ODS 1
Mar de liberdade: projeto Aquatrans transforma vidas de pessoas trans no Rio

Iniciativa reúne 160 alunos trans, não-binários e travestis : "a praia é o primeiro local que esse público abandona durante a sua transição”, diz professor

Antes considerado um espaço de exclusão e medo, o mar tornou-se um símbolo de liberdade, superação e autoconhecimento para dezenas de pessoas trans, travestis e não-binárias no Rio de Janeiro. Inspirados pela força transformadora da água, como uma onda que renova e ressignifica, atletas que têm seus corpos invisibilizados no esporte descobriram no projeto Aquatrans uma nova maneira de viver, se conectar e resistir.
“O acesso à praia é o primeiro local em que as pessoas trans e travestis abandonam durante a sua transição. Muitas ficam fora do mar e de outros esportes com medo”, justifica o criador do projeto, o professor Marcelo Silva, 29 anos.
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Morador do Complexo da Maré, na zona norte, ele conta que nadou até a adolescência, mas, por causa de confrontos no local e da situação financeira, largou o esporte. Deu início à sua transição durante a pandemia, em 2020, tendo o mar como um divã para enfrentar períodos de tempestade.
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Veja o que já enviamosA água alivia e ajuda a nossa ansiedade e o nosso humor. É aquele ditado popular que diz que a praia cura. E cura mesmo estar em contato com o sol, com seus amigos, socializar na natureza
Marcelo trocou a faculdade de Psicologia pela de Educação Física e, além de não ter encontrado pessoas trans e NB nos esportes, sofreu preconceito em um dos estágios por onde passou – o que o levou, pela primeira vez, a uma delegacia para denunciar transfobia. “As pessoas não enxergam meu corpo no esporte, muito menos em competições. O mar, ao mesmo tempo que passou uma liberdade depois da pandemia, me marcou de forma que me levou a criar o Aquatrans”, afirma ele, que hoje cursa pós-graduação em Esportes Aquáticos na UFRJ.

Após depressão e tentativa de desistir da profissão e da vida, o professor criou o Aquatrans em março de 2024 como um caminho de justiça.
Nas turmas, a questão de ser trans não é um problema: sabemos que não enfrentaremos transfobia, pois estamos em um ambiente seguro, onde o professor entende e respeita as particularidades de cada pessoa
E de acolhimento. Para quem está de fora, pode parecer detalhe pequeno, mas para homens trans é doloroso – fisica e psicologicamente– esconder os seios e usar uma sunga. Já as travestis encontram no Aquatrans um espaço onde podem usar biquínis ou seus laces sem medo de julgamentos. “Aparentemente, parece que o meu corpo não tem como competir com homens cisgênero. Então eu fico muito preocupado em relação a isso, mas ao mesmo tempo eu quero que a gente nade com pessoas cisgênero, porque isso faz parte da inclusão. Sou contra ter categorias separadas para a gente”, afirma o professor.
Marcelo assegura que nesse quase um ano de projeto conseguiu resgatar a confiança e a socialização dos alunos. Hoje, são 160 pessoas trans, não-binárias e travestis. Em breve, a história do projeto estará nos cinemas. “A água alivia e ajuda a nossa ansiedade e o nosso humor. É aquele ditado popular que diz que a praia cura. E cura mesmo estar em contato com o sol, com seus amigos, socializar na natureza. Tudo isso engloba a nossa saúde e autoestima do nosso corpo.”

Sensação de liberdade
Foi pela saúde e autoestima que a cantora Yara Canta voltou a nadar, agora aos 30 anos. Como Marcelo, ela se afastou das águas na adolescência, quando começou a transição. E desde o seu retorno, já participou da competição Rei e Rainha do Mar, nadando 500 metros na Praia de Copacabana. Superando seus medos, que iam desde não conseguir concluir a prova até sofrer violência embaixo d’água, Yara, com a ajuda de Marcelo, já planeja as próximas competições.
“Participar das aulas traz uma sensação única de liberdade, especialmente porque a praia é um espaço onde expomos muito o nosso corpo. Nas turmas, a questão de ser trans não é um problema: sabemos que não enfrentaremos transfobia, pois estamos em um ambiente seguro, onde o professor entende e respeita as particularidades de cada pessoa”, ela detalha, antes de concluir: “A gente consegue simplesmente só pensar em nadar, sentir a nossa respiração, o movimento dos braços e do corpo como um todo.”
Depois da minha transição, eu me afastei demais da praia, por ficar muito disfórico e perceber olhares e ouvir comentários. Vi no projeto uma oportunidade de vencer todos os medos, inclusive o de nadar
A estudante de História Maya Alves, 21, pratica de natação a artes marciais desde pequena, muito incentivada pela família. Voluntária no Aquatrans atuando na equipe administrativa, conta que o mar sempre foi um território sagrado. “Ele nunca exigiu de mim o que o mundo moderno exige: a raça, o gênero, etc. Me sentia livre para ser, para sentir a cor da minha pele junto ao escuro das águas, para sentir meus músculos, minha respiração, o silêncio.”
Mas, ao passar pela transição de gênero, afirma que o ambiente tornou-se um lugar hostil, inundado de assédio, olhares e risadas. “A todo momento a cisgeneridade vigia, nessa tentativa de dizer que não pertencemos a esse lugar, o que é uma mentira”, afirma Maya.
E resume por que a existência de um projeto voltado para a população trans e travesti é importante para a sociedade como um todo. “O Aquatrans não diz respeito a uma divisão entre pessoas cis ou trans, mas sobre o nosso corpo diante de questões como: quantas pessoas trans vocês veem ao seu lado, quando vão à praia? por que as pessoas cis são a maioria, e não são contestadas sobre isso?”, questiona. “Na minha vida, o projeto tem me feito mais livre, mais segura, com saúde e vitalidade. Sou eternamente grata a isso!”

O acolhimento ao influenciador digital Cleyton Cruz Bitencourt, 29, foi além: pai solo, encontrou no projeto rede de apoio para conseguir cuidar da saúde, mental e física, e dividir as dores e delícias de cuidar da família. “Eles abraçam meus filhos e me ajudam a cuidar deles para que eu continue fazendo parte”, conta.
“Minha relação com o esporte, em geral, é bem difícil, justamente por ser pai solo, e não ter tanto tempo livre. E, depois da minha transição, eu me afastei demais da praia, por ficar muito disfórico e perceber olhares e ouvir comentários. Vi no projeto uma oportunidade de vencer todos os medos, inclusive o de nadar.”
O projeto, hoje com quase 100 alunos, tem três turmas: Anêmona, para os que são iniciantes; Água Viva, para o público intermediário; e os Golfinhos, dos mais avançados. As aulas acontecem aos domingos, entre 8h e 10h, na Praia do Flamengo, altura do Posto 2.
É cobrada uma taxa social entre R$ 20 e R$ 60 para ajudar no material. O projeto precisa de doações de touca, óculos de natação, nadadeira palmar, boia de marcação de mar e prancha de stand up. “Quero muito que o Aquatrans possa ser uma rede, e funcione em outros locais e com outros esportes”, finaliza Marcelo.
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Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.