Maconha no Uruguai: desafios do uso medicinal

Cannabis medicinal: Foto: Voisin/Phanie/ AFP

Primeiro do mundo a legalizar o cultivo e o uso da cannabis, o país ainda não produz remédios à base da planta

Por Júlio Lubianco | ODS 12ODS 3 • Publicada em 3 de janeiro de 2018 - 09:32 • Atualizada em 4 de janeiro de 2018 - 16:21

Cannabis medicinal: Foto: Voisin/Phanie/ AFP
Cannabis medicinal: especialistas alertam para os riscos do uso sem recomendação médica. Foto: Voisin/Phanie/ AFP

A educadora uruguaia Isabel Haddad, de 51 anos, começou a tomar algumas gotas de um extrato de maconha para aliviar os fortes enjoos que sente depois das sessões de quimioterapia. Nunca fumou maconha, mas decidiu experimentar o extrato depois de convencida por um conhecido. “Tomei há três dias, mas não senti nada diferente”, disse ela, depois da consulta com uma médica durante a ExpoCannabis Uruguai, realizada em Montevidéu de 8 a 10 de dezembro. Além de reunir consumidores e empresas, o evento contou também com um consultório em que três médicos se revezavam prestando esclarecimentos aos pacientes sobre o uso da maconha para diversos problemas de saúde. “Os remédios produzidos a base de cannabis podem vir em diferentes formas, como comprimidos e cremes, e cada um tem a uma aplicação, de acordo com a enfermidade e o paciente”, explica a médica Raquel Peyraube, presidente da Sociedade Uruguaia de Endocannabinologia.

Raquel é uma das principais especialistas do país no uso de cannabis medicinal, e milita no combate à desinformação sobre o assunto, fruto dos anos de proibição e do preconceito que impediram a comunidade científica de explorar as propriedades medicinais da planta, sobretudo do canabidiol (CBD) e do tetraidrocanabinol (THC), os principais princípios ativos da maconha.

É um ato de irresponsabilidade política não facilitar o acesso a uma droga de boa qualidade, com orientação médica, a quem precisa

A legalização no Uruguai abriu as portas para os estudos, mas também para o uso sem acompanhamento médico, o que, segundo Raquel, pode representar um risco para os pacientes. Ela dá como exemplo os óleos de cannabis. “As pessoas acreditam que todos são iguais, mas não sabem de que tipo de cannabis são feitos, qual a concentração, quais os canabinoides presentes”, diz a médica, que há mais de 30 anos lida com pacientes usuários de drogas e analisa seus efeitos em várias doenças. “Os azeites e óleos são invenções do mercado, não são medicamentos”.

Raquel Peyraube, na ExpoCannabis Uruguai: combate à desinformação. Foto: Divulgação

Pesquisa do Monitor Cannabis, projeto da Universidade da República do Uruguai, revela que 57,8% das pessoas que usaram algum tipo de derivado da maconha com fim medicinal não tiveram qualquer acompanhamento médico. A maior parte por receio de ser repreendida pelos doutores, já que muitos rejeitam o uso  cannabis.  “É um ato de irresponsabilidade política não facilitar o acesso a uma droga de boa qualidade, com orientação médica, a quem precisa. Porque se não for assim, as pessoas, em desespero, vão buscar algo que as aliviem, ficando vulneráveis”, desabafa Raquel Peyraube.

Os médicos que estudam os efeitos da cannabis alertam para o fato de que podem haver contraindicações para pacientes com problemas psíquicos e circulatórios

Um dos brasileiros participantes da ExpoCannabis Uruguai  foi o advogado Madson Delgado, que milita na ONG alagoana Agência Nacional Cannabis Medicinal, criada para facilitar o acesso a produtos canábicos de qualidade e difundir informações sobre o uso medicinal da maconha. A organização fornece extrato de cannabis para 150 pacientes que sofrem de epilepsia, mal de Alzheimer e Parkinson, em Maceió. Delgado foi ao encontro no Uruguai em busca de informações que possam dar mais segurança ao processo de produção do extrato, hoje feito de forma informal por químicos e biólogos que atuam na entidade. “Nosso maior receio é o efeito que pode causar nas pessoas, por isso buscamos produzir algo mais padronizado. Os médicos que estudam os efeitos da cannabis alertam que podem haver contraindicações para pacientes com problemas psíquicos e circulatórios. Queremos dar mais confiabilidade ao extrato”, explica o advogado, que representa a ONG na Justiça, numa ação pelo direito de plantar maconha para fins medicinais no Brasil. “Hoje, não é proibido transportar os derivados, mas o plantio sim, e isso gera insegurança para as pessoas envolvidas”.

A verdade é que legalizamos com uma enorme culpa. Temos a melhor lei, ótimos pesquisadores, gente interessada, mas esbarramos numa postura anticientífica. A maconha deveria estar na ordem do dia das universidades uruguaias

Pesquisas recentes, conduzidas nos principais centros médicos do mundo, indicam aplicações do CBD e do THC para tratar dor crônica, náuseas e enjoos causados por tratamento quimioterápico e esclerose múltipla. Há também evidências de benefícios para pacientes de epilepsia. Faltam, no entanto, mais pesquisas clínicas e produtos de qualidade farmacêutica. O engenheiro agrônomo Eduardo Blasina é sócio da Simbiosys, uma das duas empresas que venceram a licitação do governo para plantar maconha no Uruguai. “Quando eu defendia a legalização da maconha, nos anos 1980, não tinha ideia do caráter medicinal da planta. O resultado da lei, hoje, é fantástico para quem lutava pela liberdade, mas, para quem tem um filho com epilepsia, não mudou muito”.

Apesar da legislação avançada, o Uruguai ainda não produz nenhum remédio feito à base de cannabis, restando a quem precisa recorrer à importação, tal como acontece no Brasil. “Passam os meses e não avançamos. A verdade é que legalizamos com uma enorme culpa. Temos a melhor lei, ótimos pesquisadores, gente interessada, mas esbarramos numa postura anticientífica. A maconha deveria estar na ordem do dia das universidades uruguaias”, lamenta Blasina, apontando para um certo preconceito da comunidade científica em relação à maconha.

Plantação de maconha para fins medicinais, no Chile: benefícios para a saúde são alvos de pesquisas nos principais centros médicos do mundo. Foto: Christian Miranda/AFP

A outra empresa autorizada a plantar maconha pelo governo uruguaio é a International Cannabis Corporation (ICC). A produção para fins recreativos é limitada, hoje, a duas toneladas por ano. Para objetivos medicinais, no entanto, não há restrições. É esse o foco da empresa, uma multinacional com sede no Canadá e ações negociadas na bolsa de Toronto. A ICC estima que o mercado farmacêutico da maconha venha a representar 85% das receitas da empresa, nos próximos anos, contra 15% do produto recreativo. “O Uruguai é um país com terra fértil, clima ameno, sem risco de intempéries. Produzir aqui é muito mais barato do que no Canadá (país que permite apenas o cultivo para fins medicinais), onde toda a produção precisa ser feita em estufas, devido ao clima extremamente frio” explica Alejandro Antalich, CEO da ICC.

O barateamento do custo da produção é algo que pode beneficiar muito a quem precisa do medicamento, especialmente os brasileiros. Embora a lei brasileira proíba a produção e venda de derivados de maconha, a Anvisa concede autorizações especiais a indivíduos que comprovem necessidades médicas. Mas o preço é alto: um dos óleos mais  usados, importado dos EUA, o Charlotte’s Web, custa US$ 270, um frasco de 100ml, com 5.000 mg de CBD. Antalich estima que, com a produção uruguaia, um produto semelhante custará US$ 50. A empresa está construindo uma fábrica em Montevidéu, a ser inaugurada em abril de 2018. Será a primeira instalação na América do Sul a produzir em escala industrial derivados de maconha. “O Uruguai é um país com um mercado muito pequeno. Nosso foco é a exportação e acreditamos que a demanda internacional crescerá na medida em que os países regulem a maconha medicinal e outros usos. O Uruguai tem a vantagem de ser o país com a legislação mais avançada nesse aspecto”, diz o presidente da ICC.

Mas se o país não conseguir aproveitar a sua vantagem atual, corre o risco de ficar para trás, até mesmo dos vizinhos: a Argentina, onde a cannabis medicinal foi legalizada recentemente, e o Brasil, onde a Anvisa caminha nesse sentido. Sediada em Campinas, a Entourage Phytolab pretende desenvolver o primeiro medicamento brasileiro à base de cannabis. “Hoje, nosso grande desafio é o acesso à matéria-prima. Não se pode ainda plantar legalmente no Brasil. Trazemos cannabis granulada da canadense Bredocan. Para pesquisa, vale a pena, mas para produzir um medicamento, ficaria inviável”, afirma o farmacêutico Fabrício Pamplona, diretor científico da empresa. Pamplona é otimista em relação aos trâmites da legislação brasileira sobre o assunto. “Acreditamos que a Anvisa vá liberar o plantio para fins medicinais já em 2018. Com isso, poderemos ter o primeiro remédio nas prateleiras já em 2020”.

Fabricio Pamplona, diretor científico da Entourage Phytolab.  “Acreditamos que a Anvisa vá liberar o plantio para fins medicinais já em 2018″. Foto: Divulgação

A produção de medicamentos que sigam todas as regras farmacêuticas e que sejam validados por pesquisas clínicas é o que falta para a adoção ampla da cannabis e de seus derivados pela comunidade médica. Os produtos atuais, chamados de extratos e óleos, são suplementos alimentares, não remédios. “Podem haver reações alérgicas, já que um lote é diferente do outro”, alerta o empresário suíço Stefan Meyer, CEO da Phytoplant Research, empresa espanhola que desde 2012 pesquisa os usos medicinais da maconha. “Cada planta se cria em condições diferentes, de sol, solo, chuva… Um pouco como o vinho, o sabor da safra de 2013 é diferente do da 2017”, afirma.

A Phytoplant atua principalmente na purificação dos princípios ativos da maconha. Se determinada planta tem, por exemplo, 9% de CBD e 3% de THC, no laboratório as moléculas são separadas e concentradas a 99%. Ou seja, o produto final é resultado de apenas uma substância e não das várias que compõem a planta na natureza, que é o que acontece com os óleos produzidos atualmente. “Quando se padroniza a nível farmacêutico, acaba o problema dos lotes diferentes, e aí sim as pesquisas clínicas fazem sentido. Não podemos mudar as regras dos medicamentos. Temos de usá-las para validar os canabioides, até para que os médicos se sintam seguros para receitá-los” defende Meyer.

Este repórter aproveitou o consultório clínico da Expocannabis para se consultar. Será que produtos à base de maconha poderiam me ajudar a dormir melhor? Expliquei à médica Julia Galzerano: “Durmo pouco e mal, desperto muitas vezes à noite. Acordo cedo demais, muito antes do despertador, e me sinto cansado ao longo do dia”. A doutora Galzerano é especialista em dependência química e medicina canábica. “A cannabis poderia ajudá-lo com a insônia, mas primeiro é preciso investigar as causas. Cannabis é um remédio, antes de começar a usá-lo é preciso saber o que faz bem e o que faz mal ao seu descanso”.

Há muitos anos, ela começou a perceber os benefícios da maconha para pacientes com insônia e falta de apetite. Mais tarde, passou a investigar o uso da cannabis para redução de danos em viciados em cocaína e crack, com resultados positivos. Desde 2013, quando aconteceu a legalização no Uruguai, Julia faz parte de um grupo de médicos que estuda o assunto e organizou o primeiro curso no país sobre medicina canábica. “Não temos produção nacional, nem um mercado regulado de uso medicinal da maconha. Se procurar por aí, encontrará muitos produtos não regulados”.

Um dos principais equívocos dos pacientes que ela atende é acreditar que a maconha é uma planta que serve para qualquer enfermidade. Outro é interromper um tratamento com remédios tradicionais,  para substituí-los pela cannabis, sem orientação médica. “Muitos médicos e pacientes ainda não se conscientizaram de que a cannabis é um medicamento e que precisa ser tratada dessa forma. Ela interage com a química do corpo e isso não acontece da mesma forma em todo mundo. Cada pessoa e cada problema têm uma indicação diferente”.

Júlio Lubianco

É jornalista formado pela UFF. Começou a carreira em 2003, no caderno Cidade do Jornal do Brasil. Foi repórter, chefe de reportagem e gerente de jornalismo na CBN. Fez mestrado em mídia e comunicação na London School of Economics (LSE), com bolsa do programa Jornalistas de Visão. É professor do curso de jornalismo da PUC-Rio e integra o time de mentores do Brio Hunter. Venceu os prêmios Imprensa Embratel, em 2007, o Alexandre Adler, em 2008, e duas vezes o Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, em 2009 e 2014.

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