ODS 1
Verão do Apartheid: segregação e (falta de) direito à cidade no Rio
Forças de segurança, insatisfação da classe média e mobilidade urbana são obstáculos ao lazer e à circulação de populações pobres
“É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos…”
Território exaltado como da mistura e da liberdade, a orla do Rio mantém o abismo social que marca o resto da cidade. Juridicamente definidas como “bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar”, as praias estão incluídas na disputa que exclui os pobres e periféricos.
Estudo com participação do professor Vinicius Netto, professor de Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em Planejamento Urbano e Regional, atesta a mazela, contrariando o preceito jurídico. “Os grupos sociais de renda mais alta reivindicaram locais à beira-mar e esse padrão está intimamente ligado à raça. O grupo com renda mais alta inclui mais pessoas brancas, tem melhor acesso a serviços, mais infraestrutura e maior longevidade”, diz trecho da pesquisa “Cidades Verticais”.
Explica o professor que as favelas são atalho encontrado por pessoas negras e pobres para vencer parte das dificuldades. “O mercado imobiliário não chega em encostas de morros, por conta da topografia e por serem áreas de risco, mas devido à alta demanda de habitação, as pessoas acabam ocupando esses espaços”, explica.
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Veja o que já enviamosÉ por essa razão que belezas icônicas como as praias de Copacabana e Ipanema não escondem o contraste da realidade de quem vive ao mesmo tempo na vizinhança e à margem. Estão ali, para quem quiser enxergar: a favela Santa Marta, em Botafogo; o conjunto Cantagalo-Pavão-Pavãozinho colado aos prédios da Avenida Atlântica; a Rocinha, vizinha de São Conrado. Se fotografias registram os mares de morros e águas, não deixam de incluir os condomínios de luxo e assentamentos informais.
“Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos…”
Sendo assim, é comum que pessoas pobres e ricas, negras e brancas, sejam vizinhas no Rio de Janeiro. Quando as nuvens se dissipam do céu e o sol arde na pele, um ponto de encontro une essas diferentes classes sociais: as praias são o destino comum de moradores e visitantes da cidade. “A praia é o lugar visto como mais heterogêneo e menos segregado no Rio de Janeiro, na percepção de mais de 600 pessoas que entrevistamos a partir de questionários online. Nele, perguntamos a percepção dos entrevistados sobre lugares onde pessoas e grupos sociais diferentes (baseados em renda, raça ou cor da pele, orientação politica, etc) têm visibilidade entre si — o que chamamos de co-presença”, detalha Netto.
A avaliação se inspira nas cenas de cartão postal das praias no verão, com a multidão compartilhando o mesmo local público de lazer. Mas a realidade é bem outra. O trajeto de ida e volta para as praias pode refletir grande disparidade entre classes. No verão, se aquecem os debates sobre o direito à cidade: forças de segurança agem para impedir que pessoas pobres e periféricas cheguem às praias, com a alegação de que são potenciais criminosos.
Foi o que aconteceu quando entrou em curso a Operação Verão em 2015. Na edição 2023/2024, iniciada em setembro do último ano, o protocolo de promoção da segurança pública teve como foco apreender menores de idade que iam ou voltavam das praias e encaminhá-los para centros de acolhimento — também conhecidos como abrigos — por andarem sem documento de identidade e sem presença de um responsável. A situação foi apontada como ilegal e arbitraria por juristas, numa batalha judicial que chegou ao fim com decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe a prática de cerceamento do direito de ir e vir da juventude negra.
Não é de hoje que essa população não é aceita. Retrato histórico é a reportagem “Os Pobres Vão à Praia”, do programa jornalístico Documento Especial (1989– 1996), na finada TV Manchete, que recorrentemente viraliza nas redes sociais por falas preconceituosas de moradores de classe média da Zona Sul. “Aqui tem uma gente mal-educada, suja, fica falando grosseria. Você olha para a casa dessas pessoas e tem vontade de fugir. Tenho horror de olhar para elas e ver que são do mesmo país que eu. Não são brasileiros, não. É uma sub-raça”, diz fervorosa uma jovem, em Copacabana. Ela pede, no depoimento, a criação de um pedágio para poder usufruir da praia e dificultar o acesso de pessoas mais pobres.
(Angela Moss, responsável pelas falas racistas nos anos 1980, disse em entrevista à BBC Brasil que “era muito conservadora, egoísta e idiota. Fui criada em um ambiente privilegiado. Nunca tinha andado de ônibus. Via a galera fazendo confusão na praia e não entendia. Foi só depois que minha vida mudou, fui trabalhar como garçonete e me aprofundei nos estudos que tive outra visão”.)
A mobilidade urbana e o acesso às áreas públicas de lazer
Não há barreiras, pedágios ou forças que retenham esses “estranhos”, como referencia Chico Buarque na música “Caravanas”. Não faltam, no entanto, tentativas. “Há dificuldades impostas à população que mora mais longe de acessar os ônibus, até redução no serviço”, ensinao professor Vinicius Netto, que também faz parte do Centro de Investigação do Território Transportes e Ambiente. Para ele, a medida não faz sentido. “Além de serem práticas desumanas, são pouco efetivas, porque se a ideia é manter uma espécie de controle social, isso não funciona. A cidade tem um padrão locacional complexo, há muitas favelas próximas ao mar.”
A maior facilidade de acesso às praias, proporcionada pela passagem de coletivos no Túnel Rebouças, a partir do primeiro governo Brizola (1982-1985), não agradou moradores da Zona Sul. Em 1984, a insatisfação foi narrada em reportagem de Joaquim Ferreira dos Santos ao Jornal do Brasil “Nuvens suburbanas sobre o céu de Ipanema”. Início do texto: “Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados”. Apresenta, ainda, falas de moradores da região, similares à de Angela Moss na juventude.
Para Netto, um complicador na mobilidade urbana, principalmente para a população mais pobre, é a falta de investimentos em transportes de massa: “O sistema é subdimensionado. Por exemplo, hoje a linha do metrô é em forma de Y, inicia seu percurso na Linha 1, partindo da Zona Norte e cruzando a Zona Sul, até a Barra. Já a Linha 2 tem início em Pavuna, Zona Norte, e segue até a estação Botafogo. Não há como atender a mobilidade de uma metrópole do porte do Rio de Janeiro dessa maneira. É uma punição cotidiana à população”.
“Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão”
- Trechos de Caravanas, de Chico Buarque
Ana Carolina Ferreira
Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.