ODS 1
Falta de cotas para trans em concursos são mais uma barreira no acesso ao mercado de trabalho
Promessa descumprida no Concurso Público Nacional Unificado escancara necessidade de leis federais para reserva de vagas
Carla Santana é uma mulher trans concurseira desde a adolescência. Autodidata, a moradora de 45 anos de Praia Grande, no litoral de São Paulo, já passou em mais de 40 concursos e vestibulares, além de ter sido classificada em primeiro lugar dez vezes. Apesar de nenhuma delas ter sido por meio de cotas para pessoas trans, ela entende o peso que políticas de inclusão teriam em sua vida e na de outras pessoas transgênero, marginalizadas muito antes de alcançarem o mercado de trabalho formal.
Leu essa? Desafio da inclusão LGBTQIA+ na educação
“Nós não estamos presentes em espaços de poder. A lógica meritocrática do ‘é só você querer’ não faz sentido na nossa vivência. Nas escolas, por exemplo, adolescentes trans não têm o direito de usar os banheiros e ouvem piadinhas preconceituosas o tempo inteiro”, explica Carla, que, além de concurseira, é youtuber no canal “A Mona Faz Direito”. Para ela, há um equivocado “senso comum” de que a pessoa trans pode estudar e concorrer com os demais; o que não é viável, pois o acesso à educação “não é igualitário”.
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Veja o que já enviamosA violência em espaços de ensino citada por Carla se reflete nas estatísticas. Segundo pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) de 2022, cerca de 70% das pessoas trans e travestis não concluíram o ensino médio e apenas 0,02% dessa população teve acesso ao ensino superior. Outro estudo da associação, com a análise da situação de 120 famílias, 77,5% de crianças e adolescentes transgêneros entre 5 e 17 anos foram vítimas de bullying no ambiente escolar.
Carinhosamente chamada pelos seguidores de “Morena”, Carla é uma das poucas pessoas transgênero que atua como professora e concurseira. “Tenho um título que eu detesto. Sou a única edutuber trans dedicada a concursos. Hoje meu público é composto majoritariamente por homens (70%), entre 30 a 45 anos; só conheço três pessoas trans que assistem meu canal”, conta. A ausência de pessoas como Carla na realização das provas para concursos pode ser explicada ao analisar a ocupação de pessoas trans e travestis no Brasil. Segundo pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% dessas pessoas utiliza a prostituição e o trabalho sexual como fonte de renda e subsistência. Nesse sentido, para garantir a dignidade dessas vidas em todos os âmbitos, seria necessária a criação de políticas públicas para redução das desigualdades sociais e econômicas.
Esta premissa foi levada em consideração na iniciativa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de reservar 2% das vagas para trans e travestis no seu concurso para o cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho — responsável por atuar na segurança do trabalho, fiscalizando irregularidades como trabalho escravo, mão de obra infantil e outras violações —, o que representaria 18 vagas. A medida foi, inclusive, anunciada no dia 29 de junho do ano passado, um dia após o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+.
No entanto, a promessa não foi cumprida. Após o concurso do MTE ser integrado ao Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), também conhecido como “Enem dos Concursos”, a reserva de vagas ficou fora dos editais, publicados no dia 10 de janeiro deste ano pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI). O Ministério Público Federal chegou a ajuizar uma ação civil pública para questionar a ausência da cota e pedir a condenação da União por danos morais coletivos, com o pagamento de multa de R$ 5 milhões .
A ação se sustenta não por lei — já que não existe regulamentação federal prévia para estabelecer o direito de cotas para população LGBTQIA+ —, mas pelo fato de o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, e o presidente Lula terem confirmado publicamente a ação afirmativa. Antes de mover a ação, o MPF recomendou a revisão nos editais ao MGI, que não foi acatada pelo órgão responsável pelo concurso, marcado para este domingo, 5 de maio.
Em sua explicação ao MPF, o ministério argumentou que “a adesão do Ministério do Trabalho e Emprego significava aceitar as regras que eram comuns a todos os órgãos aderentes, o que implicava a não previsão de cotas para pessoas transgênero no CPNU”. Além disso, o MGI defendeu que o debate sobre as cotas para pessoas trans seja feita pelo Congresso Nacional. O MPF, na ação civil pública, afirma que este argumento desconsidera a permissão para implementação de cotas destinadas a grupos sociais vulnerabilizados, o que tem respaldo em ordenamento jurídico brasileiro e não possui como requisito a prévia autorização ou criação por meio de lei específica. Ou seja, de acordo com o MPF, não é inconstitucional a criação de ações afirmativas por atos administrativos próprios, sem necessidade de garantia por lei federal.
Algumas instituições já realizaram ações para integrar e diversificar o quadro de empregados. É o caso do estado do Rio Grande do Sul: em 2021, o então governador Eduardo Leite decretou a reserva de 1% para trans em concursos públicos. A Defensoria Pública de São Paulo (DPSP) foi pioneira na política de cotas para a população trans na carreira de defensores públicos ao reservar 2% das vagas em 2022. Além disso, este ano, a Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) teve, pela primeira vez, a mesma reserva.
Segundo o MPF, os R$ 5 milhões cobrados a União devem ser usados para capacitação de gestores públicos quanto ao mercado de trabalho para pessoas trans; campanhas educativas e realização de cursos preparatórios para concursos públicos, destinados à população. Para Carla Santana, que não vai participar do exame, mas publica conteúdos sobre o concurso no canal do YouTube, as cotas teriam grande impacto na vida do grupo. “Se o Ministério do Trabalho não consegue nos inserir no mercado, perde completamente sua função — regular as relações trabalhistas de modo que tenhamos acesso ao mercado de trabalho, mas que esse acesso seja feito de um modo digno”. A ação do MPF ainda não foi analisada pela Justiça Federal.
Agendas anti-trans na política dificultam debates
Para assegurar as cotas para trans em futuros concursos, a deputada federal Érika Hilton (PSOL/ SP) apresentou, em fevereiro o Projeto de Lei 324/2024 que estabelece a reserva de 2% das vagas em concursos públicos para pessoas transsexuais, não binários, intersexo e aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao seu nascimento, a partir do critério da autodeclaração. A parlamentar, primeira mulher trans a ser eleita deputada federal, argumenta, na justificativa do projeto, que sua aprovação seria essencial para a promoção de direitos da população trans e travesti; a equiparação de oportunidades; enfrentamento do alto grau de vulnerabilidade do grupo em acesso à empregabilidade, formalidade trabalhista e dignidade laboral; na promoção da não-discriminação no acesso ao emprego, serviços sociais e à educação, mediados pelos concursos e processos seletivos para a administração pública. O PL de Érika ainda aguarda a designação de relator na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial ( CDHMIR ) da Câmara.
Movimentos e associações pelos direitos LGBTQIA+ veem com preocupação o cenário político em relação à garantia de direitos. “Existe uma agenda anti-trans a nível global que tem ganhado muita força no Brasil, sobretudo com as representações bolsonaristas. Vemos com muita preocupação recuos como a ausência de cotas no Concurso Nacional Unificado e a decisão do governo de manter o campo ‘sexo’ e nome de registro separado do nome social no RG”, afirma Bruna Benevides, a secretária de Articulação Política da Antra.
A dificuldade imposta pela agenda anti-trans, citada por Bruna, não impacta somente o acesso de pessoas trans no mercado de trabalho. A permanência no emprego também é uma questão a ser tratada, visto que a Antra estima 60% de evasão nos primeiros seis meses após a contratação, segundo a secretária de articulação política da entidade. “Isso acontece nos primeiros meses exatamente porque aquele ambiente não foi preparado para receber essas pessoas. Surgem questões problemáticas como assédio; falta de formação para o devido tratamento conforme a identidade de gênero, pronomes e o nome social; questionamentos sobre uso de banheiro. É preciso que as empresas estejam preparadas para essa contratação, e que realizem investimentos para a pessoa poder desenvolver um plano de carreira e ter sucesso na ocupação”.
Formação de qualidade, acesso e permanência
Carla Santana, mulher trans e youtuber na área de concursos, se sentia menina desde criança. Mas foi em 2019 que se assumiu, quando estava em seu último trabalho como escrevente concursada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). No mesmo ano, foi internada compulsoriamente pela família numa clínica de “cura gay” — com diagnóstico de “distúrbio de personalidade e de gênero”.
Após cerca de quatro meses internada, Carla conseguiu fugir da clínica. Retornou para o trabalho no TJSP, mas logo saiu. “Fui bem recebida no fórum pelas pessoas ao meu entorno. Mas foi complicado porque eu trabalhava para o juiz que tinha mandado me internar. Teve uma hora que eu já não me encontrava ali, estava deprimida, então saí”, conta. Hoje, Carla se mantém financeiramente como catadora de recicláveis, e espera retornar para o funcionalismo público para seguir seu sonho de abrir um curso voltado para concursos públicos.
O caso de evasão no trabalho vivida por Carla faz parte da realidade de muitas das três milhões de pessoas no Brasil autodeclaradas transgênero ou não-binárias — indivíduos que, em sua maioria, não finalizam o ensino médio, como apontam os levantamentos da Antra. Para o antropólogo Fabrício Longo, ativista pelos direitos LGBTQIA+, para além das cotas, é preciso garantir que essa população conclua as etapas de ensino até a graduação. “É preciso assegurar a possibilidade dessas pessoas chegarem a uma formação escolar e acadêmica para atenderem às especificações necessárias numa seleção de emprego. Mesmo que tenham cotas, um concurso tem requisitos e critérios de admissão que automaticamente excluiriam muitas pessoas, como qualquer vaga de emprego. Então é importante pensar como o próprio sistema cria outros impedimentos”, explica.
No Rio de Janeiro, a Assembleia Legislativa foi palco de articulações políticas de entidades e movimentos pelos direitos da população LBTQIA+ na audiência pública, “Desafios para o acesso e permanência da população trans e travesti no ensino superior e no mercado de trabalho formal”, realizada a pouco menos de um mês do Enem dos Concursos. Acesso e permanência foram palavras recorrentes na reunião, promovida pela deputada estadual transexual Dani Balbi (PCdoB), que contou com a participação da secretária nacional dos direitos da população LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Symmy Larrat, da secretária de articulação política da Antra Bruna Benevides e de representantes de coletivos trans das universidades, entre outros debatedores.
“Há urgência e pertinência na adoção de reservas de vagas não apenas no âmbito das universidades públicas, mas também nas carreiras de Estado. Além disso, precisamos pensar como a gente articula um programa de acompanhamento cotidiano do sistema básico de ensino, para que ele não perpetue exclusões. Um projeto de enfrentamento à LGBTQIA+fobia institucional no estado do Rio de Janeiro”, afirma Dani Balbi, autora do Projeto de Lei 214/2023, instituindo a reserva de 3% das vagas para pessoas trans na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), instituições estaduais de ensino superior do Rio. O resultado da audiência será a formação de um grupo de trabalho visando estruturar a políticas de cotas nas universidades.
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Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.