Nem só de antirretrovirais vivem as pessoas com HIV

Olhar atento à saúde mental de pessoas soropositivas revela que depressão e falta de rede de apoio afetam adesão e continuidade do tratamento

Por Isaac Silva | Inclusão e DiversidadeODS 3 • Publicada em 28 de março de 2024 - 09:52 • Atualizada em 4 de abril de 2024 - 09:54

Emer e Raul, criadores do podcast Preto Positivo: primeiro podcast brasileiro totalmente dedicado ao universo do HIV/aids e com recorte de raça (Foto: Arquivo Pessoal)

Mais de 40 anos após a pandemia do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) eclodir, um resultado positivo para o exame que detecta a presença do retrovírus no corpo de uma pessoa não precisa ser uma sentença de morte. Graças aos inúmeros avanços científicos e, no caso do Brasil, ao SUS que oferece acompanhamento médico especializado e tratamento gratuito a cidadãos brasileiros, um diagnóstico confirmatório de soropositividade pode (e deve) ser um convite a enxergar a vida com outro olhar.

Nunca tinha convivido com uma pessoa que vivia e falava sobre HIV abertamente. Fiquei muito mal nas primeiras semanas. Tenho e tive muito apoio da minha mãe, foi a primeira pessoa para quem contei do diagnóstico. Entender como seria a minha vida a partir daquele momento proporcionou alguns gatilhos, inclusive suicidas

Raul Nunnes
Diretor de arte

Trata-se de uma condição que pode vir a afetar qualquer pessoa, independente de gênero, sexualidade, raça e classe – condição esta que também integra o cotidiano do autor da reportagem. Quando o quadro progride, torna-se a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), estágio no qual se manifesta sintomas cada vez mais perceptíveis e severos, tais como diarreia, gânglios/linfonodos inchados, dores no corpo, febre, perda de peso, fraqueza excessiva, entre outros. Assim como a maior suscetibilidade a infecções oportunistas.

Para Raul e Emer – entrevistados para a reportagem – e para outras pessoas que vivem com o vírus, desde os primeiros passos do tratamento se sente o impacto na saúde mental. “Nunca tinha convivido com uma pessoa que vivia e falava sobre HIV abertamente. Fiquei muito mal nas primeiras semanas. Tenho e tive muito apoio da minha mãe, foi a primeira pessoa para quem contei do diagnóstico. Entender como seria a minha vida a partir daquele momento proporcionou alguns gatilhos, inclusive suicidas”, conta o diretor de arte Raul Nunnes, 32 anos e natural de Nova Lima/MG, que recebeu seu diagnóstico positivo para HIV em 11 de junho de 2016.

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De lá para cá, Raul idealizou o podcast Preto Positivo, em que relata como tem sido sua vivência com o vírus o ativista e busca desmistificar o cotidiano de quem vive com HIV, além de ministrar palestras e participar de rodas de conversa.  A adaptação aos antirretrovirais – medicamentos que agem no controle de reprodução do vírus da imunodeficiência humana no corpo – e à nova rotina, contar ou não sobre a sorologia para as pessoas que convivem, lidar com rejeições ou abandonos em relações, sejam amorosas ou não. Tantas coisas passam pelas nossas cabeças durante o acolhimento para receber o diagnóstico. Sem dúvida alguma, iniciar o tratamento antirretroviral é um passo primordial para a pessoa que se infecta com HIV, mas ao invés de se deixar abater, escolhemos viver. Ainda assim, prezar pela saúde mental é uma questão importante.

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Na conversa para a reportagem, Raul Nunnes também relata ter sofrido sorofobia em ambiente de trabalho, já nos primeiros seis meses de tratamento. “Guardar a palavra me deixa muito incomodado. Aí fui falar no meu trabalho. Eu era uma pessoa que chegava às 7h da manhã na loja e saía às 10h da noite. Meu chefe percebeu que estava meio desanimado e perguntou o que estava acontecendo”, conta Raul.  “Expliquei tudo, ele ficou surpreso. Mas soltou a infeliz frase: ‘separe seus talheres e utensílios dos demais funcionários’. Então comecei a sentir um tratamento diferente dentro da loja. A menina do caixa não pegava dinheiro da minha mão. O estoquista não pegava roupas da minha mão. Houve as fatídicas reuniões de trabalho e notei que todos ficaram sabendo. Foi aí que não dava mais, pedi as contas e saí da loja. Ainda processei por várias situações, não só a sorofobia”, acrescenta.

Raul Nunnes, diretor de arte, teve diagnóstico de HIV em 2016: cuidados com a saúde mental (Foto: Arquivo Pessoal)
Raul Nunnes, diretor de arte, teve diagnóstico de HIV em 2016: cuidados com a saúde mental (Foto: Arquivo Pessoal)

Sobre saúde mental, Raul tem um histórico precedente ao diagnóstico, por conta do contexto religioso no qual estava inserido e a descoberta de sua sexualidade. “Em 2007, aos 17 anos, tentei suicídio porque tinha meus motivos, ninguém me entendia enquanto gay. Quando comecei a fazer terapia, comecei a me posicionar diferente e mostrar quem realmente era. Usando as roupas que gostaria de usar, ir a lugares que gostaria de ir, fui fazendo contato com quem eu queria fazer”, afirma. “O letramento racial também foi muito importante nesse processo de se reconhecer e se aceitar. Após o diagnóstico, 2017 para mim foi um ano de entendimento.”

O podcast foi lançado em meados de 2022, o primeiro podcast brasileiro totalmente dedicado ao universo do HIV/aids e com um recorte de raça, que está disponível no Sportify. “Depois do Preto Positivo, realizo um preparo comigo mesmo antes de acolher uma história de alguém que vive com HIV, por exemplo. Infelizmente, enquanto pessoa preta e gay, possuo limitações e nem sempre é possível fazer algo a respeito devido a limitação de recursos, Hoje, cuido bastante da minha saúde mental, pois existe uma necessidade urgente para todas as pessoas cuidarem cada vez mais. Se eu não cuidar, entro num limbo que não consigo sair”, declarou o ativista.

Rede de apoio e terapia

Ainda que seja uma infecção sexualmente transmissível (IST) preocupante a todas e todos, o Boletim Epidemiológico de Saúde da População Negra – publicado pelo Ministério da Saúde no dia 10 de outubro de 2023 – evidencia a necessidade de políticas públicas de maior atenção à prevenção não somente da infecção por HIV, mas também pela tuberculose e outras ISTs, vide as hepatites virais, gonorreia e sífilis, por exemplo.

Segundo o relatório, de 2011 a 2021, “considerando-se a proporção conjunta de pretos e pardos, observa-se aumento de 12 pontos percentuais na proporção de casos entre pessoas negras entre os anos de 2011 (50,3%) e 2021 (62,3%)”. A proporção na população preta não teve um aumento tão expressivo quanto ao da população parda. Contudo, quando se analisa os índices da proporção de óbitos de pessoas negras, é perceptível o aumento – no mesmo período de tempo – de 52,6% (38,8% de pardos e 13,8% de pretos) para 60,5% (46,5% de pardos e 14,0% de pretos). A leitura desses números é inevitavelmente atrelada a questões de raça, gênero e classe; é fundamental considerar a interseccionalidade. 

Não tinha tempo para pensar no meu psicológico. Estava com aluguel atrasado, todo mundo desempregado em casa. Em um dia peguei meu diagnóstico, e, no outro, estava no farol de novo, gritando ‘Água é dois! Água é dois!’. No começo, minha saúde mental ficou de lado por questões financeiras; afinal, capitalismo. Pensar não iria resolver muita coisa. Para continuar o tratamento eu tinha que estar vivo, para isso tinha que me alimentar

Emer Conatus
Ator e professor de Artes

Através do Raul, entro em contato com o outro apresentador do podcast, o paulista Emer Conatus. Com 29 anos, além da experiência como podcaster, Emer, formado em Artes Cênicas, é ator e professor de Artes,. Diferente de Raul, o ator já conhecia e tinha referências soropositivas antes de receber seu diagnóstico, em 2018. “As pessoas que estavam ao meu redor, e estão até hoje, são pessoas que têm consciência em relação a causas, questões sociais e opressões a minorias. Que bom, pois conheci as pessoas certas”, afirma o ator.

O acolhimento, no momento do diagnóstico, foi um fator negativo no caso do Emer. “No início de 2018, busquei atendimento para começar a tomar PreP (Profilaxia Pré-Esxposição, uso de medicamento anti-HIV de forma programada para evitar a infecção pelo HIV) por conta de uma relação de risco. A enfermeira que me atendeu fez perguntas constrangedoras e me recomendou não tomar. Voltei posteriormente determinado a começar a tomar PreP. Mas desta vez os exames deram inconclusivos. Foram três. No dia seguinte, fiz novamente e deu positivo. Já esperava, pois nunca fiz tantos testes assim, com resultados inconclusivos”, conta ele.

“Acompanhava o [coletivo] Loka de Efavirenz e entendia que o diagnóstico não era um sinal de morte, podia viver minha vida normalmente. Não teve nenhum choque, nem desespero. O médico que se assustou com minha reação. ‘Vocês acham tudo normal’, ao que eu retruquei: ‘Vocês quem? Vocês viados? Vocês negros? Vocês o quê?’. Parecia que ele estava tentando tocar um terror, botar medo em mim. Aí ele me disse: ‘Você não acredite que indetectável é intransmissível’, sendo que essa informação nem tem comprovação. Muito pelo contrário”, relata, com consternação, o ator.

Após essa consulta, Emer conseguiu o encaminhamento para início do tratamento antirretroviral que só começaria mesmo mais de um mês depois. Uma pergunta feita tanto a ele quanto ao Raul foi em relação à oferta de acompanhamento psicológico no Centro de Testagem e Atendimento (CTA) ou em uma unidade de referência de Serviço de Atendimento Especializado (SAE) que eles acessam ou já acessaram. O mineiro de Nova Lima lembra que havia o serviço em Belo Horizonte e São Paulo – que não chegou a usar – mas no Rio de Janeiro, onde mora atualmente, não lhe ofereceram acompanhamento psicológico.

Por sua vez, o professor de Artes recusou, decorrente das experiências ruins com atendimentos anteriores. Depois de alguns meses, quando começou a dar aula, ele buscou terapia por conta própria. Antes, por estar desempregado, sua prioridade era juntar dinheiro e contribuir com o sustento da casa e família vendendo água. “Não tinha tempo para pensar no meu psicológico. Estava com aluguel atrasado, todo mundo desempregado em casa. Em um dia peguei meu diagnóstico, e, no outro, estava no farol de novo, gritando ‘Água é dois! Água é dois!’. No começo, minha saúde mental ficou de lado por questões financeiras; afinal, capitalismo. Pensar não iria resolver muita coisa. Para continuar o tratamento eu tinha que estar vivo, para isso tinha que me alimentar”, explica Emer.

O ator e professor Emer, testado positivo para HIV em 2018: terapia durante a pandemia (Foto: Arquivo Pessoal)

Antes do HIV, o ator e professor teve um histórico de depressão dos 13 aos 15 anos, quando seus pais se separaram definitivamente. E o pai simplesmente sumiu. “Começou como se fosse um luto, pois não sabia se ele estava vivo ou morto; ele só sumiu. Passaram-se meses e não tinha notícia dele. No fim das contas, ele estava com outra mulher, outra família. Daí entrei nesse processo de depressão, que durou dois anos. Quando peguei o diagnóstico, o maior medo era de voltar a esse lugar. Então decidi me ocupar, fazer curso de moda, oficina de teatro, um emprego… para não ficar ocioso, com tempo de pensar”, recorda o paulista.

“Aí veio a pandemia, um processo bastante pesado. A insegurança de [não ter] trabalho, que me levou a pegar dois empregos para ter renda. Passei a trabalhar em 5 lugares diferentes: 2 centros culturais e 3 escolas. Outro fator foi a mudança da aula presencial para virtual, tive que me readaptar. E foi um privilégio, porque minha família não teve essa oportunidade de ficar trabalhando em casa. Acabei pegando covid de uma visita à minha mãe. Ainda teve uma relação amorosa conturbada, pois morávamos juntos e precisamos terminar porque descobri que ele ia ser pai. Em 2020, foi um turbilhão; fiquei bastante adoecido e peguei firme na terapia. Consegui superar tudo isso”, conta o professor de artes sobre o seu diário de pandemia.

Ainda sobre saúde mental, pergunto a Emer se ele continua fazendo terapia. “Tive uma interrupção. No momento não estou fazendo porque estava sem grana, nem fui atrás de algum projeto social. Agora estou com várias demandas, sem conseguir voltar para terapia. Faço o que posso, yoga, meditação… mas pretendo voltar”, admite o ator. “Da época que tive depressão, dos 13 aos 15 anos, foi uma barra que precisei lidar e processar tudo sozinho, não podia contar com o apoio da família, devido ao contexto. Só fui entender mesmo que precisava cuidar da minha saúde mental nos tempos da pandemia.”

Podcast Preto Positivo foi idealizado para abordar questões das pessoas soropositivas, com recorte racial (Reprodução: Spotify)

Integrar serviços de saúde mental e de HIV

Pesquisas e estudos – bem relatos diversos como os reunidos no podcast – corroboram que se deve valorizar, investir e consolidar boas práticas de serviços de saúde mental no SUS; e não  apenas a pessoas com HIV/AIDS, mesmo esta sendo uma demanda específica e urgente. Um olhar mais atento às necessidades de quem está em vulnerabilidade social é crucial para se buscar melhorias na qualidade de vida das pessoas, especialmente para as PVHIV.

É exatamente esse tópico que o artigo “Saúde mental, suporte familiar e adesão ao tratamento: associações no contexto HIV/AIDS” atravessa e correlaciona com o êxito do tratamento e o suporte familiar, como uma rede de apoio. O artigo traz resultados de uma pesquisa realizada por especialistas da área de psicologia em SP: Luiza Azem Camargo, Cláudio Garcia Capitão e Elvira Maria Ventura Felipe. Com amostragem de 73 pacientes na faixa etária entre 29 e 67 anos, a pesquisa aponta que pessoas com HIV e depressão (por conta do fator desejo de morte) acabam tendo uma adesão irregular ao tratamento antirretroviral. A ausência de uma rede de apoio (ou suporte familiar) também afeta a adesão e continuidade do tratamento, visto que se trata de um facilitador e amenizador no contexto da saúde mental e HIV/AIDS.

Desde outubro de 2018, a UNAIDS, um programa realizado conjuntamente à ONU com o intuito de “liderar e coordenar a resposta global à epidemia de HIV/AIDS”, chama a atenção da sociedade para uma melhor integração entre serviços de saúde mental e de HIV. O diretor executivo à época, Michel Sidibé, com embasamento de pesquisas e estudos, afirmou que o HIV afeta severamente quem se encontra mais vulnerável e marginalizado na sociedade, de tal maneira que também tendem a sofrer com problemas mentais.

Com serviços integrados de HIV e saúde mental, é possível “alcançar mais pessoas com atendimento especializado e suporte capazes de salvar vidas dos quais elas precisam urgentemente”, apontou Michel. Um artigo publicado⸢¹⸣ no ano de 2018, com amostragem de 83 pessoas que vivem com HIV/AIDS em atendimento de Serviço de Atendimento Especializado (SAE), reforça essas assertivas feitas por Michel Sibidé.

A maioria dessas pessoas (53%), que participaram voluntariamente da pesquisa entre 2017 e 2018, apresentou sintomas de depressão. Esse dado está associado também a outras alterações de saúde mental como ansiedade, ideação suicida e distúrbio do sono. “Indivíduos com sintomas de depressão e ansiedade foram mais vulneráveis a comportamentos suicidas e ainda apresentaram uma tendência    maior a abandonar o tratamento”, ressalta também o estudo.

Em 2022, a UNAIDS e a OMS realizaram uma publicação sobre a importância de se adotar práticas integrativas dos serviços de saúde mental e de HIV para o combate contra a pandemia de HIV/AIDS. Essa publicação destina-se principalmente a quem formula políticas públicas nacionais e locais; implementadores de programas globais, regionais, nacionais e locais; organizações e fornecedores que trabalham com temas de saúde geral, HIV, saúde mental, dentre outros serviços relevantes; sociedade civil e/ou organizações sociais atuantes e lideradas pelas comunidades.

Além da UNAIDS, existem outras iniciativas com o intuito de desmistificar a vivência com HIV/AIDS, como é o caso do próprio podcast Preto Positivo, e trazer informações de relevância no contexto global e nacional quanto ao combate, avanços e descobertas relacionadas ao HIV, como a agência de notícias Agência AIDS. Ambas iniciativas buscam promover discussões, acolhimento, compartilhamento de conhecimento, conscientização acerca de temas pertinentes e humanização das narrativas de pessoas que vivem com HIV, seja através de rodas de conversa ou entrevistas. A Agência AIDS dispõe de um vasto acervo tanto de textos/livros quanto de entrevistas que tratam sobre HIV/AIDS.

 

 

 

Isaac Silva

Em formação pelo curso de graduação em Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Isaac Silva nasceu e mora em Natal. Um homem gay, nordestino, vivendo com HIV desde os 20 anos, que adquiriu aptidões para leitura e escrita já na adolescência. Contar histórias e evidenciar narrativas do cotidiano de forma inesperada e impactante passou a ser um sonho e, logo mais, uma meta profissional. Atuou como copywriter freelancer; social media, redator, editor, produtor e repórter na UFRN. Também estagiou na assessoria de comunicação e cerimonial do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN).

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