Musk x Moraes: soberania nacional, liberdade de expressão e estado de direito

Discussão no STF vai muito além de rixa pessoal e pode ter grandes consequências regulatórias para o Brasil e potencialmente para outros países

Por The Conversation | ArtigoODS 16 • Publicada em 12 de setembro de 2024 - 09:33 • Atualizada em 13 de setembro de 2024 - 14:09

Manifestante leva cartaz em apoio a Musk e contra Moraes em ato na Paulista: debate envolve soberania nacional, liberdade de expressão e estado de direito (Foto: Fabio Vieira /FotoRua /NurPhoto / AFP)

(Yasmin Curzi de Mendonça*) – É fácil se distrair com as farpas, os golpes e a fanfarronice da disputa pública e contínua entre o homem mais rico do mundo e um magistrado feroz na mais alta corte do Brasil. Elon Musk, o bilionário dono da X, posta regularmente sobre seu desprezo pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal  — um homem que Musk rotulou de “ditador” e “Darth Vader do Brasil”. O empresário faz esses comentários em uma plataforma de mídia social que Moraes baniu no país mais populoso da América Latina como parte de uma longa campanha contra a desinformação.

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Mas, como especialista em direito digital brasileiro, vejo isso como mais do que apenas uma amarga disputa pessoal. A batalha legal de X com a Suprema Corte do Brasil levanta questões importantes sobre a regulamentação da plataforma e como combater a desinformação ao mesmo tempo em que protege a liberdade de expressão. E, embora o foco esteja no Brasil e em Musk, é um debate que ecoa pelo mundo.

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As coisas chegaram ao auge entre Musk e Moraes agora em agosto de 2024, mas a batalha levou anos para acontecer. Em 2014, o Brasil aprovou o “Marco Civil da Internet” ou “Declaração de Direitos da Internet”, como é comumente conhecido. Com amplo apoio pluripartidário, essa estrutura para regulamentação da Internet delineou princípios para proteger a privacidade do usuário e a liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que criava penalidades para plataformas que violassem as regras.

A nova legislação incluiu um sistema de “notificação judicial e remoção” sob o qual as plataformas da Internet são responsabilizadas por conteúdos ofensivos (caluniosos ou falsos) produzidos por usuários somente se não removerem o conteúdo após receber uma ordem judicial específica.

A abordagem foi projetada para encontrar um equilíbrio entre proteger a liberdade de expressão e garantir que conteúdo ilegal e prejudicial possa ser removido. Ela impede que plataformas de mídia social, aplicativos de mensagens e fóruns online sejam responsabilizados automaticamente pelas postagens dos usuários, ao mesmo tempo em que capacita os tribunais a intervir quando necessário.

Mas a lei de 2014 não chega a criar regras detalhadas para moderação de conteúdo, deixando grande parte da responsabilidade nas mãos de plataformas como Facebook e X. E o aumento da desinformação nos últimos anos, especialmente em torno das eleições presidenciais de 2022 no Brasil, expôs as limitações da estrutura criada pela legislação.

O presidente na época, o populista de extrema direita Jair Bolsonaro, e seus apoiadores foram acusados de usar plataformas de mídia social como X para espalhar falsidades, semear dúvidas sobre a integridade do sistema eleitoral brasileiro e incitar a violência. Quando Bolsonaro foi derrotado nas urnas pelo esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva, uma campanha online de negacionismo eleitoral floresceu. Ela culminou na invasão do Congresso brasileiro, da Suprema Corte e do palácio presidencial pelos apoiadores de Bolsonaro em 8 de janeiro de 2023 — um evento semelhante aos tumultos no Capitólio dos EUA dois anos antes.

O ministro Alexandre de Moraes em sessão no STF: banimento do X alimenta debate sobre regulação das plataformas (Foto: Gustavo Moreno / STF - 27/08/2024)
O ministro Alexandre de Moraes em sessão no STF: banimento do X alimenta debate sobre regulação das plataformas (Foto: Gustavo Moreno / STF – 27/08/2024)

A briga se torna pessoal…

Em resposta às campanhas de desinformação e aos ataques, o Supremo Tribunal Federal do Brasil iniciou dois inquéritos — o inquérito das milícias digitais e o inquérito dos atos antidemocráticos — para investigar os grupos envolvidos na trama. Como parte desses inquéritos, o STF solicitou que as plataformas de mídia social — como Facebook, Instagram e o então Twitter — entregassem os endereços IP e suspendessem as contas vinculadas a essas atividades ilegais.

Mas, a essa altura, Musk, que se descreveu como um fundamentalista da liberdade de expressão, havia adquirido a plataforma agora chamada X, prometendo apoiar a liberdade de expressão, restabelecer contas banidas e diminuir significativamente a política de moderação de conteúdo da plataforma.

Como resultado, Musk tem desafiado abertamente as ordens do Supremo Tribunal Federal desde o início. Em abril de 2024, a equipe de relações governamentais globais de X começou a compartilhar informações com o público sobre o que considerou demandas “ilegais” do STF.

A disputa aumentou no final de agosto, quando o representante legal de X no Brasil renunciou e Musk se recusou a nomear um novo representante legal — um movimento que foi interpretado por Moraes como uma tentativa de fugir da lei. Em resposta, Moraes ordenou o banimento da plataforma em 31 de agosto de 2024.

A medida foi acompanhada de pesadas penalidades para os brasileiros que tentassem burlar o banimento. Qualquer pessoa que use redes privadas virtuais, ou VPNs, para acessar o X enfrenta multas diárias de quase US$ 9.000 — mais do que a renda média anual de muitos brasileiros. Essas decisões foram confirmadas por um painel composto por cinco juízes da Suprema Corte em 2 de setembro de 2024. Em meio a críticas de excesso judicial, no entanto, o pleno do STF, com 11 ministros, discutirá e potencialmente poderá revisar esta parte da decisão de Moraes.

… e depois vira política

A luta X x STF se tornou profundamente politizada. Neste 7 de setembro, milhares de apoiadores de Bolsonaro participaram de um protesto “pró-liberdade de expressão”. O governo Lula e o Supremo Tribunal Federal se tornaram alvos, com a oposição e facções de direita enquadrando a suspensão da plataforma como um símbolo de excesso estatal.

A retórica contrasta fortemente com os esforços mais equilibrados e deliberativos para regular plataformas que começaram há mais de uma década com o Marco Civil da Internet. Também destaca o desafio de encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate à desinformação em um ambiente profundamente polarizado — uma questão com a qual o Brasil está longe de estar sozinho.

O calor político em torno da proibição de X não é um bom presságio para os esforços contínuos do Brasil para combater a desinformação online e responsabilizar as plataformas por conteúdo prejudicial.

Um “projeto de lei das fake news”, como foi apelidado pela mídia brasileira, foi apresentado pelo Congresso do país em 2020. O PL busca criar mecanismos de supervisão e aumentar a transparência em torno de políticas de publicidade política e moderação de conteúdo. Mas, apesar de suas boas intenções e de uma abordagem muito leve de “autorregulamentação regulada”, a última versão do projeto de lei foi engavetada no Congresso brasileiro após três anos de debate.

O engavetamento do PL segue uma campanha de políticos de direita e lobistas da Big Tech que rotularam a legislação como um “projeto de lei de censura”, argumentando que infringiria a liberdade de expressão e sufocaria o discurso político. Até agora, o destino do projeto parece incerto. (nota da redação: o presidente da Câmara, Artur Lira anunciou, em junho, a criação de um grupo de trabalho para retomar o tema, mas a discussão não avançou até agora)

Enquanto isso, em 23 de agosto, a Suprema Corte anunciou que analisará duas partes importantes do Marco Civil como parte de uma revisão judicial prevista para ocorrer em novembro. A primeira é o processo de “notificação judicial e retirada” que os críticos reclamam ser muito lento e permite que as plataformas optem por não adotar mecanismos de moderação de conteúdo mais robustos. Os defensores, no entanto, sustentam que a supervisão judicial é necessária para evitar que as plataformas removam conteúdo arbitrariamente, o que pode levar à censura.

A segunda área em revisão é a parte do Marco Civil descrevendo as penalidades para empresas que não seguem as regras. O debate se concentra em se as penalidades atuais, particularmente as suspensões de serviços, são proporcionais e constitucionais. Os críticos argumentam que suspender uma plataforma inteira viola os direitos dos usuários à liberdade de expressão e acesso à informação, enquanto os proponentes insistem que é uma ferramenta necessária para garantir a conformidade com a lei brasileira e salvaguardar a soberania.

O destino tanto do “projeto de lei das notícias falsas” quanto da revisão do Supremo Tribunal Federal podem estabelecer novos padrões legais para plataformas no Brasil e determinar até onde o país pode ir na aplicação de suas leis contra empresas globais de tecnologia, enquanto busca combater a desinformação.

E, embora o Supremo Tribunal Federal não tenha vinculado diretamente a revisão à disputa em andamento com X, a briga com Musk forma o pano de fundo político inevitável para as discussões sobre a direção futura do experimento brasileiro em regulamentação de plataformas. Como tal, as consequências dessa briga aparentemente pessoal podem ter grandes consequências regulatórias para o Brasil e potencialmente outros países.

*Yasmin Curzi de Mendonça, professora titular da Escola de Direito da FGV, é pesquisadora de Pós-Doutorado no Digital Technology for Democracy Lab (Laboratório de Tecnologia Digital para a Democracia) no Karsh Institute of Democracy na University of Virginia (EUA) e coordenadora da Coligação Dinâmica sobre Responsabilidade das Plataforma (DCPR) do Fórum de Governança da Internet das Nações Unidas (UN IGF)

The Conversation

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