Volta do Programa Cisternas renova expectativas no Semiárido

A agricultora Ana Lúcia Santos tira água de sua cisterna instalada há quase 20 anos na comunidade Lagoa do Meio no Semiárido baiano: mudança de vida com programa (Foto: Arquivo Pessoal)

Após anúncio do governo, beneficiados lembram melhorias na qualidade de vida, na saúde e até na geração de renda das comunidades

Por Adriana Amâncio | ODS 6 • Publicada em 16 de agosto de 2023 - 09:32 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 19:41

A agricultora Ana Lúcia Santos tira água de sua cisterna instalada há quase 20 anos na comunidade Lagoa do Meio no Semiárido baiano: mudança de vida com programa (Foto: Arquivo Pessoal)

“Quando a gente recebeu a cisterna foi uma alegria muito grande. A gente teve saúde e pôde plantar as nossas verduras, limpa, sem veneno”. É assim que a agricultora Zélia Antunes da Silva, presidente da Associação Comunitária de Lagoa do Meio, comunidade rural do Distrito de Massaroca, em Juazeiro, no Semiárido baiano, resume o impacto das cisternas na vida da comunidade. A água, que veio da chuva direto para as cisternas, trouxe junto consigo possibilidade de geração de renda e esperança às famílias.

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A comunidade rural foi uma das milhares de beneficiadas pelo Programa Cisternas, lançado há 20 anos, no primeiro mandato do presidente Lula: foram instaladas mais de 900 mil cisternas até o começo do governo Bolsonaro, quando o programa foi interrompido. Há duas semanas, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome anunciou a retomada do programa que espera, já em 2023, chegar a mais 60 mil famílias.

Depois que chegou a cisterna foi só conquista. Eu voltei para a escola, estudava pela manhã e a minha sogra ficava com a minha filha. A cisterna é muito importante pra gente que é mulher, porque é a gente quem faz mais os serviços em casa

Ana Lúcia Santos
Agricultora

A comunidade Lagoa do Meio tem 23 famílias e quase todas contam com uma cisterna, elemento central na na melhoria da saúde e da renda na comunidade. “Quando chegou a cisterna de consumo , a situação mudou por causa da da água. A água do São Francisco vinha bruta pra gente, sem tratamento, agora, eu tomo água da cisterna, vinda da chuva, o ano todo”, avalia Zélia. Antes, os moradores da comunidade viam a chuva cair do céu e escorrer pela terra já que não tinham onde armazenar.

Com o acesso à cisterna de 52 mil litros, cuja água é destinada à produção alimentar e criação animal, Zélia afirma que as famílias ampliaram a produção de alimentos para o próprio consumo e para a comercialização. “A gente planta couve, cebolinha, rúcula, tomate cereja, pimentão, frutas e verduras e vende de 15 em 15 dias na Feira Agroecológica de Massaroca e região”, explica. A renda obtida com as vendas realizadas na feira ajuda a pagar as despesas da casa.

A agricultora Zélia, presidente da associação comunitária, com a cisterna: água para consumo e para produção de alimentos (Foto: Arquivo Pessoal)
A agricultora Zélia, presidente da associação comunitária, com a cisterna: água para consumo e para produção de alimentos (Foto: Arquivo Pessoal)

A comunidade se orgulha de, por meio do acesso à cisterna de produção, cultivar, consumir e comercializar alimentos sem o uso de defensivos químicos, ou seja, de modo agroecológico. “A gente sabe que tudo que a gente come hoje tem veneno, mas o que a gente cultiva aqui não tem”, informa, orgulhosa.

A agricultora Ana Lúcia Santos Silva, 39 anos, é um bom exemplo de como a água de qualidade perto de casa sacia mais do que a sede. “A cisterna aumentou a minha autoestima, trazendo água para perto de casa”. Além de se beneficiar com a qualidade e praticidade proporcionada pela cisterna, Ana Lúcia soube muito bem aproveitar o tempo livre que a tecnologia lhe ofereceu, uma vez que as longas caminhadas haviam cessado. A chegada da cisterna de 16 mil litros, em 2003, a encorajou a fazer coisas que, antes, a urgência da sede não permitia. “Depois que chegou a cisterna foi só conquista. Eu voltei para a escola, estudava pela manhã e a minha sogra ficava com a minha filha”, conta.

A história da agricultora com a escassez hídrica vinha de longa data. Quando criança e mesmo após se casar, aos 16 anos, ela seguiu dando várias viagens até um açude próximo, onde buscava água para o consumo humano. Segundo Ana, a água não era potável, inclusive também servia aos animais, que consumiam o líquido imersos no açude. Para a lavagem das roupas, ela caminhava 12 km até outra fonte, cuja vazão da água era maior, ao contrário do açude perto de casa. Entre idas e vindas, por dia, ela dedicava cerca de seis horas a buscar água. Essas dificuldades foram a razão pela qual Ana desistiu dos estudos no 8º ano do Ensino Fundamental II. “A cisterna é muito importante pra gente que é mulher, porque é a gente quem faz mais os serviços em casa”, explica.

Em 2017, às vésperas do ciclo de cortes drásticos no orçamento do Programa Cisternas, Ana recebeu uma cisterna de 52 mil litros, que, como ela conta, teve impacto na sua renda. Ela ampliou e diversificou a produção de verduras, legumes e frutas nos canteiros produtivos que já possuía e nos novos canteiros que vieram junto com a cisterna, e teve mais facilidade para matar a sede dos animais. “A prioridade, antes da cisterna, era consumir o que a gente produzia. Depois da cisterna, a gente passou comercializar na vizinhança e na feira agroecológica, que acontece há cada 15 dias”, conta a agricultora.

Cisterna instalada no interior do Ceará ainda nos primeiros mandatos de Lula: para 2023, programa está sendo retomado com orçamento de R$ 523 milhões, 25 vezes maior do que o de 2022 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Cisterna instalada no interior do Ceará ainda nos primeiros mandatos de Lula: para 2023, programa está sendo retomado com orçamento de R$ 523 milhões, 25 vezes maior do que o de 2022 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Demanda de 350 mil cisternas no Semiárido

O sonho, que para essas famílias foi realizado em pouco mais de uma década de execução do Programa Cisternas, foi interrompido nos últimos quatro anos: o Governo Bolsonaro entregou apenas 50 mil cisternas que já estavam anteriormente contratadas. O programa sofreu uma desaceleração de 93%, segundo dados da Coalizão Direitos Valem Mais. Com isso, fechou 2022 com um orçamento de apenas R$ 22 milhões e a entrega de 3.700 tecnologias, o número mais baixo executado em toda história desta que é a principal política pública de segurança hídrica do Brasil.

Retomado no início de agosto, o programa já avança no cumprimento das etapas dos editais e deve executar, de acordo com o ministério, um orçamento de R$ 562 milhões. A soma do orçamento do Programa Cisternas, entre os anos de 2018 e 2022 foi de R$ 192 milhões, segundo dados do Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento (Siop). Sendo assim, nesta retomada, o Programa Cisternas conta com investimento duas vezes e meio maior do que o total de investimento feito em toda gestão passada.

O valor, 25 vezes superior ao orçamento executado em 2022, é uma das mudanças que o programa apresenta nesta retomada. Coordenador Executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) na Bahia, Naidison Baptista explica que, inicialmente, a execução da política não contará com a participação dos governos estaduais. “Os recursos de R$ 400 milhões estão locados em um edital público para a sociedade civil. É um edital público para os dez estados, os nove do Nordeste e Minas Gerais, cada um com uma quantidade específica de cisternas determinada”, afirma. “Acredito que essa mudança seja provisória e de cunho administrativo para facilitar a gestão dos recursos”, acrescenta.

De acordo com a publicação “Acesso à água para as Populações do Semiárido”, publicada pela ASA Brasil, há uma demanda de cerca de 350 mil cisternas para captação e armazenamento de água para consumo humano no Semiárido brasileiro. O estado da Bahia possui a maior demanda por cisternas, 138 mil; o Piauí, que necessita de 56 mil, e Pernambuco, com uma demanda de 33 mil, vêm em seguida.

O novo edital estabelece quantidades de cisternas a serem construídas de acordo com as demandas de cada estado, assegura Naidison. “A Bahia tem a maior quantidade de cisternas dentro de um lote e o maior volume de recursos; essa divisão leva em consideração a demanda dos estados”, explica.

Ao redor do Semiárido, a demanda reprimida de pessoas que querem se ver na mesma condição de Ana Lúcia é grande. Segundo Naidison, os critérios de acesso à tecnologia permanecem os mesmos, inclusive com algumas cotas pré determinadas para povos tradicionais, a exemplo de indígenas e quilombolas. Os critérios do programa levam em conta a condição de vulnerabilidade social e econômica. Lares em condição de extrema pobreza, chefiados por mulheres, com a presença de pessoas com deficiência, crianças e idosos têm prioridade.

Nos moldes em que foi criado, em 2003, o Programa Cisternas possui uma metodologia participativa, que envolve organizações da sociedade civil e as próprias famílias em cada etapa da implementação. De acordo com Naidison, essa forma de implementação se perdeu ao longo dos últimos quatro anos. “Nós descobrimos que perdemos muita gente capacitada, com experiência no programa. Por isso, a ASA está fazendo encontros estaduais para pensar na retomada desta metodologia. Com isso, o Programa Cisternas sai da perspectiva de mera execução para a perspectiva de convivência com o Semiárido”, destaca.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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