‘O golpe que devora seus filhos’

“L’execution le 13/03/1858 de Felice Orsini (1819 – 1858) et de Pieri auteurs de l’ attentat du 14 janvier 1858 contre Napoleon III sur la place de la Roquette a Paris” Lithographie de la fin du 19eme siecle. Milan collection privee ©Luisa Ricciarini/Leemage

Pesquisador adapta frase de revolucionário francês que morreu na guilhotina para se referir à situação de Temer

Por Adriana Barsotti | ODS 1 • Publicada em 21 de maio de 2017 - 00:17 • Atualizada em 21 de maio de 2017 - 00:43

“L’execution le 13/03/1858 de Felice Orsini (1819 – 1858) et de Pieri auteurs de l’ attentat du 14 janvier 1858 contre Napoleon III sur la place de la Roquette a Paris” Lithographie de la fin du 19eme siecle. Milan collection privee ©Luisa Ricciarini/Leemage
Litografia 'A execução', de Felice Orsini e Pieri/ Reprodução: Luisa Ricciarini/Leemage
Litografia ‘A execução’, de Felice Orsini e Pieri/ Reprodução: Luisa Ricciarini/Leemage

Autor de três livros sobre a ditadura militar – “Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil” (Perspectiva, 2002), “Jango e o golpe de 1964 na caricatura” (Zahar, 2006) e “As universidades e o regime militar” (Zahar, 2014) – o professor Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escreveu um artigo premonitório meses antes de a ex-presidente Dilma Rousseff sofrer impeachment. Intitulado“O Brasil à beira do abismo, de novo”, o pesquisador comparava o cenário da época com o imediatamente anterior ao golpe militar de 1964. No texto, ele alertava: “As lideranças de oposição correm o risco de perder o controle do processo e de serem tragadas pelas mesmas investigações de corrupção que fomentaram. É mais fácil provocar a onda do que cavalgá-la”. Procurado pelo #Colabora, ele respondeu a algumas perguntas elaboradas a partir de suas próprias provocações feitas no texto de 2016.

A melhor comparação para pensar 2016 é o golpe de 1964, inclusive porque muitos atores políticos atuais recuperam argumentos daquela época para inspirar-se

Quando teria começado a crise atual? O senhor enxerga relações com as manifestações de 2013? Não teríamos saído dela desde então? 

O primeiro grande desafio para as gestões petistas surgiu com a crise econômica mundial de 2008. Antes disso, vigorou o arranjo econômico desenvolvimentista do governo Lula, que permitiu grande crescimento econômico, aumentos nos lucros das empresas, aumentos nos salários, programas sociais generosos etc. Nos últimos anos de sua gestão, o governo Lula conseguiu responder bem à crise mundial, mas o governo Rousseff não teve a mesma felicidade. A queda nos lucros das empresas a partir de 2011-2012 foi minando a confiança do empresariado e retirando o entusiasmo anterior. Mas acho que o ponto principal da crise que levou ao impeachment é político. A crise econômica contribuiu muito, mas as razões imediatas para a queda de Dilma foram políticas. Nesse sentido, 2013 foi importante, pois mostrou um descontentamento político difuso na sociedade, que não era somente contra o governo. De qualquer modo, a oposição soube capitalizar esse desconforto e quase ganhou as eleições de 2014. A disputa de 2014 criou uma polarização política muito forte, aguçada pelas informações “vazadas” pela Lava Jato no final da campanha eleitoral, que foram evidentemente manipuladas para atrapalhar a candidatura de Dilma. As mobilizações de direita, as denúncias de corrupção e a pequena margem de diferença no resultado eleitoral impulsionaram a campanha pelo impeachment. O forte sentimento antipetista e anticorrupção que inundou as classes médias e superior criou ambiente favorável para a derrubada da presidente recém-eleita. Diga-se que o governo Dilma contribuiu também para complicar as coisas, pois tomou muitas decisões infelizes. Mas a oposição foi feroz e sem escrúpulos, piorando a situação econômica para minar ainda mais as chances do governo. Para atrair apoio, o golpe do impeachment foi embalado em algumas promessas: tirar a esquerda do poder; estabelecer um governo mais estável; combater a corrupção; retirar o país da crise econômica. Como sabemos, a única promessa cumprida foi a primeira. Do ponto de vista econômico, o novo governo entregou na verdade o aprofundamento da recessão. E a crise política também se agravou.

Quais seriam os paralelos de crise desta dimensão na História do país?  O golpe de 64? A crise gerada pelo suicídio de Vargas? O impeachment de Collor?

Penso que esta é uma das piores. O exercício comparativo é difícil porque há muitas variáveis a considerar, especialmente nos planos político e econômico. Mas hoje o quadro tem aspectos mais graves, pois há uma combinação aguda entre crise política e econômica, as duas imbricadas profundamente, e sem perspectivas claras para saída do impasse e o retorno a algum tipo de estabilidade. Em 1954, o desfecho foi trágico e dramático pelo suicídio de Vargas, mas a situação econômica era estável e logo veio o governo JK, com o surto de crescimento econômico com estabilidade política que foi a sua marca (apesar de alguns percalços com a direita militar). Em 1992, a crise econômica era grave, por causa da hiperinflação, mas não vivíamos uma recessão aguda. E o impeachment de Collor foi vivido como uma vitória das instituições republicanas e o retorno da esperança no futuro. A melhor comparação para pensar 2016 é o golpe de 1964, inclusive porque muitos atores políticos atuais recuperam argumentos daquela época para inspirar-se. Não vou repetir análises que foram publicadas no texto que suscitou esta entrevista (O Brasil à beira do abismo, de novo). Mas vou acrescentar um ponto: em 1964, muitos grupos apoiaram o golpe e havia diferentes perspectivas, o único ponto comum era o consenso anticomunista; mas existia um núcleo de poder coeso em torno dos militares, que foram a espinha dorsal do novo regime político (por isso, a melhor denominação é ditadura militar) e o mantiveram de pé por muitos anos. No consórcio golpista atual, falta ossatura semelhante e o seu projeto de poder é mais frágil, como está claro agora. Isso aumenta as nossas incertezas quanto ao futuro, mas pode aumentar também as esperanças.

Em pouco mais de um ano, corremos o risco de termos dois presidentes afastados. Isso demonstraria a fragilidade de nossa democracia ou, pelo contrário, o fortalecimento das instituições?

Eu vejo como demonstração de fragilidade, devido à maneira como Dilma Rousseff foi retirada do poder. O impeachment foi aprovado sem provas de crime e sustentado por uma enorme pressão da grande mídia, que manipulou informações e ajudou a criar um clima exasperado de “fora Dilma”. Os crimes atribuídos a Dilma não justificariam a remoção de um presidente, muito menos no Brasil, já que eram práticas correntes (refiro-me às pedaladas e outras manobras fiscais) entre os governantes. Então, a queda de Dilma mostrou um grande desapreço pelas instituições, e não o contrário. Tanto mais grave porque parte majoritária dos políticos que apoiaram o impeachment visavam não o combate à corrupção, mas o oposto disso: achavam que Dilma não impediria o aprofundamento dos trabalhos de investigação judicial; então, a queda dela era também para colocar no poder um político tarimbado, que “estancaria a sangria”, ou seja, daria um jeito de abafar as investigações e circunscrever as punições e prejuízos somente para o PT. O impeachment representou um grande golpe nas instituições, um evento que desmoralizou a República e retirou a legitimidade do sistema. Some-se a isso o desprestígio dos partidos e dos principais líderes políticos e temos um quadro desolador. Só não estamos ainda em uma ditadura efetiva porque os militares perderam o apetite pelo poder, felizmente, pois não seria difícil para a força armada assumir o controle. Mudar esse quadro será responsabilidade nossa mesmo, da “sociedade civil” e dos cidadãos, que temos de encontrar formas de (re)construir instituições políticas democráticas. Respondendo à parte final da pergunta, a possível queda de Temer será um desdobramento do impeachment, fruto da mesma instabilidade criada pela crise. A saída de Temer também não significa que as instituições estão fortes, mas pelo menos pode abrir caminho para uma solução mais democrática, de preferência com eleições gerais (incluindo os parlamentares) diretas.

O impeachment representou um grande golpe nas instituições, um evento que desmoralizou a República e retirou a legitimidade do sistema. Some-se a isso o desprestígio dos partidos e dos principais líderes políticos e temos um quadro desolador. Só não estamos ainda em uma ditadura efetiva porque os militares perderam o apetite pelo poder

Em seu artigo “O Brasil à beira do abismo, de novo”, o senhor afirmou que um eventual impeachment (de Dilma, à época) poderia ser “um convite para demandas radicais de virada do jogo” caso não fosse devidamente respaldado pela maioria. Quais os riscos que corremos hoje?

Para responder melhor à sua pergunta vou reproduzir todo o parágrafo que começa com o trecho que você destacou:

“O caminho político afinal vitorioso deve ser considerado legítimo por ampla maioria, de outro modo vai ser um convite para demandas radicais de virada do jogo. Deve-se ter em mente que uma quebra autoritária significa uma perda e um risco para todos. Pode-se remover o adversário momentaneamente, mas, a instabilidade a ser criada significa um risco muito grande de o grupo vencedor não conseguir manter-se no poder. Pode ser um jogo em que todos perdem no final, com não apenas um partido destruído, mas todos, e com o poder Judiciário igualmente desmoralizado frente à sociedade. Além de eventual saída autoritária clássica, outra possibilidade nefasta é que a destruição das instituições deixe o caminho aberto a todo tipo de aventureiro e oportunista. ”

Infelizmente, as possibilidades antevistas no texto, que foi escrito no final de março de 2016, se concretizaram. Aprovou-se um impeachment ilegítimo com base em denúncias manipuladas, em abusos do sistema legal e na politização de uma parte do Judiciário e da polícia. O modo como o impeachment foi realizado significou uma quebra da ordem, liberando forças e ambições de poder que são difíceis de controlar depois. Concordar com a derrubada de uma presidente recém-eleita com base em argumentos frágeis significa romper os limites institucionais. Depois de uma ação desse tipo, os agentes políticos podem achar-se no direito de fazer qualquer coisa. Desde o início, havia um perigo grande para os líderes do impeachment: usaram argumentos que poderiam ser facilmente voltados contra eles, a corrupção, claro. Insuflaram a opinião pública e incentivaram jovens procuradores e juízes que se acham capazes de limpar os pecados do mundo, sem considerar o risco de que o processo saísse do seu controle. A competição pelo poder, a disputa por espaços burocráticos e por prestígio junto à mídia ficou ainda mais aguçada, com policiais, juízes e promotores provocando crises sucessivas. Eles percebem espaço para fazer isso por causa do sucesso do impeachment e porque o governo daí resultante não inspira respeito nem temor.

Insuflaram a opinião pública e incentivaram jovens procuradores e juízes que se acham capazes de limpar os pecados do mundo, sem considerar o risco de que o processo saísse do seu controle

A quebra da ordem política sempre significa a abertura de um período de incertezas, em que os novos detentores do poder deverão se esforçar para criar um regime estável. Se não conseguem isso, a instabilidade se aprofunda e a crise contínua pode vir a atingi-los. Nesse caso, vem à mente uma frase clássica, que vou alterar para aplicar, com sarcasmo, à situação que vivemos: o golpe devora seus filhos. A frase original é “a Revolução, como Saturno, devorará seus filhos” e foi dita por um revolucionário francês que terminou na guilhotina. É um impropério mencionar os eventos de 1789 para falar dos nossos golpistas, mas, para além do impulso sarcástico, é interessante fazê-lo para lembrar dos riscos que correm os promotores de mudanças políticas abruptas. A instabilidade que provocam pode criar um quadro de alta imprevisibilidade e risco. O golpe já devorou alguns golpistas e, no momento, Temer está com o pescoço na guilhotina. Não conseguiu entregar a estabilidade prometida (política ou econômica) e parte dos seus apoiadores querem derrubá-lo, o que está causando uma fissura séria entre os promotores do impeachment. Significativamente, os mesmos recursos e manobras que derrubaram Dilma são usados agora contra Temer, embora com mais justeza porque no seu caso há provas cabais de atos ilícitos.

Dá para imaginar que alguns agentes do impeachment se arrependeram amargamente. Teria sido melhor deixar Dilma terminar seu mandato, ou buscar algum tipo de pacto que não significasse a quebra do respeito às instituições. Falo do ponto de vista de interesses maiores da República e dos cidadãos. Para os golpistas, que não têm esse tipo de preocupação, ainda assim teria sido melhor deixar Dilma governar, pois a fragilidade do seu governo abriria as portas para uma vitória da oposição em 2018. A oposição antipetista foi afoita, gulosa e cínica. Com isso, cavou um enorme abismo em que caímos todos. Mesmo da ótica da luta contra a corrupção é muito questionável que a ruptura do impeachment tenha sido um ganho. Poderiam ter sido alcançados bons resultados sem abalos tão grandes. O pior é que se tirou do poder uma líder preocupada em reduzir a corrupção (vide a demissão de diretores da Petrobras) para entregá-lo a … Michel Temer e sua turma. Essa troca de presidentes, que foi justificada em nome do combate à corrupção, dá à nossa situação ares ridículos e trágicos ao mesmo tempo.

Então concretamente corremos riscos hoje? Quais serão os reflexos para o país?

Eles são muitos. Por exemplo, a virtual destruição do sistema político e das suas lideranças e partidos. Os poderes Executivo e Legislativo estão em frangalhos, mas o Judiciário está bastante arranhado também, correndo o risco de afundar junto com o resto. Eu estou entre os que discordam do liberalismo econômico e se opõem às tão decantadas reformas propostas pelo governo Temer. Porém, acho mais grave a crise política e institucional, pois, sobretudo nas condições do Brasil, precisamos de governos estáveis e respeitados, sem o que a situação econômica piora e perdemos todos. Não dá para contar que a economia vai funcionar independentemente da situação política. Outro fator muito preocupante é a situação social, milhões de pessoas estão sofrendo com o desemprego (e vai piorar), o que deve aumentar a tensão social e a violência.

Mesmo da ótica da luta contra a corrupção é muito questionável que a ruptura do impeachment tenha sido um ganho. Poderiam ter sido alcançados bons resultados sem abalos tão grandes. O pior é que se tirou do poder uma líder preocupada em reduzir a corrupção (vide a demissão de diretores da Petrobras) para entregá-lo a … Michel Temer e sua turma

Em seu artigo, o senhor afirmou que está “virando uma tradição brasileira usar discursos anticorrupção para desestabilizar e retirar do poder um governo indesejável (para certos grupos, claro), sem que os problemas estruturais que geram a corrupção sistêmica sejam enfrentados”. Enxerga uma saída para esse problema? Ou esse discurso reforça o protagonismo do Judiciário?

Existe uma manipulação evidente do tema da corrupção no Brasil. Foi o argumento principal nas mobilizações que levaram à queda dos governos Vargas, Collor e Rousseff, e contribuiu muito para o golpe de 1964 (o anticomunismo foi a justificativa mais forte do golpe militar, o tema do expurgo à corrupção tornou-se mais marcante após a vitória golpista e serviu como estratégia de legitimação da ditadura). É claro que existe corrupção e ela deve ser investigada e punida. O problema é o exagero de pensar que se trata do maior problema nacional e que justificaria uma desestabilização das instituições. Há várias expectativas ingênuas envolvidas nessa questão: achar que o Brasil é mais corrupto do que os outros países; pensar que é possível eliminar a corrupção; e o pior deles, acreditar que o fim da corrupção seria a salvação nacional. Nota-se, além da ingenuidade de muitos, o oportunismo de outros tantos que exploram os primeiros. Os campeões da causa anticorrupção podem ser o contrário do que apregoam, como ficou óbvio agora até para os cegos. Fazer uma campanha anticorrupção para entregar o poder a Michel Temer e seu grupo, evidentemente, é de um cinismo à toda prova. Constrangedor o falso ar de surpresa de setores da grande mídia denunciando o atual presidente por corrupção, como se tivessem descoberto isso agora. E irônico ver outros setores da mídia, ainda comprometidos com Temer, denunciarem a manipulação de delações para provocar a queda do atual presidente (sendo que os mesmos recursos pareceram-lhes legítimos para derrubar Dilma). Tomara que os cidadãos mais ingênuos tenham aprendido alguma coisa com esse episódio. Não é o caso de minimizar o problema da corrupção, que é grave. A circulação fácil de dinheiro do mundo empresarial para os políticos estava desnaturando o sistema representativo, afastando lideranças autênticas e premiando os políticos desonestos. Toda essa crise pode ter o efeito positivo de melhorar a qualidade da representação política, se é que vamos conseguir manter o sistema político representativo ao fim dessa tragédia. O controle da corrupção deve ser feito não apenas pelo Judiciário e pela polícia, mas pela vigilância dos cidadãos. O Judiciário sai dessa crise menor do que entrou, já que suas entranhas foram também expostas. Os juízes se imaginam mais puros do que o resto, mas fazem manobras imorais para aumentar os seus vencimentos, o que é inaceitável para quem se julga capaz de limpar o país da corrupção. Isso para não falar de outras denúncias que têm surgido como venda de decisões judiciais e tráfico de influência.

O golpe já devorou alguns golpistas e, no momento, Temer está com o pescoço na guilhotina. Não conseguiu entregar a estabilidade prometida (política ou econômica) e parte dos seus apoiadores querem derrubá-lo

Devolvo  a pergunta feita em seu artigo de março de 2016: “Estamos testemunhando o fim da tradição conciliatória na política brasileira? Acabou-se a acomodação?”

Às vezes, tem-se a sensação que a resposta é positiva, quando vemos o aumento no índice de participação política e a virulência do debate político subindo de tom. Nos últimos meses, ocorreu um notável processo de politização e virtual polarização da sociedade na linha esquerda/direita, com milhões de cidadãos abraçando opiniões fortes e engajando-se. Positivas, igualmente, são as iniciativas recentes para organização de grupos visando debater alternativas para a saída da crise e para recomposição do sistema político e da economia. O sucesso da última greve é outro alento importante, a mostrar que milhões estão reagindo contra o esbulho de direitos sociais praticados pelo governo Temer. Também favorece a sensação de mudança o fato de que algumas oportunidades de acordo político, conformes à tradição da acomodação, não foram aproveitadas pelos principais agentes em conflito. No entanto, em outros momentos, tem-se a impressão que os velhos padrões políticos continuam valendo. Não é possível saber se as tradições serão efetivamente superadas, já que a maioria da população continua a não se envolver nos embates políticos, mantêm-se à margem, excluída. Embora grupos numerosos estejam em ação, à esquerda e à direita, milhões de cidadãos continuam fora do cenário. Além disso, em muitos casos, a politização parece ser superficial, efêmera, tal como vimos em outros momentos históricos. Muitas pessoas cansam-se rapidamente dos embates políticos e passam a acompanhar as coisas pela TV ou nas redes sociais. Outro ponto relevante é que a possibilidade de novas acomodações está sempre no ar, pairando, com muitos agentes políticos apostando no acordo “pelo alto” como forma de superar a crise. E a acomodação persiste em outras esferas, por exemplo, nos casos de alguns quadros técnicos ou acadêmicos que se acomodam com o governo egresso do golpe, tal como ocorreu nas ditaduras dos anos 1930 e 1960.

A disposição para acordos é negativa? 

Nem sempre. A acomodação exerceu uma força negativa pois, historicamente, ajudou a impedir transformações sociais e a manter a exclusão política. Entretanto, olhando por outro prisma, em alguns momentos ela abriu caminho a processos de mudanças sociais lentas. Quero dizer com isso que a propensão a acordos pode ser útil e positiva, desde que sejam negociações em bases programáticas e não fisiológicas. Aliás, para sair da crise política em algum momento vai ser necessário um pacto, pelo menos para restabelecer as regras do jogo e permitir que as disputas sejam feitas em terreno seguro. Acho que vamos chegar a um ponto, se é que já não estamos nele, em que as perdas e os riscos para todos são tão grandes que é preferível ter um governo legítimo, com capacidade de governar, mesmo que pertença ao campo adversário. Para sair da crise, precisamos de um governo legítimo que respeite o jogo democrático, com a garantia de que os diferentes projetos políticos terão espaço para disputar o apoio da maioria. E a garantia também que os derrotados de hoje poderão disputar o poder na próxima eleição. Enfim, acho que precisamos reconstruir um pacto democrático e pluralista, aceito ao menos pela maioria, senão será difícil sair do impasse atual. E o caminho passa pelas eleições diretas.

Adriana Barsotti

É jornalista com experiência nas redações de O Estado de S.Paulo, IstoÉ e O Globo, onde ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo com a série de reportagens “A história secreta da Guerrilha do Araguaia”. Pelo #Colabora, foi vencedora do Prêmio Vladimir Herzog, em 2019, na categoria multimídia, com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", em um pool jornalístico com a Amazônia Real e a Ponte Jornalismo. Professora Adjunta do Instituto de Arte e Comunicação Social (Iacs), na Universidade Federal Fluminense (UFF), é autora dos livros “Jornalista em mutação: do cão de guarda ao mobilizador de audiência” e "Uma história da primeira página: do grito no papel ao silêncio no jornalismo em rede". É colaboradora no #Colabora e acredita (muito!) no futuro da profissão.

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