Eles não querem só comida

Restaurante no Brooklyn, em Nova York, é escola de culinária para refugiados, que saem dali com a possibilidade de emprego

Por Carla Lencastre | ODS 16ODS 8 • Publicada em 18 de março de 2020 - 08:49 • Atualizada em 20 de março de 2020 - 10:29

Alunos em frente ao restaurante Emma’s Torch: escola de culinária para refugiados, vítimas de tráfico humano e imigrantes em Nova York (Foto: Divulgação)

Área residencial no Brooklyn, Nova York. Não nas regiões mais procuradas pelos turistas, como Williamsburg e, mais recentemente, Dumbo. Mas em Carroll Gardens. Rua tranquila de nome banal, a Smith Street tem prédios baixos, com pessoas passeando com cachorros sob o sol gentil de um domingo de início do outono nova-iorquino. Este é o cenário do restaurante Emma’s Torch, inaugurado há menos de dois anos e, originalmente, uma escola de culinária.

Aqui refugiados (a maioria), vítimas de tráfico humano e imigrantes aprimoram suas habilidades na cozinha, aprendem novas técnicas, conhecem equipamentos profissionais, estudam inglês, são preparados para entrevistas de emprego. Durante toda a duração do curso de três meses, são pagos pelas horas de aprendizado. Quando as aulas terminam, são encaminhados para entrevistas em empresas parceiras que oferecem pagamento justo. Entre o início e o fim do programa, deixam sua marca no delicioso menu da casa, aberta ao público.

Falooda, sobremesa fria do Sudeste Asiático feita com xarope de rosas e servida em um copo: criação de aluno do Paquistão (Foto: Divulgação)
Falooda, sobremesa fria do Sudeste Asiático feita com xarope de rosas e servida em um copo: criação de aluno do Paquistão (Foto: Divulgação)

Em um momento em que a xenofobia aumenta nos Estados Unidos (e não apenas lá), resultado direto da postura anti-imigração do presidente Donald Trump, o trabalho de inclusão social de refugiados feito pelo Emma’s Torch chama a atenção. Visto de fora, com paredes em vidro deixando entrever a decoração minimalista, poucas mesas e um balcão simpático, parece um pequeno restaurante de bairro. E é. Mas os objetivos são ambiciosos. Já são mais de 90 estudantes, de 43 países, treinados, formados e empregados em vagas decentes em outros 47 restaurantes, entre eles endereços concorridos como o Publick Kitchen, do estrelado chef Jean-Georges, no Lower East Side; o Untitled, no Whitney Museum; o recém-inaugurado Mercado Little Spain, do premiado chef e filantropo José Andrés.

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O chef Alex Harris (centro), diretor culinário da Emma’s Torch e seus pupilos: escola de culinária que virou também restaurante de sucesso (Foto: Divulgação)

No começo, uma escola de culinária

Emma’s Torch é uma empresa social fundada em 2016 por Kerry Brodie, hoje com 29 anos. Neta de sobreviventes do Holocausto, ela estudou culinária, se graduou em estudos do Oriente Médio, foi voluntária em um abrigo de sem-teto, cuidando da alimentação, e trabalhou na assessoria de comunicação da Human Rights Campaign. Até ter a ideia de criar um negócio social voltado para a inclusão de refugiados por intermédio da culinária, sem fins lucrativos e mantido por patrocinadores (entre empresas e fundações), doadores e pela receita do restaurante. O nome Emma’s Torch foi inspirado por Emma Lazarus, advogada de refugiados, ativista e poeta nova-iorquina do final do século XIX. Versos de seu soneto “O novo colosso”, de 1883, estão gravados na base da Estátua da Liberdade. 

Parcerias garantem a possibilidade real de uma carreira. No início os alunos praticavam em um endereço pop-up, também no Brooklyn. A primeira turma deu certo, todos foram encaminhados para empregos em restaurantes e caterings em Nova York, Kerry recuperou o investimento. E a comida era boa. Os clientes elogiavam, voltavam, indicavam. Daí surgiu a casa em Carroll Gardens, aberta em 2018. Ano passado o número de parceiros que apoiam financeiramente o projeto e empregam os formandos triplicou em relação ao primeiro ano.

Shakshuka, prato de ovos poché com molho de tomate originalmente do Oriente Médio: sucesso servido no brunch (Foto: Divulgação)

Comer bem, fazer o bem

O menu do Emma’s Torch é um metafórico caldinho de culturas, com pratos principalmente africanos e do Oriente Médio, feitos a partir de memórias e receitas dos estudantes, combinados com clássicos da cozinha americana, como cheesecake. A cozinha é comandada pelo chef e diretor culinário da empresa, Alex Harris. Chefs famosos são convidados a assinar um menu com os alunos em datas como o Dia dos Namorados, ou nos jantares de graduação. 

O curso dura três meses, e a próxima turma se forma em meados de março. Os pratos que os estudantes são estimulados a criar para o jantar de formatura, quatro ao longo do ano, podem ser incorporados aos cardápios, que mudam de acordo com as estações do ano. Um evento de graduação tem comidas de lugares tão diferentes quanto Tibete e Guatemala, ou México e Burkina Faso, como aconteceu no final de 2019. O menu vai de releituras de clássicos, como o delicioso hummus de feijão-fradinho de uma das primeiras turmas, que ficou famoso e conquistou lugar cativo no cardápio, a pratos menos conhecidos, como a falooda, sobremesa fria do Sudeste Asiático feita com xarope de rosas e servida em um copo, criada por um aluno do Paquistão no final do ano passado. Outro sucesso, também testado e aprovado, é a shakshuka. Servido no brunch, é um prato de ovos poché com molho de tomate originalmente do Oriente Médio, hoje com diversas versões mundo afora. 

Restaurante Emma’s Torch no Brooklyn, em Nova York: cardápio muda a cada estação e inclui pratos dos alunos formados: última turma tinha cozinheiros de países como Burkina Faso, Tibete, Guatemala (Foto: Divulgação)

O Emma’s Torch abre de quarta-feira a domingo para jantar (de dia funciona em sua versão escola) e, também, para um concorrido brunch no fim de semana. A ideia é pedir várias porções e compartilhar. O menu atual, lançado em janeiro, reuniu estudantes de Guiné e da Rússia, que descobriram pontos em comum entre as cozinhas de inverno dos dois países, como o uso de determinados vegetais. Eles se uniram para criar pratos em conjunto: nabo com xarope de bordo, e abóbora assada temperada com especiarias e servida com ricota defumada. Dois bons exemplos da “nova cozinha americana feita por novos americanos”, frase que o restaurante usa para definir seu estilo culinário. 

O sucesso não apenas do projeto social, mas também do restaurante, fez com que o Emma’s Torch assumisse ano passado o café da Brooklyn Public Library. Os estudantes agora passam o terceiro e último mês do curso na biblioteca, onde outras habilidades são adicionadas ao currículo: eles aprendem técnicas de barista e de chef pâtisseur, preparando os doces que acompanham os cafés. E, também, ganham desenvoltura no atendimento ao grande público, já que a BPL recebe um milhão de visitantes por ano. Aberta de segunda-feira a sábado até as 17h, a biblioteca fica no Prospect Park, uma espécie de Central Park do Brooklyn, ao lado do Brooklyn Museum, endereço de ótimas exposições. Os pratos do café são menos originais que os do restaurante, mas o hummus famoso está no cardápio. Dá para ter um dia de turista sustentável, com arte e gastronomia. Comendo bem e fazendo o bem. 

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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