A covid-19 na ilha da desigualdade

Problemas sociais agravam efeitos da pandemia nos municípios de Marajó, quase todos de baixo ou muito baixo índice de desenvolvimento humano

Por Luti Guedes | ODS 11ODS 3 • Publicada em 23 de junho de 2020 - 09:46 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 22:11

Portel, na Ilha de Marajó, vista do rio: baixo índice de desenvolvimento humano e fragilidade na luta contra a covid-19. Foto de Vitória Leona (Lute Sem Fronteiras)

Se você conhece a Ilha do Marajó, provavelmente ouviu falar das belas paisagens e dos passeios com búfalos. É a maior ilha fluviomarítima do mundo, mais extensa do que os estados do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo e, na verdade, atravessada por um conjunto de problemas sociais. Composta por 16 municípios, divide-se administrativamente em duas regiões de integração e segurança social: o Marajó Ocidental e o Marajó Oriental. Nelas, estende-se um abismo de desigualdade.

Mais próximo a Belém, o Marajó Oriental tem seis municípios, incluindo os únicos dois (Soure e Salvaterra) onde a população urbana é maior do que a rural. São também os únicos dois municípios da região cujos índices de desenvolvimento humano não são considerados baixos ou muito baixos, mas medianos. Não por acaso, o Marajó ilustra com clareza o projeto político de vulnerabilização das populações rurais do Brasil profundo.

Segundo o IBGE, em 2019 viviam na ilha 564.199 pessoas, sendo 409.747 na face ocidental e 181.092 na oriental. A maior parte (57,14%) da população marajoara vive em territórios considerados rurais. Dela, 48,52% são pessoas negras que moram em áreas reconhecidas como rurais. Ainda assim, é preciso pontuar que alguns dos centros urbanos do Marajó estão localizados a mais de 10 horas de Belém e a única forma de acesso para a população é por barco ou navio. Da população total, 82% se declaram negros. Você já entendeu: estamos falando não apenas de uma região abandonada, mas de brasileiras e brasileiros a quem a promessa de cidadania e nação falha historicamente.

Crianças ribeirinhas brincando na água, no rio Acuti Pereira, em Portel. Foto de Vitória Leona (Lute Sem Fronteiras)
Crianças ribeirinhas brincando na água, no rio Acuti Pereira, em Portel. Foto de Vitória Leona (Lute Sem Fronteiras)

Quando a pandemia chegou à ilha, levantamento do Observatório do Marajó mostrou que o coronavírus se espalhou mais rápido por lá do que na região metropolitana de Belém, mesmo com a população da capital sendo quatro vezes maior e em adensamento urbano muito superior. Nos primeiros 40 dias, a cada dez que passavam, dobrava o número de pessoas com covid-19 no arquipélago. Na semana de 8 a 15 de junho, houve 1.099 novas confirmações de covid-19 no Marajó.

Os números reforçam a drástica consequência brasileira e global desta pandemia: o aprofundamento das desigualdades sociais e a intensificação das vulnerabilidades históricas. Aprofunda as desigualdades porque mesmo no Marajó o vírus não se espraia de maneira uniforme: a região ocidental, mais rural e mais negra, chegou a registrar o dobro de casos que a oriental. Mais: sete municípios concentram 70% dos casos e dos óbitos de toda a ilha.

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Numa pandemia em que a água é a tecnologia mais eficiente de prevenção e cuidado, Salvaterra e Soure (outra vez) são os únicos dois municípios da região em que mais da metade da população vive em casas com banheiro e água encanada. A elas soma-se Santa Cruz do Arari como as cidades que têm pelo menos 50% das moradias conectadas à rede geral de distribuição de água. Quanto ao esgotamento sanitário, apenas em Cachoeira do Arari e Soure mais de um quarto das pessoas tem acesso.

Não são esses dados novos – são dados históricos da região, que deveriam servir para pautar políticas públicas de prevenção e atendimento. O contrário aconteceu: o Marajó teve a construção de seu hospital de campanha atrasada 18 dias, apesar de 12 dos seus 16 municípios dependerem integralmente do SUS e seis terem no máximo 10 leitos.

Foi-se o tempo em que, no Brasil, confundia-se tragédias com crimes contra a natureza ou a humanidade. Cada morte registrada por coronavírus no Marajó é, antes, provocada pelo projeto político de desenvolvimento que permite a interrupção de vidas humanas em circunstâncias evitáveis. São mortes anunciadas nos programas de governo e nos gabinetes do poder que historicamente se alternam mas que constantemente optam por não se comprometer com as populações negras, ribeirinhas, quilombolas, indígenas, extrativistas e pescadoras.

Como a gente potente que insiste dia após dia em fazer do Marajó o território encantado que, apesar de tudo, ele é.

Luti Guedes

Coordenador do Observatório do Marajó, iniciativa cidadã para fiscalização de dados, indicadores e políticas públicas da região.

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