Polícia mata uma pessoa negra a cada quatro horas

Relatório da Rede de Observatórios de Segurança: a cada quatro horas, uma pessoa negra foi morta pela polícia em 2022 (Ilustração: Vinícuis Alencar – @a.llencar)

Monitoramento da Rede de Observatórios em oito estados mostra que, em 2022, dos 3.171 registros de morte por ação policial, com informação de cor/raça, os negros somaram 87%

Por Oscar Valporto | ODS 10ODS 16 • Publicada em 16 de novembro de 2023 - 09:13 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 18:52

Relatório da Rede de Observatórios de Segurança: a cada quatro horas, uma pessoa negra foi morta pela polícia em 2022 (Ilustração: Vinícuis Alencar – @a.llencar)

Em 2022, a cada quatro horas, uma pessoa negra foi morta pela polícia nos oito estados monitorados pela Rede de Observatórios da Segurança, de acordo com dados do novo boletim ‘Pele Alvo: a bala não erra o negro’, divulgado, nesta quinta (16/12). O novo monitoramento, o quarto realizado pela organização, confirma o alto e crescente nível da letalidade policial contra pessoas negras. “O número de negros mortos pela violência policial representar a imensa maioria e a constância desse número ano a ano ressaltam a estrutura violenta e racista na atuação desses agentes de segurança nos estados, sem apontar qualquer perspectiva de real mudança de cenário”, alerta a cientista social Silvia Ramos, coordenadora-geral da Rede.

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No ano passado, a Bahia ultrapassou o Rio de Janeiro no número de casos registrados nos estados incluídos no estudo. Bahia e Rio foram responsáveis por 66,23% do total dos óbitos. As operações letais da polícia baiana estão se repetindo em 2023: em apenas uma semana, de 28 de julho a 4 de agosto, foram noticiadas 32 mortes decorrentes de intervenção policial na Bahia.  Esse ultrapassagem da violência policial baiana sobre a da polícia do Rio de Janeiro em 2022 é particularmente alarmante pois, em maio do ano passado, 25 pessoas foram mortas apenas durante uma operação policial na Vila Cruzeiro, na Zona Norte da capital fluminense.

Os dados reunidos pela Rede de Observatórios da Segurança – projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), do Rio, desenvolvido em parceria com organizações de outros sete estados – foram obtidos junto a secretarias estaduais de segurança pública de Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo via Lei de Acesso à Informação (LAI). Os coordenadores do estudo alertam que os números reais podem ser ainda maiores, tanto pela subnotificação de casos como pelo não registro de dados sobre cor e raça, que ocorre principalmente nos estados do  Maranhão, Ceará e Pará.

Em todos os estados a quantidade de negros entre as vítimas da letalidade policial é maior do que a porcentagem desse grupo na população. “É necessário tomar a letalidade de pessoas negras causada por policiais como uma questão política e social. As mortes em ação também trazem prejuízos às próprias corporações que as produzem. Precisamos alocar recursos que garantam uma política pública que efetivamente traga segurança para toda a população”, destaca Silvia Ramos.

Proporção de mortes de pessoas negras por intervenção policial (Gráfico: Rede de Observatórios)
Proporção de mortes de pessoas negras por intervenção policial (Gráfico: Rede de Observatórios)

Neste novo boletim Pele Alvo, a Rede de Observatórios de Segurança aumentou a área analisada, com a inclusão do Pará, o primeiro estado da Região Norte na amostra. No ranking de 2022, o Pará já aparece em segundo lugar no percentual de negros mortos em operações policiais, com 93,90% dos casos; a Bahia ficou em primeiro lugar, com 94,76%. Mas os pesquisadores lembram que, na Bahia, a população negra significa 80,80% do total e, no Pará, 80,46%. Rio de Janeiro e São Paulo também chamam a atenção pela alta letalidade de pessoas negras por agentes de segurança. No Rio de Janeiro, 54,39% da população é negra, mas o número de óbitos representa 86,98%. Em São Paulo, com 40,26% de negros, as mortes destas pessoas por policiais somam 63,9% do total.

Os pesquisadores apontam que, através dos dados, “é possível entender a estratégia de associar práticas ilegais a corpos negros – como uma forma de neutralizar a participação desses indivíduos na sociedade –, e também o processo de criminalização da pobreza como política de controle social”.

O relatório destaca que “a sociedade brasileira tem se mostrado incapaz de pautar uma real mudança deste cenário, dando a entender que é preferível fazer vista grossa para a situação e manter a estrutura imposta pela branquitude. Essa é mais uma estratégia de manutenção e promoção de subjetivações que autorizam práticas diversas de violações de direitos, principalmente contra pessoas negras”. A Rede de Observatórios defende um redirecionamento da política de segurança pública “visando, acima de tudo, respeito à vida, sem qualquer distinção”.

Operação policial em Salvador: polícia da Bahia fez 1.465 vítimas fatais em 2022 (Foto: Haeckel Dias / Polícia Civil-BA)
Operação policial em Salvador: polícia da Bahia fez 1.465 vítimas fatais em 2022 (Foto: Haeckel Dias / Polícia Civil-BA)

Barbárie da polícia baiana

Os dados da Rede de Observatórios confirmam o descontrole da violência policial na Bahia já apontado por outras organizações da sociedade civil: em 2022, a Bahia, pela primeira vez, chegou ao topo do ranking dos estados que mais matam pela ação de agentes de segurança, com um total de 1.465 vítimas. A escalada da violência policial na Bahia, com a esfarrapada desculpa de guerra às drogas, não tem equivalente no país: entre 2015 (quando o estado registrou 354 mortes) e 2022, houve um aumento de 300% nessa taxa de letalidade, que atingiu principalmente jovens negros. De acordo com a Rede, a população negra representou 94,76% do total de mortos por agentes de segurança no ano passado: a maioria (74,21%) com idade entre 18 e 29 anos.

O levantamento mostra que o viés racial das vítimas da letalidade policial repete-se em outros estados do Nordeste, apesar de não ter sido registrado outro aumento escandaloso do número de mortes como na Bahia. Em Pernambuco, o número de mortos por agentes de segurança em Pernambuco teve ligeira queda (de 105 para 91), mas manteve-se o alto índice de vítimas negras: 89,66% do total dos 87 casos informados. no Piauí, o número de mortes em intervenções policiais subiu de 32 (em 2021) para 39 (em 2022), mas o viés racial foi semelhante: das vítimas da letalidade causada por agentes de segurança com registro de cor, 88,24% eram negras.

No Ceará, a análise da Rede destaca duas constantes – “o aumento do número de mortos pela polícia e a negligência com as informações sobre as vítimas da violência”. No comparativo entre os anos de 2021 e 2022, houve registro de 27 mortes a mais por agentes de segurança do Estado. Do total de 152 mortes, em quase 70%, não foi registrada raça/cor das vítimas. Na análise dos casos com esta informação, o relatório aponta que 80,43% das mortes foram de pessoas negras e que sete de cada dez vítimas tinham entre 18 e 29 anos. Entre os oito estados monitorados, o Maranhão – estado que foi governador pelo hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, por oito anos -segue como o único com um apagão total nas informações sobre raça e cor. Das 92 vítimas da violência, quase 60% (59,78%) eram jovens de 18 a 29 anos.

Protesto do Movimento Negro contra a violência policial no Rio: 1.042 pessoas negras foram mortas por agentes de segurança do estado em 2022 - 87% do total de vítimas (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil - 24/08/2023)
Protesto do Movimento Negro contra a violência policial no Rio: 1.042 pessoas negras foram mortas por agentes de segurança do estado em 2022 – 87% do total de vítimas (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil – 24/08/2023)

Tendências diferentes no Rio e em São Paulo

O Rio de Janeiro, apesar de ter caído da primeira para a segunda posição do ranking das unidades federativas com maior número de mortes por agentes de segurança, registrou um crescimento do número total de óbitos – de 1.214 em 2021 para 1.330 em 2022 – para confirmar a rotina de de violência e medo vivida em favelas e periferias do estado. Os agentes de segurança do Rio de Janeiro mataram 1.042 pessoas negras em 2022 (86,98% dos casos com informações completas de cor e raça) – a cada oito horas e 24 minutos uma pessoa negra morreu em decorrência de intervenção policial.

Em 2022, São Paulo registrou queda no número de mortes por intervenção policial, tendência registrada desde 2019. Neste período, o número de vítimas caiu de 867 para 419, redução de 48,32%. “Os números decorreram de uma política de redução da letalidade aliada ao uso de câmeras corporais, mostrando que é possível a polícia ser menos violenta, se houver fortalecimento de mecanismos de controle e responsabilização das instituições de controle”, lembra o relatório. O viés racista da violência policial, entretanto, se repete: no estado onde 40,26% da população é negra, 63,90% das vítimas dos policiais eram pretas e pardas .

Os números de mortes por policiais em São Paulo, entretanto, aumentaram em 2023: de acordo com os dados oficiais do governo, a letalidade das ações policiais subiu quase 10% no primeiro semestre do ano – de 202 vítimas em 2022 para 221 no mesmo período de 2023. Estes dados saõ anteriores à violenta intervenção da polícia paulista no litoral do estado após o assassinato de um soldado da PM. Pelo menos, 23 pessoas morreram na chamada Operação Escudo.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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