Piedade do Paraopeba só quer dormir em paz

A barragem Santa Barbara, que ameaça o povoado do Paraopeba, em imagem feita por drone. Reprodução

Distrito de Brumadinho (MG) sofre com a falta de transparência em relação às condições da barragem Santa Bárbara, da mineradora Valloutec. "Não sabemos o que acontece e nos sentimos abandonados", diz morador

Por PLURALE | ODS 11ODS 9 • Publicada em 24 de março de 2022 - 09:04 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 18:06

A barragem Santa Barbara, que ameaça o povoado do Paraopeba, em imagem feita por drone. Reprodução

(Por Sônia Araripe*) – Piedade do Paraopeba, no sopé da Serra da Moeda, distrito do município de Brumadinho, é considerado um dos povoados mais antigos de Minas Gerais, relíquia dos tempos em que o bandeirante Borba Gato andou com os bandeirantes por aquelas terras, em busca de ouro. Foi fundada antes mesmo de cidades históricas mineiras tidas como mais famosas, a exemplo de Ouro Preto e de Sabará, pelos idos de 1674. Do passado de glória ainda restam a história contada dos mais velhos para os mais novos; a devoção pela padroeira local, Nossa Senhora da Piedade, homenageada na Igreja da Matriz; a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída pelos escravos e libertos; as famosas festas religiosas e o congado. O belíssimo lugarejo, com cerca de 400 moradores na zona de autossalvamento (área que corre mais risco de ser atingida em caso de acidente) e um total de quase 3,5 mil habitantes- joia encravada do pouco que restou da Mata Atlântica –, vive hoje um verdadeiro pesadelo, por conta das dúvidas que cercam as atividades da mineradora Vallourec na região.

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A empresa administra a Barragem Santa Bárbara na região e realizou uma obra de adequação no vertedouro, concluída em dezembro de 2021, o que gerou uma imensa pilha de material. Os moradores – que ficaram sabendo oficialmente desta obra em abril de 2021, com a abertura de uma área de nove hectares de Mata Atlântica para depositar o material retirado – sentem-se inseguros, temendo algum rompimento ou transbordamento (provocado pelas chuvas) do que acreditam ser, na opinião deles, rejeitos, sedimentos e água, não muito distantes da barragem.

A Vallourec assegurou, em nota enviada à Plurale, que não há riscos, “que não há nova pilha de rejeitos de mineração”; “que a obra foi necessária, garantindo, com isso, uma melhor vazão da água e elevação do seu nível de segurança” e ainda que “a Barragem Santa Bárbara está segura”. Reforça também que “esse material está a 700 metros de distância da Barragem Santa Bárbara. E ainda que se cogitasse, hipoteticamente, a possibilidade de que esse material alcançasse a Barragem Santa Bárbara, pode-se afirmar que ela está dimensionada para suportar um volume superior àquele depositado em decorrência da obra do vertedouro sem, contudo, potencializar risco de transbordamento.” A íntegra da nota pode ser conferida ao fim desta reportagem.

Para os moradores, o distrito e sua gente – separados por 1,5 quilômetros da Barragem – estão, sim, correndo risco. “Ninguém dorme em paz. Não sabemos o que acontece na barragem e na pilha de material que a Vallourec tem aqui, próxima de nossas casas. Dizem que não tem rejeitos do minério-de-ferro. Mas sedimentos e água também matam”, desabafa, emocionado, Seu Sebastião Francisco dos Santos, 68 anos, gráfico aposentado, ao falar à Plurale por telefone. O gerente comercial Robson Oliveira, 31 anos, outro morador da zona de autossalvamento e integrante da Comissão do Movimento SOS Barragens, também se preocupa com o que considera “falta de transparência” nas informações sobre a barragem e sobre a intervenção feita. “Toda barragem é uma bomba-relógio, a gente sabe. Mas as empresas e as autoridades precisam olhar com mais cuidado pelas vidas e pela natureza, que precisam ser preservadas. Dizem que está seguro hoje. E amanhã? Quem está fiscalizando? Nos sentimos abandonados”, reclama Robson Oliveira.

Transbordamento de outro dique

Em janeiro de 2022, a mesma Vallourec esteve envolvida em outro caso na região de Nova Lima: por causa das fortes chuvas houve o transbordamento do Dique Lisa, da Mina de Pau-Branco, inundando com água barrenta e lama a BR-040, na altura do trevo de Ouro Preto – importante conexão entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Uma família inteira foi soterrada em seu carro – pais, dois filhos e avó -, que estavam de carro na Serra da Moeda, em Brumadinho, a caminho do Aeroporto Internacional de Confins. A família tentou desviar do acidente na estrada e pegou um caminho alternativo, mas acabou sendo soterrada. Os corpos das vítimas foram encontrados dois dias após o transbordamento do dique. O trânsito na rodovia foi interrompido, deixando milhares de pessoas sem poder usar a estrada.

A Vallourec informa que “possui estruturas distintas na Mina Pau Branco: a Pilha Cachoeirinha e o Dique Lisa, em Nova Lima, e a Barragem Santa Bárbara, em Brumadinho/MG, “separados por 21 quilômetros de distância”. Portanto, não existe nenhuma sinergia entre elas.” E que no dia 8 de janeiro deste ano, “durante o período mais intenso de chuvas, quando foram registrados os maiores índices de precipitações dos últimos 56 anos, houve deslizamento de talude da Pilha Cachoeirinha. Esse material caiu dentro do Dique Lisa – estrutura de controle ambiental para a contenção de sedimentos e águas pluviais -, provocando o transbordamento da água com sedimentos, atingindo a BR-040.”

Comunidades próximas da região do trevo de Ouro Preto sentiram o impacto destas chuvas. Como a casa de Seu Elderson Diegues Protzner, 61 anos, morador da localidade de Santa Rita, pertencente ao município de Nova Lima. “É verdade que o Rio das Velhas tem sofrido muito. Mas não sabemos de onde partiu tanta água e lama. São muitas mineradoras na região. Estamos tentando comprovar que havia rejeitos de minério. Foi assustador, foram 40 minutos de uma avalanche de água barrenta que encobriu nosso carro e nossa casa. Deus me salvou”, diz Seu Elderson, integrante da Comissão MAB BACIA do Rio das Velhas. Esta semana, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) protocolou, no Ministério Público Estadual de Minas Gerais, o pedido de abertura de inquérito. Matéria publicada pela Agência Pública mostra que pode haver conexão entre a água e a presença de minerais pesados.

Neste mesmo período, moradores de Piedade do Paraopeba também sofreram com as chuvas. “Nossas casas foram atingidas pelas chuvas. Nosso receio é que há muitas coincidências entre o ocorrido na região de Nova Lima e Paraopeba”, lamenta o morador Robson Oliveira.

Plurale também procurou a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad-MG). Informaram que fazem fiscalizações preventivas nas barragens periodicamente – e que, no caso de Santa Bárbara, em Piedade do Paraopeba, a última foi realizada em novembro de 2021, contando com a participação de representantes dos Bombeiros, da Policia Militar de Meio Ambiente e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). A nota da Semad informa ainda que “apesar dos relatos de alagamento das áreas urbanas a jusante, durante as fortes chuvas de janeiro, a estrutura se comportou conforme as definições de projeto, não sendo relatado qualquer episódio de galgamento.” Ou seja, traduzindo em linguagem mais fácil, estava tudo normal.

A Vallourec brasileira pertence à joint-venture formada pelo grupo francês Vallourec e pelo japonês Nippon Steel & Sumitomo Metal Corporation (NSSMC). A empresa tem operação em vários municípios mineiros, dentre os quais Piedade do Paraopeba, em atividades adquiridas da antiga Mannesmann há muitos anos. Dali extrai minério-de-ferro e administra a Barragem Santa Bárbara.

Audiência pública

Em 24 de fevereiro deste ano foi realizada audiência pública sobre o assunto na Assembleia Legislativa de Minas. A Vallourec afirmou que não faz e não fará deposição de rejeitos nas estruturas. Saiba mais sobre esta audiência pública e detalhes deste caso em recente reportagem completa do jornalista Mateus Parreiras, do Estado de Minas.

Moradores desconfiam que a obra na Barragem Santa Bárbara possa ter sido realizada, na verdade, para alteamento – o que não é permitido. A mineradora desmente categoricamente, frisando que tudo foi feito de acordo com a legislação e os órgãos reguladores e fiscalizadores. “Toda a intervenção, bem como a área de destinação do solo removido, foi feita em atendimento à legislação aplicável e em conformidade com as exigências dos órgãos reguladores e fiscalizadores”, informa a nota da Vallourec.

Moradores temem. “Até parece que querem esconder uma barragem de 36 metros de altura e esta pilha de material gigante. E ninguém sabe ao certo como está o nível de segurança da barragem. É como se Piedade do Paraopeba e sua gente não existissem”, diz mais um morador da área de autossalvamento, Reginaldo de Souza Rosa, integrante da Associação de Moradores de Piedade do Paraopeba, e que participou de audiência pública sobre o assunto em 24 de fevereiro.

O biólogo Gilherme Camponez, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), conhece bem a realidade destas imensas estruturas em Minas Gerais, muitas delas de mineradoras. “A nossa opinião é que não há segurança. O modelo atual estabelece que a própria empresa deve cuidar do padrão de segurança, contratando uma empresa especializada para a certificação. Mas vamos lembrar que as Barragens de Fundão, em 2015, em Mariana, e do Córrego do Feijão, em 2019, em Brumadinho, eram consideradas seguras, de baixo risco. Quem pode confiar?”, diz o representante do MAB.

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Nota da Vallourec enviada à Plurale (na íntegra)

“Primeiramente, é importante esclarecer que a Vallourec possui estruturas distintas na Mina Pau Branco: a Pilha Cachoeirinha e o Dique Lisa, localizados em Nova Lima/MG, e a Barragem Santa Bárbara, em Brumadinho/MG, separados por 21 quilômetros de distância. Portanto, não existe nenhuma sinergia entre elas.

No do dia 8 de janeiro de 2022, durante o período mais intenso de chuvas, quando foram registrados os maiores índices de precipitações dos últimos 56 anos, houve deslizamento de talude da Pilha Cachoeirinha. Esse material caiu dentro do Dique Lisa – estrutura de controle ambiental para a contenção de sedimentos e águas pluviais -, provocando o transbordamento da água com sedimentos, atingindo a BR-040.

Também é importante esclarecer que, mesmo durante as fortes chuvas nos primeiros dias de janeiro, a Barragem Santa Bárbara não apresentou qualquer anomalia, cumprindo normalmente o papel de controle do fluxo da água pluvial.

Em dezembro de 2021, a Vallourec concluiu uma obra de adequação do vertedouro da Barragem Santa Bárbara garantindo, com isso, uma melhor vazão da água e elevação do seu nível de segurança. Para a realização dessa obra, foi necessário reservar uma área para destinação do material oriundo da escavação onde foi construído o vertedouro. Logo, não se trata de uma nova pilha de rejeitos de mineração.

Importante esclarecer que esse material está a 700 metros de distância da Barragem Santa Bárbara. E ainda que se cogitasse, hipoteticamente, a possibilidade de que esse material alcançasse a Barragem Santa Bárbara, pode-se afirmar que ela está dimensionada para suportar um volume superior àquele depositado em decorrência da obra do vertedouro sem, contudo, potencializar risco de transbordamento.

Toda a intervenção, bem como a área de destinação do solo removido, foi feita em atendimento à legislação aplicável e em conformidade com as exigências dos órgãos reguladores e fiscalizadores.

A Vallourec informa que a Barragem Santa Bárbara não está classificada em nenhum nível de emergência conforme estabelece a Agência Nacional de Mineração. Ou seja: isso significa que ela está estável. Sua estabilidade é atestada por consultoria especializada independente e submetida a regular fiscalização pelos órgãos competentes.”

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Nota da Semad/MG enviada à Plurale (na íntegra)

A Barragem de Sedimentos Fazenda Santa Bárbara, de propriedade da empresa Vallourec Mineração Ltda, localizada no município de Brumadinho, enquadra-se nas diretrizes da Lei 23.291/2019 e, por isso, é acompanhada pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) no âmbito do Programa de Gestão de Barragens. Nesse sentido, a estrutura é vistoriada periodicamente por fiscais do Núcleo de Gestão de Barragens Nubar/Feam.

A última fiscalização foi realizada em novembro de 2021, durante a Operação Preventiva Integrada de Fiscalização de Barragens, que contou com a participação de representantes dos bombeiros, da Policia Militar de Meio Ambiente e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Apesar dos relatos de alagamento das áreas urbanas a jusante, durante as fortes chuvas de janeiro, a estrutura se comportou conforme as definições de projeto, não sendo relatado qualquer episódio de galgamento.

A Barragem Santa Bárbara é uma estrutura de acumulação de água utilizada para a prevenção/mitigação dos impactos ambientais decorrentes do eventual carreamento de sedimentos para os cursos d’água situados a jusante. Em 21 de maio de 2021, a empresa comunicou o início de obras emergenciais visando o aumento da segurança da estrutura e o atendimento à NBR 13.028/2017. De acordo com documento protocolado pela empresa, a estrutura possui estabilidade garantida por auditor independente.

A Feam não foi notificada de nenhuma situação anormal na Barragem Santa Bárbara, que operou como as definições de projeto, durante as fortes chuvas em janeiro de 2022, conforme já citado. Após pesquisa no Sistema de Controle de Autos de Infração e Processos Administrativos- CAP, não foram localizados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) autos de infração relacionados à Barragem Santa Bárbara da Empresa Vallourec.

Em 25/02/2021 foram protocolados documentos contendo alterações no projeto inicial da barragem de contenção de sedimentos Santa Bárbara, considerando o art. 12° da Lei Estadual 23.291/2019, o qual veda o alteamento de barragem em cujos estudos de cenário de rupturas seja identificada comunidade na zona de autossalvamento. Assim, a Vallourec alterou o projeto original para adequar à nova Política Estadual de Segurança de Barragens, não sendo, portanto, necessária a realização do alteamento da estrutura, mas sim um novo sistema de extravasão.

Em 21/05/2021 a empresa Vallourec Soluções Tubulares do Brasil S.A, comunicou o início das obras e intervenções emergenciais relacionadas à barragem de contenção de sedimentos Santa Bárbara, localizada em Piedade do Paraopeba, Brumadinho/MG. Destaca-se que a Barragem Santa Bárbara não recebe rejeitos e trata-se de uma estrutura de controle ambiental para contenção de sedimentos.

Em 18/08/2021 a empresa apresentou documentos adicionais necessários para a regularização ambiental da obra emergencial da Pilha de Material Excedente e implantação do Extravasor Superficial da Barragem de Contenção de Sedimentos Santa Bárbara, em atendimento ao Decreto 47.749/2019, Art. 36, § 2º – “O comunicante da intervenção ambiental em caráter emergencial deverá formalizar o processo de regularização ambiental em, no máximo, noventa dias, contados da data da realização da comunicação a que se refere o caput”.

Destaca-se que, por se tratar de uma obra emergencial, não há previsão de apresentação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental.

Por último, em 22/12/2021, foi apresentado comunicado de encerramento da obra do vertedouro.

No final do ano de 2021 a Barragem Santa Bárbara passou por obras de adequação do extravasor, o que fomentou uma série de denúncias correlacionadas a possíveis alteamentos e a construção de uma pilha. Todavia, a Feam desconhece qualquer iniciativa nesse sentido.

Conforme já destacado, em 21 de maio de 2021, a empresa comunicou o início de obras emergenciais visando aumento da segurança da estrutura e o atendimento à NBR 13.028/2017. Destaca-se que, o Decreto 47.749/2021 estabelece que:

“Art. 36. Será admitida a intervenção ambiental nos casos emergenciais, mediante comunicação prévia e formal ao órgão ambiental, ressalvadas as situações dispensadas de autorização.

§1º Consideram-se casos emergenciais o risco iminente de degradação ambiental, especialmente da flora e fauna, bem como da integridade física de pessoas e aqueles que possam comprometer os serviços públicos de abastecimento, saneamento, infraestrutura de transporte e de energia.

§ 2º O comunicante da intervenção ambiental em caráter emergencial deverá formalizar o processo de regularização ambiental em, no máximo, noventa dias, contados da data da realização da comunicação a que se refere o caput.

§ 3º Nos casos em que não for constatado o caráter emergencial da intervenção ou na ausência de formalização do processo para regularização da intervenção ambiental no prazo estabelecido no parágrafo anterior, serão aplicadas as sanções administrativas cabíveis ao responsável e o fato será comunicado ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais – MPMG.”

Diante do exposto, conforme legislação vigente, a execução de obra de caráter emergencial, assim considerada nos termos no Art. 36 do Decreto nº 47.749/2021, deve ser prévia e formalmente comunicada ao órgão ambiental, mas independe de avaliação e aprovação prévias deste órgão para sua execução. Ou seja, cabe à empresa garantir a segurança da estrutura, da biodiversidade e da população a jusante, bem como comprovar ao órgão ambiental, posteriormente, a emergencialidade das intervenções realizadas.

*Sônia Araripe é jornalista e diretora e editora da Plurale

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Plurale - revista e site - é mídia ndependente com 15 anos e foco em sustentabilidade. Dirigida pela jornalista Sônia Araripe, conquistou vários prêmios. Tem colunistas colaboradores, equipe fixa de jornalistas e atua em rede com vários portais parceiros. O portal (www.plurale.com.br) é atualizado diariamente e a revista impressa é trimestral, podendo ser lida em https://www.plurale.com.br/site/revista-digital.php

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