. Nas segundas, quartas e sextas Socila, algo que Mimi faz questão, desde o primeiro dia do noivado já avisou: “mulher minha só passando pela Socila!” , Gosto muito de lá, aprendo coisas muito importantes para nós mulheres.  Às quatro vou para a academia, a silhueta tem que estar em dia, o maridão merece.

Após a ginástica volto para casa tomar um banho e ficar bem cheirosa, esperando Mimi chegar da repartição. Ele disse que se sair a promoção vamos morar num lugar melhor. Tomara. Ultimamente ele tem recebido tantos amigos que o nosso lar ficou até pequeno. E não gosto da decoração daqui. Se nos mudarmos para uma casa nova vou aproveitar para dar a nossa cara ao ambiente.

No começo chamava Mimi de Mimimi, achava ainda mais carinhoso, mas depois que ele mandou uma carta pra chefe pediu pra parar, não entendi muito bem mas se pediu deve ter motivo, não devo discutir. Essa chefe dele é meio mau humorada, deve ser porque é desquitada, não tem marido. Vovó disse que acha até que ela é lésbica, Deus me livre. Eu até pensei em chamar para jantar aqui em casa mas pessoa sozinha assim é coisa estranha e os vizinhos podem comentar que uma divorciada entrou aqui em casa. No meu grupo de oração o pastor sempre diz pra tomar muito cuidado com essa gente.

Depois de jantar assistimos um pouco de televisão. Gosto das novelas das seis e das sete mas Mimi não gosta que eu assista a das oito, acha uma pouca vergonha. Eu também, só mostram safadeza. Meu marido pode parecer conservador, mas dentro das quatro paredes é muito fogoso, temos intimidades todas as terças. Nas últimas vezes fomos interrompidos por telefonemas do Dudu, a quem meu marido sempre atende. O trabalho em primeiro lugar, repete, sensato. Fico torcendo pela promoção e pela nova casa. Claudinha disse que tudo vai mudar, vamos viver quase juntas, nossos maridos serão inseparáveis. O que será que eles estão planejando?

Não me meto, uma boa esposa sabe o seu lugar.

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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